DEFINITIVAMENTE, NÃO GOSTO DE MORANGO –
nunca colhi um sequer. Porém, apesar de não comê-lo, por uma questão de aroma e
paladar, costumo dá-lo de presente quando gosto de alguém e quero agradar,
quando quero impressionar e até, como ocorreu outro dia, ao sair para visitar
uma amiga convalescendo de uma inseminação artificial malograda, para tentar
afastar uma dor, pondo um sorriso no lugar – por que não? Desse modo, resolvi
parar num mercado e adquirir alguns. Só que, nesse ínterim, ao lamentar o
infortúnio alheio, passando a elucubrar sobre as desventuras de um zigoto, além
de especular sobre a simbologia que eu atribuía ao morango, fui parar – não sei
por que cargas d’água – no pesadelo do professor Isak Borg, ignorando que, ao
deixar o mercado, iria vê-lo... Não, não o professor, muito menos o zigoto –
este, aliás, há muito diluído em meus devaneios bergmanianos –, mas aquele que,
anos antes, fora o responsável pela minha própria tragédia íntima, pelo meu
pesadelo...
E estanquei,
ficando lá, parada, no meio da rua, compondo a paisagem urbana; pensando que a
minha sempre tão pontual lucidez pregara-me uma peça, passando o cetro para a fértil
imaginação, abrindo alas – ledo engano, o meu! Infelizmente, ele era real, ao contrário das
personagens de ficção, e a sua aparição, apesar de breve, pois logo o perdi de
vista, provocou-me uma repulsa tão intensa que, num repente, me senti
arrebatada por um desejo de morte... Não, não a minha nem a do professor, que
já não mais colhia morangos com a sua pequena Sara, ou a do seu irmão – o que
dirá a do zigoto! –, mas a dele, que,
sem aviso prévio, reapareceu depois de tanto tempo... – eu só ignorava que, com
aquele pensamento torto, estava selando o meu destino. Sim, porque uma coisa é,
num momento de raiva, praguejar contra alguém e até fantasiar a sua morte, que
significa querer que o desafeto desapareça da sua vida; outra coisa é
vislumbrar a possibilidade de elaborar um plano para, literalmente, dar cabo de
alguém.
Um disparate,
convenhamos! E tarefa nada fácil quando não se é psicopata e, até então, nunca pensara
em tirar a vida de um ser humano. Tanto que, ao dar-me conta da gravidade das
minhas nada boas intenções, me senti copiosamente vulnerável, a ponto de sentir
um pavor indescritível só de imaginar que os transeuntes ao meu redor pudessem
desconfiar dos meus sentimentos secretos de vingança, como se o meu
drama psicológico fosse transparente e todos pudessem enxergá-lo...
Paranoia, a minha, já que, apesar da batalha ética e moral travada em meu
íntimo, eu estava calma, pelo menos aparentemente. Desse modo, passei a
acreditar que não poderia ser julgada e considerada culpada simplesmente porque
desejei a morte de alguém, embora, no caso, eu estivesse disposta a matar, aos
poucos percebendo os tropeços dos meus passos, já que, além de já ter violado
um dos mandamentos ditos sagrados, passei a querer cometer um dos pecados chamados
de capitais.
Sim, porque,
afinal, uma pessoa não precisa ser psicopata para matar outra: existe uma série
de variantes aí, diferentemente da morte em questão, que, por sua natureza
hedionda, seria considerada crime, descoberta ou não a sua autoria, embora
digam que crime perfeito não existe. Claro que existe! Se bem planejado, além
de bem executado, sai-se impune. Infelizmente, nesse caso, a autora do referido crime, ou seja, eu, seria, sem
sombra de dúvidas, a principal suspeita e, dependendo das provas contra mim,
correndo o risco de passar o resto da vida vendo o sol nascer quadrado. Por outro
lado, se a vítima sobrevivesse, acusar-me-ia de tentar matá-la, obtendo as provas
necessárias para incriminar-me. Resultado: ele continuaria vivo, livre, leve e
solto; eu, certamente, sem direito nem mesmo à condicional. Mas, o que
importava o cárcere e os anos num cubículo mal cheiroso e inóspito se,
aparentemente livre, eu já estava aprisionada pelos fantasmas do passado,
amargando a minha própria solidão?
