segunda-feira, 23 de março de 2015

BABILÔNIA, EVANGÉLICOS E PARDAIS

“Numa sociedade primária, o preconceito ganha cores bastante fortes. Tudo que se faz numa obra como essa [Babilônia] é apresentar problemas de ordem humana e esperar que tenha repercussão nesses espíritos ainda tão limitados...”.

Fernanda Montenegro
Atriz brasileira


Um beijo na boca. O gesto teria passado despercebido se, apesar de o amor homoafetivo já ter sido abordado em folhetins brasileiros, não tivesse sido o primeiro na história da teledramaturgia nacional entre duas mulheres setuagenárias, causando frisson entre os telespectadores, e ido ao ar tão logo teve início, em 16/03, o capítulo de estréia de BABILÔNIA, nova novela das 21h da Rede Globo, dos autores Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, dando um sutil “tapa na cara” no conservadorismo. Na trama, situada inicialmente em 2005, o casal é formado por Teresa, uma advogada bem sucedida, e Estela, proprietária de um antiquário, interpretadas por Fernanda Montenegro, 85, e Nathalia Timberg, 85, respectivamente. Companheiras de décadas, amadas e respeitadas pela família e amigos, elas criam um neto biológico de Estela, que, por chamá-las de “mães”, sofre bullying na infância. No passado, discriminadas por sua opção sexual – Estela separou-se do marido para viver com Teresa –, vivem, no presente, uma relação estável e bem resolvida, quebrando tabus, como, por exemplo, o do sexo na terceira idade – no caso, um duplo preconceito, encontrando resistência, mas também aceitação. Em 2015 – a novela dá um salto de dez anos já no segundo capítulo –, as personagens finalmente oficializam a sua união civil, cuja cena, segundo os autores do folhetim, está prevista para ir ao ar no capítulo 35.

No desenrolar, ainda, do primeiro capítulo, “uma verdadeira aula de roteiro”, aliás, segundo o jornalista e pesquisador Nilson Xavier, o telespectador deparou-se com situações que, normalmente, levam toda uma novela para acontecer: além do polêmico beijo gay, cenas outras, ousadas, de forte carga dramática, entreteram os noveleiros de plantão e/ou os eventuais, além de tirar o sono de muita gente. Na verdade, antes mesmo de estrear, BABILÔNIA despertou repulsa e aplausos, intensificados no primeiro capítulo e ao longo da semana, repercutindo na mídia e dentro e fora das redes sociais, com comentários positivos e outros nada elogiosos, a ponto de ter quem compare a novela com o Apocalipse, livro bíblico citado, inclusive, nenhuma novidade, pelo deputado federal e pastor Marco Feliciano (PSC-SP) numa dada postagem, publicada em 16/03, logo após a estréia da novela – no mesmo dia, o parlamentar manifestou a sua solidariedade ao candidato derrotado do PRTB à presidência da República Levy Fidelix, condenado a pagar uma indenização de R$ 1 milhão por declarações homofóbicas durante um debate televisivo quando das eleições de 2014; noutra postagem, dizendo sentir-se preocupada por considerar a novela uma influência negativa para as famílias brasileiras, uma internauta classificou-a de “maligna”, ignorando que certas manifestações artísticas são reflexos da vida real e, ao mesmo tempo, entretenimento.

Ora, preocupadas devem ficar as mentes sãs, não dispostas ao obscurantismo de fundamentalistas religiosos que se querem arautos da moralidade, apesar de, paradoxalmente, serem forjados pela hipocrisia, e de seus discursos recalcados e fascistas sobre moral – nada mais antipático e fora do contexto. O mais insano, contudo, é que, poluindo os anseios de avanços da sociedade, no caso, os dos direitos fundamentais e civis, e julgando, levianamente, as escolhas das pessoas, seja na realidade ou na ficção, muitos fazem drama quando nem drama existe ou, quando existe, fazem mais drama do que o drama em si. Na quinta-feira (19), por exemplo... 


Charge do Lute, publicada no jornal Hoje em Dia (21/03/2015).


... Num impressionante ato de delírio, a bancada evangélica no Congresso Nacional divulgou uma nota de repúdio à cena do beijo protagonizado pelas personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, convocando todos aqueles que se sentem “violentados” pelos “constantes estupros morais impostos pela mídia liberal” a não mais assistirem a novela, visto que ela pretende difundir “o modismo denominado por eles ‘de outra forma de amar’, contrariando nossos costumes, usos e tradições”  nossa, é patético, parece até que não tem o que fazer. Enfim! Integrante da Frente Parlamentar Mista Permanente em Defesa da Família, o senador Magno Malta (PR-ES) recorreu a uma dada rede social para postar que BABILÔNIA foi produzida para destruir famílias, sendo, portanto, uma apologia ao mal: ─ Não dê espaço para esta ameaça com cara de diversão.


Imagem publicada no Facebook pelo senador Magno Malta (PR-ES).


Não deu outra! Nas redes sociais, internautas adotaram a hashtag #BabilôniaEuApoio. Dentre muitas postagens nas redes sociais, apoiando ou não a novela, pode-se dizer que deu de tudo! Ocorre que, não é de hoje, sempre existiu todo tipo de família – a diferença é que, de uns tempos para cá, esse leque de variações ganhou mais visibilidade. O conceito de família, por sua vez, não mais restrito ao formato “clássico”, que, vale ressaltar, de há muito deixou de ser maioria, passou a contemplar infinitas possibilidades de núcleos familiares – dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) a respeito numa reportagem transcrita ainda nesta postagem. Sobre os comentários dos internautas, há quem questione, com pertinência e sensatez, o estardalhaço feito apenas por causa de um simples beijo – quer dizer, então, que afeto não pode, mas corrupção (caso do prefeito corrupto, interpretado por Marcos Palmeira), lugar-comum, aliás, na polpuda política brasileira, e homicídio podem (no folhetim, a arquiteta Beatriz, papel de Glória Pires, é chantageada por um amante, motorista do marido, e, a sangue-frio, atira para matar, sem culpa, sem nada, embora não seja por isso que falsos moralistas de carteirinha também estejam atirando-lhes pedras, rotulando-a de “ninfomaníaca”: eles o fazem apenas porque, quando está disposta, ela é quem faz a cama, ditando a sua própria conduta, sem culpa, sem nada.

Compreende-se, portanto, porque, ouvido pelo portal UOL, o senador Magno Malta (PR-ES) tenha dito que, além das personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, as suas críticas também vão para a de Glória Pires, que lhe incomoda, tal qual o nome da trama. Paradoxalmente, apesar de dizer que não tem intenção de censurar a novela, a sua classificação indicativa do público para assisti-la deve ser alterada, ou seja, de 14 para 16 anos de idade, adiantando que, na segunda-feira (23), estará encaminhando um ofício ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, nesse sentido. Preocupada, a diretora do Observatório de Comunicação, Liberdade de expressão e Censura (obcom) da Universidade de São Paulo (USP), a professora Cristina Costa, alertou: ─ Isto é coerção. E, na essência, é o mesmo que os militares faziam na ditadura. Eles tentam impedir previamente que a população veja um conteúdo artístico, obstruindo assim o debate e a conscientização sobre temas que ocorrem na sociedade. Eles obviamente não têm os mesmo meios que a ditadura, mas certamente se utilizam dos mesmos critérios.

Para a pesquisadora, esses critérios são: “impedir a veiculação de conteúdos que não atendam a uma falsa moralidade, ou a uma moralidade religiosa, e uma ideia equivocada sobre o papel da arte”. Em sua opinião, “a arte não deve estar a serviço de crenças, mas a serviço da crítica, propondo discussões de temas que são tratados no mundo. Isso tudo faz parte de um retrocesso político-ideológico muito forte na sociedade brasileira de hoje”.

E haja retrocesso! – ainda mais diante dos absurdos de uma nota de autoria do líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), pastor Silas Malafaia, publicado no portal Verdade Gospel, em 17/03, no dia seguinte a exibição do primeiro capítulo da novela, tipo: “... a Rede Globo é a maior patrocinadora da imoralidade e do homossexualismo no Brasil...”. Considerando, portanto, a badalada homofobia do autor da nota e tirando por essa frase...