Quanto desatino, um desejo de morte mal
traçado e um destino malcriado! Porém, apesar de seduzida pela repentina ideia,
mesmo considerando a possibilidade de o meu plano perfeito tornar-se
imperfeito, eu hesitava sobre qual decisão tomar, qual a mais acertada, mas
apenas porque, sempre tão sólidos, os meus princípios humanistas ameaçavam
bater em retirada. Foi aí, então, que, num visgo de lucidez, achei mais
prudente voltar para casa: não tinha mais para cabeça para visitar ninguém – o
que dirá uma amiga convalescendo de uma inseminação artificial malograda! Tanto
que, tarde da noite, após de dissipadas as dúvidas, uma resolução: elaborar um
plano moldado pela inteligência, que, além de vingar-me, satisfaria a minha
vaidade intelectual, o que, de certa forma, me reconfortou. E assim o foi:
durante dias e noites de sonhos inspiradores, amparados por frescores de
criatividade, eis que, finalmente, eu conseguira elaborar o meu plano mais-que-perfeito,
que deveria, contudo, ser executado no dia certo.
Dois meses depois...
Tomando
café na biblioteca, folheei uma edição do jornal no qual costumo publicar as
minhas novelas e, de repente, deparei-me com a manchete: Construtor é
encontrado morto – fui direto à página onde estava publicada a matéria, que
dizia:
O construtor civil e
agente imobiliário Lucas Ramos foi encontrado morto na sua residência ontem
pela manhã. Segundo o laudo técnico do legista, a morte do construtor teria
acontecido há cerca de uma semana, mas como a sua família estava ausente, de
férias no exterior, ninguém deu por sua falta. Nem mesmo os seus operários. Na
verdade, foi a faxineira que se deparou com o corpo do patrão inerte sobre a
cama. Ao que tudo indica, o construtor morreu após ingerir uma grande
quantidade de morangos com chantilly antes de dormir, hábito que, de
acordo com as testemunhas, era alimentado pela dona da quitanda do bairro quase
diariamente. Curiosamente, há dias o construtor não aparecia na quitanda,
embora os vizinhos tenham afirmado que viram uma velhinha vendendo morangos ao
construtor há mais ou menos uma semana. Depois disso, ele teria desaparecido e
não mais foi visto. A mulher do construtor e os filhos chegam amanhã, avisados
que foram da tragédia pela polícia, que, aliás, investiga o caso, envolto em
mistérios. Porém, uma fonte informou que os investigadores suspeitam da
velhinha, de paradeiro ignorado. Mas, como encontrar a tal velhinha, já que,
segundo os vizinhos, ela usava um véu escarlate jogado sobre a cabeça, sem que
fosse possível ver o seu rosto?
Suspirei, pensando, “e agora?” – por mais
que quisesse, não poderia esquecer o assunto, encerrando-o. Isso porque, no dia
anterior, o editor do jornal telefonara, comentando, por curiosidade, sobre
certas afinidades que ele identificou entre detalhes da morte noticiada e a
novela que, semanas antes, publiquei no jornal. Reconheci que, de certa forma,
eu estava apreensiva, pois, pelo visto, quem cometeu o crime deve,
provavelmente, ter lido o meu texto... Tranquilizando-me, o editor disse que
não me preocupasse, ainda mais porque eu estava protegida pelo direito à
liberdade de expressão – não sei se a polícia pensava assim. Tanto que, no dia
seguinte, ele voltou a ligar – desta vez, para prevenir-me de que um detetive
esteve no jornal, pedindo informações sobre o autor da referida novela. Não deu
outra! Tão logo desliguei o telefone, a campainha tocou: — Espero não estar
incomodando... – disse o recém-chegado, após identificar-se como sendo o
detetive encarregado de investigar a morte do construtor.