Não foi à toa que, comentando sobre BABILÔNIA, antes mesmo da sua estréia, Fernando Montenegro, prevendo críticas, não deixou por menos: Os conservadores vão ter que nos aturar.

Provavelmente. E ainda mais se atentarmos para uma fala de Teresa numa cena da novela: Tenho certeza de que pessoas como Estela e eu ainda vamos mudar a sociedade.

Tanto que, segundo declaração de Nathalia Timberg ao jornal Extra, a cena do beijo, que só seria gravada bem depois, foi antecipada por sugestão da própria Fernanda Montenegro, indo ao ar já no primeiro capítulo, desmitificando, de cara, sem criar expectativas, a relação que as suas personagens mantêm na novela. Para Timberg: ─ Essa realidade já está mais do que na hora de ser absorvida pela sociedade. O que importa de fato é a integridade das pessoas.

E aceitação. Que o novo folhetim, então, seja bem-vindo, selado que foi pelo beijo de duas das damas da dramaturgia brasileira, embora eu fique a pensar qual seria a repercussão que o gesto e o relacionamento em questão estariam tendo caso as suas protagonistas fossem mulheres negras, pobres e moradoras do fictício morro da Babilônia, que dá nome à novela... Enfim! Logo após o beijo gay, independentemente de eventuais especulações sobre estereótipos, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) postou nas redes sociais: O choro é livre, reacionários e fundamentalistas e fascistas e homofóbicos. Eu vivi pra ver! Parabéns, Babilônia.

Não deve ter sido à toa – imagino – a escolha do tema de abertura da novela, de autoria da cantora e compositora Mart’nália, ou seja, o samba Pra que chorar.


Babel brasileira, obscurantismo e pragas... de pardais

“Deixa-me molhar a pena em ácido corrosivo; ferve-me o sangue ao pensar que devo escrever seu nome!”.

Willian Hornoday (1854 - 1937)
Zoologista, conservacionista, taxidermista e escritor naturalista norte-americano, referindo-se ao pardal.


Ao invés das pragas preconizadas pelo Apocalipse, texto bíblico citado em postagens nas redes sociais pelo deputado federal e pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para externar a sua opinião sobre BABILÔNIA, atribuindo supostos “pecados” à trama da nova novela global, lembrei-me do pardal (Passer domesticus L.), ave que, aparentemente inocente, só nidifica em habitações humanas e que, por sua capacidade reprodutiva, presente em quase todos os países, é uma das mais populosas do mundo, sendo caracterizada como bioinvasora – no Brasil, existe até uma portaria federal (nº 1, de 5/1/1957) que tipifica o pardal a mais nociva das aves e que, devido a sua “onipresença”, está, atualmente, disseminado por quase todo o país e que, devido o seu histórico de pragas, tipo uma bomba-relógio ambulante, pode detonar uma quando menos se espera. Daí eu costumar comparar os pardais aos neopentecostais, embora nem todos estejam vulneráveis aos malefícios das suas pragas. E, dizendo isso, não estou sendo preconceituosa nem discriminando as religiões (des) norteadas por pastores de má fé, que, aliás, ignoram o que seja ética, seja nos púlpitos dos seus templos, nas tribunas do Congresso Nacional e/ou através do fácil acesso que têm à mídia, mas apenas exercendo o direito de emitir a minha opinião em relação à violência das suas pregações, que, inclusive, chegam ao cúmulo de afrontar os princípios de laicidade do Estado brasileiro. Querem tolerância para tamanhas sandices? Respeitem, então, a liberdade de expressão e o fato de nem todos estarem disponíveis para “rezar” na obscura cartilha de obtusos e hostis pastores, beirando à patologia, nem de acreditar nas suas ladainhas, alardeando dada moral surrealista por aí, aleatoriamente, como se a sua verdade fosse a única, quando, na verdade, a sua própria vida é balizada pela hipocrisia, sendo nefasta não a influência que BABILÔNIA, a de não importa demais tramas televisivas ou, ainda, a de outras manifestações artísticas, possam porventura exercer sobre a sociedade, mas, sim, a insana orientação religiosa que transmitem aos seus rebanhos, manipulando a sua psique, bem como as agressões gratuitas que votam contra os que não comungam com a quantidade de dejetos que levianamente despejam não apenas em mentes vulneráveis, mas indiscriminadamente – não é à toa a má fama dos pardais... Tanto que até o seu caráter duvidoso já foi tema de marchinha de carnaval, com a ave limitando-se a uma alegoria grotesca, tais quais certos fundamentalistas evangélicos, que, ao invés do atrevimento de julgar as escolhas de outrem, desrespeitando a sua individualidade, como se apenas a verdade que defendem fosse a única, deveriam era olhar para os seus próprios umbigos, não negar, arrogantemente, algo que é inerente à condição humana, ou seja, a diversidade, não importa em qual esfera da vida, com o amor legitimando todos os laços.


Laços de família

“Babilônia reflete a diversidade das famílias na vida real...”.

João Ximenes Braga
Roteirista brasileiro


Abaixo, transcrição de uma reportagem publicada pelo jornal O Globo em 22/03.

Nathalie Bernardo da Câmara


As novas composições familiares estão em destaque em 'Babilônia' e 'Sete vidas'

Novelas das 21h e das 18h da Globo retratam tipos de família cada vez mais presentes na sociedade

POR NATALIA CASTRO / ZEAN BRAVO
22/03/2015

RIO - Um beijo, logo no primeiro capítulo de “Babilônia”, na segunda-feira, selou para os espectadores da novela das 21h a relação de Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg). Juntas há décadas, as duas têm um filho, Rafael (Chay Suede), neto biológico de Estela. Mais cedo, na trama das 18h, “Sete vidas”, Regina Duarte é Esther, que recorreu, junto com a companheira (hoje já morta), a um banco de sêmen para gerar seus dois filhos, Laila (Maria Eduarda Carvalho) e Luis (Thiago Rodrigues).

Com três das maiores atrizes brasileiras, esses núcleos dos dois folhetins, que estrearam há pouco, refletem uma mudança em curso na sociedade brasileira: a formação clássica de família, com pai, mãe e filhos, já não é maioria no país.

O último censo do IBGE, em 2010, mostrou que as novas configurações familiares estão em 50,1% dos lares, ou seja, somam 28,647 milhões, 28.737 domicílios a mais que a formação clássica. São casais sem filhos, pais ou mães solteiros, netos criados por avós, irmãos e irmãs, casais gays, amigos convivendo, pessoas morando sozinhas, famílias “mosaico” (as dos “meus, os seus e os nossos filhos”)...

Alguns desses modelos vêm sendo representados na teledramaturgia. E nas duas novas tramas a diversidade chama a atenção. Em “Sete vidas”, a tal família “mosaico”, por exemplo, foi atualizada. Lígia (Débora Bloch) é a mãe do bebê Joaquim, fruto de seu relacionamento com Miguel (Domingos Montagner), e se casa com Vicente (Ângelo Antônio), pai de Pedro (Jayme Matarazzo), gerado com o esperma de um doador, que vem a ser Miguel.

Estranhamento do público? Só num primeiro olhar, crê a autora de “Sete vidas”, Lícia Manzo:
— Em princípio, qualquer mudança pressupõe medo e certa resistência, mas acredito que o afeto é capaz de nos conduzir por onde quer que seja. Onde falta tradição, é o afeto que irá legitimar todos os laços. Por conta da novela, assisti a documentários, reportagens e realities sobre filhos de doadores anônimos. Por trás de cada história, sempre uma nova família: mãe solteira com filho, duas mães, grupos de meio-irmãos de até 30 pessoas – diz Lícia, que se amparou em pesquisas para criar sua novela, cuja trama principal é a ligação de sete meio-irmãos gerados por um doador anônimo: — Em um trabalho que aborda um tema real e contemporâneo, a pesquisa para mim é imprescindível. De acordo com dados, a formação clássica deixou de ser maioria nos lares. E me pareceu oportuno dar voz a esses personagens.