Pedi que entrasse e
indiquei uma cadeira para que se sentasse: — Em que posso ajudar, detetive? –
esforcei-me para mostrar colaboração.
Indo direto ao
ponto, o homem disse: — Fomos informados de que, há mais ou menos duas semanas,
um jornal local publicou uma novela que, minuciosamente, descreve um
assassinato supostamente fictício. Ocorre que, ontem, depois da divulgação na
imprensa da morte de um construtor civil, a polícia foi informada da publicação
dessa tal novela, já que as duas mortes, a fictícia, da novela, e a real, ou
seja, a do construtor, possuíam, digamos, certas similaridades. Porém, como a
novela está assinada com pseudônimo, a única alternativa da polícia foi a de
apresentar um mandado ao editor do jornal, exigindo que ele revelasse a
identidade do autor da novela, ou melhor, da autora, ou seja, a senhora, que,
também fomos informados, conhecia o construtor e a sua família...
— Estou sob
suspeita, detetive? – perguntei, sem rodeios.
— Eu não quis dizer
isso, mas o fato é que a ficção virou realidade...
— E se alguém leu a
minha novela e nela se inspirou? – questionei. – Já pensou nisso?
— É
uma possibilidade... – ele pigarreou. – Então, eu também fui informado da sua
amizade com a viúva...
—
Sim, éramos próximas, mas, infelizmente, com essa correria... – suspirei,
querendo passar a ideia de certo pesar.
— E quando
foi a última vez que teve contato com ela?
— Um ano, talvez,
ou mais...
—
Alguma querela?
— Que eu saiba, só
a minha falta de tempo... – respondi, impaciente. – Na verdade, tenho sido
relapsa com os amigos, já que, por causa de compromissos profissionais, a minha
prioridade tem sido os meus escritos. Falando nisso, o senhor já leu algum dos meus
livros?
— Não
tive, ainda, esse privilégio, apesar de apreciar a leitura de bons romances,
inclusive de uma certa novela policial...
— Ora, detetive, sem
insinuações! – exclamei, manifestando certa irritação. – Não tenho nada a
esconder: sou uma contadora de histórias; ele, Lucas Ramos, um
construtor de manobras... Estamos em níveis bastante diferenciados, ou melhor, estávamos.
— Os morangos que
Lucas Ramos ingeriu estavam envenenados...
— Em A Bela
Adormecida eram maçãs.
— Então... –
pigarreou. – Onde a senhora estava na hora em que a velhinha foi vista à porta
da casa do construtor?
— A polícia já
conseguiu pelo menos precisar a data do acontecido?
— De acordo com o
testemunho dos vizinhos, há exatamente dez dias. Desde então, ninguém mais viu
a vítima...
— E como querem que
eu lembre o que fiz há dez dias?
— Não tem uma
agenda?
— Não me guio por
nenhuma.
— Então, não tem álibi!
— Estou com a minha consciência
tranquila.
— Como eu já disse
antes, estamos investigando um possível caso de assassinato...
— Por
que, então, não investigam os clientes do morto?
— O
morto não tem mais clientes...
—
Quando vivo, tinha. – ironizei, questionando. – Nenhuma dívida? Nenhum
ressentimento? Pelo que eu sei, Lucas sempre esteve metido em confusão. Quem
sabe algum negócio escuso, ilícito...
— Estamos
investigando.
— Na minha casa?
Afinal, se uma pessoa morre e só depois de mais de uma semana a polícia
encontra o seu corpo significa que não tem muita gente interessada nela, não é
mesmo? – questionei, sem disfarçar o meu desdém. – Ora, detetive, todo mundo
sabe que, apesar de “popular”, o homem em questão não era lá muito bem quisto.
— Inclusive pela
senhora...
— Detetive, por que
eu haveria de matá-lo?
— Um motivo, pelos menos, a senhora
tinha: vingança.
— O senhor acredita mesmo nisso?