O PAPEL DA NOVELA É ENTRETER
As múltiplas famílias também estão retratadas em “Babilônia”. Autor da trama ao lado de Gilberto Braga e João Ximenex Braga, Ricardo Linhares cita os exemplos presentes na trama das 21h: além de Rafael e suas duas mães, Teresa e Estela, há mulheres provedoras, como Regina (Camila Pitanga), mãe solteira de Julia (Sabrina Nonata), que ajuda a mãe, Dora (Virginia Rosa), e o irmão, Diogo (Thiago Martins), e Karen (Maria Clara Gueiros), que sustenta o lar junto com a mãe, Zélia (Rosi Campos), já que o marido, Luis Fernando (Gabriel Braga Nunes) vive desempregado. Há, ainda, Tadeu (Cesar Mello), responsável pelos irmãos Wolnei (Peter Brandão) e Carlinhos (Cauê Campos) depois da morte dos pais; e Fred (Filipe Ribeiro), que, após a separação dos pais, opta por morar com Carlos Alberto (Marcos Pasquim), entre outros.

— Os novos arranjos familiares não são modismo. São a realidade do dia a dia brasileiro. Quem não vê essa mudança não olha ao redor – observa Linhares.

Em “Babilônia”, os autores contam não ter se apoiado em pesquisas (“Somos 100% intuitivos”, afirma Ximenes), mas nem por isso estão afastados do que acontece no seu entorno.

— O papel da novela é entreter. Acontece que o escritor busca, na vida real, matéria-prima para conflito. “Babilônia" reflete a diversidade das famílias na vida real – destaca Ximenes.

Coincidentemente, já que os personagens das duas novelas foram criados há bastante tempo, o debate sobre novas formações familiares está em voga no país. No último mês, as hashtags #emdefesadetodasasfamílias, #somostodosfamília e #nossafamíliaexiste marcaram presença nas redes sociais em resposta ao desarquivamento do Projeto de Lei 6.583/2013, mais conhecido como o Estatuto da Família, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que restringe família ao núcleo formado por um homem, uma mulher e seus descendentes. E que também proíbe a adoção de crianças por casais homoafetivos.

— O Estatuto da Família não é excludente apenas com famílias homoafetivas, mas também com as diversas formações familiares contemporâneas – comenta Linhares: — O estatuto é inconstitucional e anacrônico, poderia ter sido inventado por Aderbal Pimenta (Marcos Palmeira), o político corrupto e hipócrita da novela. A Constituição é clara: o Brasil é um país laico. Os fundamentalistas religiosos, portanto, não têm respaldo jurídico para tentar impor seu gosto pessoal.

Lícia tem opinião similar: — Me causa espanto a tentativa de criar um “manual de normalidade” a esta altura, quando o modelo de família tradicional deixou de ser maioria nos lares brasileiros, me parece defasada e ingênua.

ÍCONES DA TELEDRAMATURGIA
Advogada especializada em adoção, Silvana Monte foi uma das que iniciaram a reação ao desarquivamento do projeto do Estatuto da Família. Ela comemora a presença de lares formados por múltiplas combinações nas novelas e acredita que isso ajuda sim a derrubar preconceitos: — Quando se coloca dois ícones da teledramaturgia como Fernanda e Nathalia numa relação homoafetiva que perdura, como qualquer casamento, até a terceira idade, você mostra para a sociedade que o amor supera o preconceito e a homofobia. A gente precisa realmente desmistificar essa questão – avalia Silvana, que gostaria de ver Estela e Teresa engajadas na luta contra o estatuto usando as hashtags do movimento no Twitter.

Silvana explica que o estatuto não marginaliza apenas as famílias homoafetivas, mas todas as em que não há descendência biológica. Ela diz que os diferentes tipos de família são tirados de “invisibilidade” ao aparecer na TV: — Em “Império”, por exemplo, foi mostrada uma família poliafetiva, a de Xana (Aílton Graça), Naná (Viviane Araújo) e Antônio (Lucci Ferreira), que adota o menino Luciano (Yago Machado). Quando falamos de poliafetividade, não se trata de polissexualidade, isso não parecia haver nesse núcleo. A família hoje em dia se baseia no afeto e no carinho.

Representar na TV com naturalidade os novos arranjos familiares é o propósito de autores e atores. E, mesmo sem militância, as obras mostram que ainda existe preconceito. Em uma cena de “Babilônia”, Teresa é chamada à escola do filho para ouvir que o menino ter duas mães não é bem aceito e seria melhor que ela fosse chamada de “tia”. Em “Sete vidas”, Esther vê o filho se tornar um conservador.

— Estamos mostrando um casal que tem uma vida comum. O preconceito está diminuindo, mas ainda está aí. A sociedade já caminhou bastante – afirma Fernanda Montenegro.

— Estela e Teresa vivem uma relação sólida, de muito amor. Estão juntas há mais de 40 anos e passaram juntas por todo tipo de situação. Elas são parceiras da vida e criam o neto de Estela como um filho. Uma relação linda, uma família feliz! – define Nathalia Timberg.

Chay Suede completa: — Meu personagem não conhece outras mães que não sejam as dele, é cabeça-feita e tem uma família como qualquer outra pessoa. Toda família é única.

Naná (Viviane Araújo) e Xana (Aílton Graça), da recém-terminada “Império”, também são citados pela antropóloga Mirian Goldenberg: — É exemplo de família completamente fora do padrão, mas que convence por ter um lado humano. Afinal, quem disse que não existe vida sem sexo? A sociedade tem que passar a reconhecer os arranjos como legítimos, porque mesmo quando os comportamentos mudam, acho que os valores tradicionais ainda resistem – defende ela, que, no entanto, enfatiza que “novela é obra de ficção”: — Não acho que a novela tem que ser vanguarda de comportamento, é um produto para as pessoas se divertirem. Se isso virar uma obrigação, tira grande parte do encanto que é ser fantasia. “Meu pedacinho de chão” foi uma novela linda, que não abordou nenhuma dessas questões. Acho bacana quando a novela liberta não por obrigação.

O autor Aguinaldo Silva ressalta que, apesar de ficcionais, as novelas sempre procuram refletir o que acontece na vida real: “Para o bem ou para o mal”: — Seria hipocrisia fingir que isso não existe na ficção, não mostrar casais formados por pessoas gays, por exemplo. É um pouco obrigação do novelista tratar desse assunto de maneira positiva. A trama da Xana foi bastante avançada porque foram dois homens, uma mulher e uma criança juntos no final. Mas procurei criar personagens positivos. O público adorava a Xana e a Naná. Quando você tem a simpatia do telespectador, a torcida pelo personagem acontece.

Foi o que houve em “Amor à vida” (2013), quando Walcyr Carrasco juntou Niko (Thiago Fragoso) e o malvado redimido Félix (Mateus Solano). O casal se beijou no último capitulo – cena que entrou para a história das telenovelas – e terminou com dois filhos, um biológico de Niko, gerado por inseminação, e o outro adotado: — O importante ao mostrar as diversas formações familiares atuais é promover a aceitação. Eu tenho um livro infantil, “Meus dois pais”, sobre um menino que descobre que o pai vive com outro homem e percorre uma jornada de aceitação. Acho que o autor, em todos os seus trabalhos, tem que mostrar no que acredita, e eu acredito que a realidade é múltipla, com famílias tradicionais, conservadoras, liberais, inovadoras. Tudo faz parte de nosso mundo atual.

Outro ponto que Walcyr destaca é Niko ter adotado Jayminho (Kaiky Gonzaga), um menino negro e já mais crescido: — Acho importante promover a adoção interracial. Crianças negras costumam ser rejeitadas na hora da adoção. Crianças mais velhas também. Quis quebrar esse paradigma.

Já em 2007, Aguinaldo explica ter apostado em uma formação familiar “inédita”: — Em “Duas caras”, fiz um triângulo formado pela Dália (Leona Cavalli), Bernardinho (Thiago Mendonça) e Heraldo (Alexandre Slaviero). Quando Dália fica grávida, eles optam por não saber quem é o pai. E a filha de Dália é registrada por dois pais – recorda o autor.

MATERNIDADE EM QUESTÃO
Para Mírian, alguns tipos, no entanto, ainda não são muito retratados na ficção. Por exemplo, as mulheres que vivem sozinhas, que já somam 3,4 milhões em todo país. Isso, para a antropóloga, merece reflexão: — O legal é que as novelas estão mostrando que não existe um tipo de família, uma normalidade, uma obrigação. Só que eu acho que a novela ainda reforça a ideia de que para uma mulher ser normal, ela tem que se casar e ter filhos no último capítulo. Talvez seja um avanço mostrar que a felicidade é subjetiva, mas ao mesmo tempo acho que todo mundo se sente obrigado a cumprir um padrão que ainda continua forte como modelo. Na Alemanha, por exemplo, as mulheres escolhem não se casar. E quem disse que o homem tem que ser o provedor, que elas não podem se envolver com homem mais novo? Por que as mulheres sempre têm que ser o menos na relação? Ganhar menos, ser menos alta, menos velha – argumenta.