— Suponhamos que a
senhora tenha realmente tido um envolvimento afetivo com a esposa... O marido
descobre ou apenas suspeita e faz um escândalo, ameaçando a mulher, jogando os
filhos contra ela... Sentindo-se pressionada, ela decide abrir mão da relação
extraconjugal, que, até então, vinha tentando manter em segredo, mas apenas
para tentar evitar uma atitude ainda mais drástica por parte do marido e
garantir o convívio com os filhos. Só que a senhora não aceita o rompimento e
resolve, digamos, se vingar. Afinal, convenhamos, Lucas Ramos morto não seria
mais um obstáculo para nenhuma das duas viverem um romance livremente...
— Brilhante,
detetive! Nem nos meus romances eu encontro algo tão original! Falando nisso,
algo mais que queira saber?
— Por hoje, é só. –
levantou-se.
— Fico grata, pois
tenho um compromisso... – levantei-me. – Ah! Tenho algo, aqui, que, talvez,
possa lhe interessar...
O detetive
esperando, autografei um dos meus livros para ele, que, surpreso com o meu
gesto, agradeceu pelo exemplar e despediu-se, mas não sem antes me prevenir
que, muito provavelmente, e em breve, voltaria a me procurar, embora,
melindroso, tenha acrescentado: — De qualquer modo, queira desculpar-me se, em
algum momento, fui invasivo.
— E eu sequer lhe
ofereci uma água, um café...
— Não se preocupe,
teremos tempo para isso.
Num café...
Dito e feito! Dias depois, o detetive
procurou-me – quando ligou, eu estava num café, fazendo uma pausa do me
trabalho, e ele foi ao meu encontro: — Fiquei impressionado com as novelas... –
disse, portando o exemplar do livro que eu havia-lhe dado como cortesia.
— Fico feliz que
tenha gostado! – sorri, convidativa. – Sente-se...
— Sinto que, hoje, paira no ar um bom
humor!
— Vez por outra, acontece... – ironizei. –
Falando nisso, em que pé está a investigação?
— Bom, até então, ainda não encontramos
nenhuma velhinha com um véu escarlate jogado sobre a cabeça!
— Vai ver, essa velhinha nunca chegou a
existir!
— O que quer dizer
com isso?
— Que as pessoas
podem ser muito imaginativas.
— Ora, mais de um
vizinho viu quando a tal velhinha estava falando com a vítima!
— Mas ninguém
garante que os morangos foram comprados à ela, que bem poderia estar de
passagem, apenas pedindo uma informação. Falando nisso, já interrogaram a dona
da quitanda?
— Já, mas por que
pergunta isso?
— E já pensou também
na possibilidade da velhinha ser a própria dona da quitanda?
— Que ideia! – o
meu interlocutor exclamou, visivelmente surpreso, como se eu tivesse dito o
maior dos absurdos, e prosseguiu: — Eu mesmo a interroguei e, à ocasião, ela
pareceu-me inofensiva.
— E se, por um
acaso, Lucas estivesse endividado com a quitandeira?
— Está realmente
falando sério? Acha mesmo que a vítima iria contrair uma dívida na quitanda?
— Não disse com a
quitanda, mas com a quitandeira...
— O que está
querendo sugerir?
— Que, de repente,
eles poderiam ter algum outro tipo de transação nada formal que não apenas
morangos...
— Poderia ser mais
explícita?
— Não sei de nada!
— Agora, a senhora
está sendo evasiva...
— Isso sem falar
que a “vítima” tinha mania de experiências... – insisti na provocação. – De há
muito, por exemplo, ele andava plantando morangos no próprio quintal: canteiros
com adubos orgânicos e canteiros com defensivos agrícolas...
— O veneno que o
matou!
— Elementar, meu
caro! E, convenhamos, quem planta, colhe. No entanto, durante sua vida inteira,
Lucas só soube semear ervas daninhas...
—
Pelo que vejo, a senhora não o perdoa.
— Como o senhor é
sentimental, detetive! – ironizei. – Diferentemente da política, na natureza
não existe impunidade. Todos, um dia, terminam pagando por seus crimes, de uma
forma ou de outra...
— Por que a senhora
não escreve uma novela, digamos, contando toda essa sua história?
— Eu já o fiz.
— Então quer dizer que...