Filha da personagem de Regina Duarte em “Sete vidas”, a atriz Maria Eduarda crê que a novela ajuda a tornar situações como essas mais “palpáveis” aos olhos do espectador. Ela conta que, antes da trama, conversou com uma mulher que tinha dois filhos, um menino e uma menina, com sua companheira. Cada criança gerada por uma das mães por meio de inseminação: — Na escola, minha filha de 4 anos tem uma amiguinha com duas mães, outra que foi adotada por uma mãe solteira. Eu mesma não estou mais casada com o pai dela. Se antes esses arranjos eram vistos como fora do padrão, hoje configuram as infinitas possibilidades de família. O preconceito ainda está muito arraigado, falar e mostrar isso é mais um jeito de ir contra ele – analisa a atriz.

Doutor em teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana na USP, e integrante da Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão de Nova York (Emmy), Mauro Alencar também acredita que entretenimento e reflexão andam juntos na teledramaturgia: — Afinal, a telenovela conseguiu extrair do cotidiano a matéria-prima para a sua ficção. Portanto, segue com seu propósito de mediadora social. Tudo o que a novela apresenta já está na sociedade. Sua maior virtude é apresentar, explicar, levar a uma compreensão e, com isso, transformar a dor, o conflito proposto, em manifestação artística – explica.

Pioneira ao inserir em suas tramas avanços tecnológicos para criar dramas e conflitos nas histórias, como em “Barriga de aluguel” (1990), Gloria Perez acredita que Lícia Manzo está se aprofundando no tema em “Sete vidas”: — Em “Barriga de aluguel”, eu quis discutir a configuração de uma nova família a partir de uma criança com duas mães. A maternidade, até então, era inquestionável, e sempre foi uma evidência. A paternidade, sim, era questionada. Mas e quando você separa óvulo do útero? Muita gente associa a gravidez ao parto. Quis discutir a ética disso. Hoje esse tema já figura no código. A genética sempre foi um assunto que me interessou. Tudo isso cria núcleos familiares novos – observa Gloria.

Em “Sete vidas”, por exemplo, Marlene (Cyria Coentro) é uma mulher que se separa já madura e precisa do banco de esperma para gerar seu filho, Bernardo (Ghilherme Lobo), sozinha.

As formas contemporâneas de fertilização podem até se transformar em comédia. Na série “Pé na cova”, por exemplo, Odete Roitman (Luma Costa) e Tamanco (Mart’nália) decidem ter um filho por meio de inseminação artificial, usando como doador Marcão (Maurício Xavier), irmão de Tamanco. Mas as amostras são trocadas na clínica do Dr. Zóltan (Diogo Vilela), e nasce uma criança oriental para fazer parte da família, que já conta com o menino Sermancino (Gabriel Lima), adotado pelo casal. Na nova temporada da atração escrita por Miguel Falabella, prevista para o segundo semestre, veremos como está essa família: — Desde o início, eu sabia que queria escrever uma comédia sobre a tolerância. A minha ideia principal era uma bizarra família do Irajá que se mantinha unida e em pé por causa de um conceito de família, e consequentemente uma família tolerante, já que eles eram todos “marginais”. Agora, o grande conflito é o novo filho do casal, a criança chinesa concebida por inseminação artificial – adianta Falabella.

A expectativa de todos os autores parece ser, ao menos, fazer o público pensar: — Ao mostrar com naturalidade as novas famílias, as novelas levam o público a encarar de forma natural os novos arranjos que vê no dia a dia. O importante é ressaltar a igualdade de direitos de todos, não importa a orientação de cada um. O espectador não precisa concordar, mas refletir – pondera Linhares.


sábado, 14 de março de 2015

INEZITA BARROSO: QUANDO A VIOLA CHORA...

 Caricatura de Inezita: Zeca de Souza

“Só o tempo faz um violeiro...”.

Carreirinho (1921 - 2009)
Compositor, intérprete e violeiro brasileiro


Confesso que me familiarizei com a música caipira, ou melhor, com a cultura caipira propriamente dita, na década passada – período no qual realizei uma aprofundada pesquisa sobre a Festa do Divino no Distrito Federal. Uma rara oportunidade, eu diria, que me permitiu conhecer as estranhas dessa que é considerada a maior festa religiosa popular do Brasil, mas que, até então, me era alheia – por motivos que fogem a minha alçada, o livro que resultou desse trabalho ainda não foi publicado. O fato é que, à época, conheci muitos violeiros, alguns dos quais se tornaram meus amigos – de um deles tornei-me biógrafa; entrevistei e fotografei muitos desses caipiras, alguns eruditos; ouvi muitas modas de viola, algumas marcantes, e aprendi a apreciar esse universo embalado por cordas, rimas e melodias, a ponto de compor uma letra para uma moda: a história do português São Gonçalo do Amarante, o padroeiro dos violeiros. E foi assim, portanto, num ambiente eminentemente rural, que, vez por outra, me pegava assistindo ao Viola, minha viola, programa apresentado pela multifacetada Inezita Barroso, que, transmitido, ininterruptamente, desde 1980 pela TV Cultura de São Paulo, se tornou um altar da tradicional música de raiz. Daí ter sido com certo pesar que fiquei sabendo da última moda da Rainha da Música Caipira: no Dia Internacional da Mulher (8/03), ela pousou a viola e, num repente, aos 90 anos de idade, voou, vitimada por uma insuficiência respiratória aguda – Inezita estava internada desde o dia 19 de fevereiro no Hospital Sírio Libanês.


O cartunista brasileiro Mauricio de Sousa prestou a sua homenagem para a cantora Inezita Barroso através da personagem Chico Bento.


Paulistana quatrocentona, Inezita Barroso nasceu Ignez Magdalena Aranha de Lima num domingo de carnaval (4/3/1925), em São Paulo, ao som de marchinhas. Começando a cantar e estudar violão aos sete anos de idade, ainda aprendeu piano e viola, sendo muitas as influências musicais – a sua paixão pelas modas de viola foi despertada na fazenda da família, no interior paulista. Na adolescência, realizou pequenos recitais e shows e, aos 25, quando gravou o primeiro dos seus 85 discos ao longo da vida, entre 78 rpm, LPs e CDs, adotou o nome artístico que a tornou conhecida – o primeiro DVD musical da Rainha da Viola, como Inezita também era chamada, foi lançado em 2013, sintetizando os seus mais de 60 anos de carreira, durante a qual conquistou mais de 200 prêmios,  tornando-se uma das mais laureadas cantoras do Brasil, cuja trajetória, além da televisão, também inclui o rádio, o cinema e o teatro, onde atuou e produziu espetáculos musicais. Formada em Biblioteconomia, Inezita pesquisou a cultura caipira brasileira de Norte a Sul do país, com os seus méritos de folclorista reconhecidos pela Universidade de Lisboa, que lhe concedeu o título de doutora Honoris Causa em Folclore – era uma enciclopédia ambulante. E contagiante a sua voz de contralto absoluto, ainda mais quando, num ambiente majoritariamente masculino, de pinga, fumo de rolo e simpatias, o padrão da época para uma cantora, como ela define na biografia Inezita BarrosoRainha da Música Caipira, fruto de depoimentos ao jornalista Carlos Eduardo Oliveira e lançada em 2014, onde repassa os causos da sua vida, era o “da voz fininha de dondoca, muito água com açúcar pro meu gosto, ou o modelo voz de soprano” – em 2013, outra biografia da “madrinha dos caipiras” já havia sido publicada, ou seja, Inezita BarrosoA História de Uma Brasileira, de autoria do jornalista Arley Pereira, que, entre outros predicados, a retrata como uma desbravadora no meio musical. Pois. E no Dia Nacional da Poesia, onde lhe rendo homenagem, que a viola descanse em paz...


Nathalie Bernardo da Câmara