— Sabe, detetive,
muitos podem pensar que a novela que escrevi trata-se de uma história fictícia,
até, quem sabe, beirando o surreal, mas não. Na verdade, situações como essa,
ou seja, como a que vivi, acontecem a 3x4, dia e noite... Só que é tudo muito
silencioso. Vez por outra, contudo, há um levante, um motim, essas coisas... O
senhor me entende? – ele assentiu, discretamente, e prossegui: — Pois bem! O
que fiz foi apenas transpor para o papel uma história que, em minha opinião, é
até corriqueira para muita gente. – é raro um marido ser humilde o suficiente
para reconhecer o fato de que a sua mulher está apaixonada por outra.
Daí o escândalo, a ameaça, a violência... Física ou moral! Afinal, numa
situação como essa, onde as paixões afloram livremente, podemos até prever os
sentimentos envolvidos, mas nunca o grau de tolerância de alguém, no caso, o do
marido, e do que ele é capaz de fazer diante de uma perda iminente para
preservar o seu status quo...
— Daí ter escrito a
tal novela.
— Sim, pois
precisava libertar-me de alguma maneira de tudo aquilo, já que a situação
estava insustentável!
— E se libertou?
— Quando eu escrevi
o texto, não necessariamente, mas agora... Sabe, uma folha de papel em branco
pode nos induzir aos crimes mais variados. Podemos eliminar vidas humanas da
mesma forma que podemos gerá-las, dando-lhes ânimo, um nome, uma personalidade,
hábitos e costumes, uma nacionalidade, uma origem. Sim, podemos render
homenagens aos nossos entes mais queridos, se quisermos, mas também podemos dar
cabo daqueles que, de certa forma, nos atormentam no dia a dia real. Assim,
escrever pode ser um paliativo para as nossas aflições cotidianas, um lenitivo,
qualquer coisa! Uma válvula de escape, através da qual libertamos as nossas
angústias, damos vazão as nossas ambições, extirpamos os nossos traumas,
realizamos os nossos desejos, projetamos os nossos sonhos. No entanto, a página
em branco tem as suas limitações e, por mais que, na ficção, consigamos
alcançar todos os nossos objetivos, a realidade não muda, continua a mesma e,
nela, muitas vezes, não podemos intervir, como fazemos quando escrevemos,
porque, no papel, não existe censura, não existe tutor nem policiamento... –
respirei fundo. – Na verdade, detetive, todos sabemos que existe uma fronteira
entre a ficção e a realidade. E, por questões éticas e morais, não podemos
transpor essa fronteira, não apenas nós, os escritores, mas todos,
indistintamente. Porém, quando eu soube da morte de Lucas, a fronteira entre o
real e o imaginário havia sido transposta, que, finalmente, a libertação havia
sido total, uma espécie de transgressão... – acendi um cigarro. – Só que o mais
curioso é que não sinto o menor remorso por ter desejado a sua morte e, de
certa forma, ter contribuído para que isso acontecesse de verdade.
— Estou admirado! –
disse o meu interlocutor, aparentemente nada surpreso com as minhas revelações.
– Parece que a senhora realmente planejou um crime mais-que-perfeito. E ninguém
nunca poderá condená-la por isso. Nem muito menos irá a Tribunal! – ficou a
tamborilar sobre a mesa e acrescentou: — Sabe, admiro a sua inteligência e,
particularmente, se é que isso lhe interessa, tudo indica que a polícia vai
arquivar o caso, pois, além do paradeiro da velhinha continuar ignorado, a
opinião da viúva é a de que o marido foi intoxicado acidentalmente por um dos
venenos que utilizava nas suas plantações de morango, embora...
— “Embora...”? –
quis saber, curiosa.
— Saiba que esta é
uma hipótese levantada pela polícia... – pigarreou. – E eu nem deveria comentar
a respeito, muito menos com a senhora!
— Se está é porque
deixei de ser considerada suspeita.
— Não
necessariamente.
Fosse pelo que
fosse, percebi que eu despertava simpatia no detetive, pois, caso contrário,
ele não compartilharia comigo determinadas informações, ainda mais sigilosas,
estabelecendo, de certa forma, uma cumplicidade entre nós. E aproveitei a
deixa: — Então...
— Então que estamos
ventilando a possibilidade de suicídio.
— Duvido muito!
— Por que?
— Lucas era arrogante
demais para se matar.
— Bom! O fato é que
vamos arquivar o caso.
Silenciei,
pensativa. Enquanto isso, a noite caia e, pelo menos aparentemente, o detetive
não demonstrava querer ir embora – pelo contrário! Numa empolgação nunca dantes
vista, ele surpreendeu-me: — Quer saber, toda essa história deixou-me bastante
interessado na sua fórmula para crimes mais-que-perfeitos. O que acha, então,
de pedirmos algo para comer?
— Não me considera
de alto risco, perigosa?
— Só não me ofereça
morangos...
Rimos do que
poderia ser considerada uma piada – se de mau gosto ou não, pouco importava. Fizemos
os nossos pedidos e passamos a discorrer sobre o caso, até que, quando já
estávamos quase terminando a pizza, acompanhada de um bom vinho, tipo
comemoração, o detetive disse: — Eu só gostaria que me explicasse uma coisa...
— Sim?
— Os morangos...
Bergman... Eu vi o filme! E até entendi, apesar da complexidade do cineasta.
Entendo também a senhora comprar morangos para presentear pessoas que gosta, para
agradar, impressionar, mas... Por que morangos para o inimigo?
— O reverso da
simbologia e o que ela representa. De qualquer modo, uma coisa é certa: jamais
compre morangos numa quitanda...
— E por que não?
— Porque eles nunca
são frescos, só servem para suco.
— E o que é que isso tem a ver? –
ele sorriu.
— Não sei, vi algo parecido num
livro. – mordisquei a minha última fatia de pizza. – Acho que foi Agatha
Christie quem escreveu isso...
— Ainda não me convenceu!
— Não?
De repente,
surgindo aparentemente do nada, o garçom perguntou-nos se não gostaríamos de
uma sobremesa, adiantando-se: — A sugestão da casa são os nossos morangos com chantilly...
Pegando-nos de
surpresa, uma atmosfera sepulcral, que mais lembrava uma das cenas de Bergman, baixou
na mesa, envolvendo-nos. Senti uma espécie de calafrio e, hesitante, olhando de
soslaio para o meu acompanhante, disse: — Eu, particularmente, não gosto de
morango...
— E o senhor? – o
garçom perguntou ao detetive, que, não se contendo, engasgou.
— É,
eu também não gosto de morango! – pigarreou. – Prefiro um café...
—
Sim, um café. – concordei. – É, acho que um café cai bem.
O
garçom retirou-se e, aproveitando, o ensejo, gracejei, tentando dissipar aquela
estranha sensação: — Excelente pedida, Poirot!
Igualmente
perturbado, o detetive não se fez de rogado: — Que bom que gostou, Agatha! –
piscou, malicioso.
Foi
aí, então, que não tive dúvidas de que, apesar de tudo, ele, no seu íntimo,
desconfiava de mim. Porém, eu estava tranquila, já que, afinal de contas, o
caso fora arquivado: eu realmente havia conseguido executar um crime
mais-que-perfeito – perfeito até demais, eu diria, considerando que, apesar das
suspeitas, não havia provas contra mim.
Na biblioteca...
E foi assim que
essa novela chegou ao fim. Ou será que ela ainda não acabou e somente eu não o
sei? O fato é que, à revelia das nossas intenções e desejos, o destino ou a
vida – ambos, quiçá –, agem a seu modo e sempre de maneira imprevisível. Tanto
que, ao invés de escrever uma história sobre as desventuras de um zigoto, como
era a minha intenção desde o início, a casualidade de certos acontecimentos
levou-me a escrever sobre morangos – obviamente que não tão silvestres como os
da infância da pequena Sara, colhidos juntamente com o professor Isak Borg, mas
selvagens, embora eu só tenha percebido isso depois...
Nathalie Bernardo da Câmara
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