sexta-feira, 29 de março de 2024

QUANDO O ALHEIO INVADE O PRIVADO (II)


Foto: NBC

 

“Quem aceita o mal sem protestar coopera com ele”.

Martin Luther King Jr. (1929-1968), ativista político norte-americano

 

Por vezes, deparamo-nos com certos absurdos – a vida é repleta de situações estapafúrdias... Tanto que, particularmente, e não é de hoje, não me surpreendo com mais nada, seja, digamos, diante de algum dito fenômeno da natureza ou ante uma ação humana. O fato é que, certo dia de janeiro do corrente, ao abrir a caixa de correspondências da minha casa, uma das que chegou foi uma da Serasa, um serviço brasileiro de proteção ao crédito, destinada – pasme! – à falecida minha mãe (23.04.1940-29.01.2023), notificando-a de uma dívida pendente, com o seu Cadastro de Pessoa Física (CPF) inscrito no banco de dados da empresa, ora representando a instituição credora, ou seja, a Unimed Natal, Sociedade Cooperativa de Trabalho Médico com sede na capital do Rio Grande do Norte (RN)... Disparate maior não podia! Logo mamãe, que, em vida, nunca apreciou dever sequer um centavo – o que dirá após a sua morte! Sem falar que, depois do óbito da minha mãe no ano passado, a família deu baixa no seu plano de saúde, no caso, a Unimed Natal. Daí, comuniquei a chegada da notificação à minha irmã e ela disse para que ignorássemos o “episódio”, posto que, afinal, como eu já sabia, tudo estava devidamente regularizado, sendo descabida tal cobrança. Um acinte! E revoltante todo esse aviltamento, ainda mais quando não há débito nenhum para com o plano de saúde em questão. O problema é que esse tipo de prática é mais corriqueiro do que se pensa: a cobrança indevida de dívidas inexistentes. E não apenas engendradas por planos de saúde, mas também, um exemplo, por operadoras de telefonia, e a 3x4, seja com vivos, seja com quem já partiu... Daí lembrar da epígrafe do primeiro texto dessa série de registros abordando contextos de gestos desrespeitosos à privacidade, à invasão de privacidade, isto é: “Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques” – art. 12 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948[1]. Uma afronta, convenhamos! Porém, contando o ocorrido a outrem, foi-me sugerido processar a Unimed Natal... Na verdade, com o propósito de zelar pela memória da nossa mãe e por sua idoneidade, é a vontade que dá, mas não vale à pena o desgaste que esse tipo de iniciativa desencadeia. E sei que ela, mamãe, não prezaria uma atitude dessa natureza. Enfim, apesar de relutar escrever este, a indignação acumulou-se e... Por fim, sem mais nada a declarar,

Nathalie Bernardo da Câmara


[1] Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: ˂https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos˃. Acesso em: 17 de set. 2022.


 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

De aridez


O escaldante calor do verão

evidencia a perversidade da estação.

Padecendo, fadigados e indefesos,

corpos clamam por climas benfazejos.

Feito miragem, acenando aos leques de apelos,

a chuva cai, mas breve são os seus desvelos.

Em revide, arrogante e inclemente,

o sol tripudia, esfola, castiga – um demente,

cujo bafo irradia porções de venenos

indiferente ao alento de dias amenos...

 

Nathalie

Natal (RN), 1°-02/03/2022


 



sábado, 3 de fevereiro de 2024

Naufrágio

A Nicole Tinôco

 (03/02/1986-05/12/2023)

in memoriam

 

 

O marulho sibila o teu adeus... Não, não estava no script – ademais, cá entre nós, os oráculos erraram nas previsões, legando, convenhamos, lacunas tragadas pelas vagas, com a promessa não cumprida no fundo do mar... Porém, c’est la vie! E eu, ante um imenso oceano, ao longe vislumbrando emergir o teu semblante, um aceno... Quiçá, a pauta do dia, ou seja: a tua partida sem melindres, dispersando o relógio de areia – a ampulheta dos sonhos...



Na maresia,

sou ostra vazia...

E se ontem verdejava,

virei pau oco,

galho tosco, torto...

Flor a fenecer,

perdi aroma e frescor;

fruta desidratada,

descompasso ao plantear...

Embaçando ainda mais o meu olhar,

a noite também chorou:

nenhuma gota de orvalho sobrou...

 

Inconsolável,

sou desalento;

inabitável,

casa em ruínas

sem ecoar o mais lamentoso pio  

– faz frio...


Desolada,

embalada pelo torpor

– mélange de pesar, frustração e dor –

busco refúgio na copiosa saudade

e no amparo da melancólica pena

que a duras penas

fia esta legítima e pungente elegia,

nostálgica de um tempo

onde malgrado os malogros da vida

alinhavávamos o nosso bordado

– doce e singular poesia... 

 

Nathalie

 

Dezembro 2023



segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Recortes de uma saudade

 

Foto: Nathalie


A Salete Bernardo (23/04/1940-29/01/2023)

in memoriam

  

“Não tem azul, nem estrelas, a noite que enlutam os ventos”.

José de Alencar (1829-1877), escritor, jornalista e político brasileiro

 


Estéril é a contagem do tempo

a datar do termo da tua existência

– não retornarás...

 

Relógios para quem precisa de ponteiros!

Faço uso de tinteiros:

gerada numa manta de poesia

– o véu da minha placenta –

nasci em berço de afeto...

 

De criativa e fértil mente,

recordo-me da infância

– lúdica por excelência –

regada à ternura

e a extremados cuidados;

do bê-á-bá ensinado ainda em casa

e dos eventuais puxões de orelha...

 

Enquanto isso

– o calendário a passar –

entra em cena imatura fruta

latejando talentos a brotar,

amorosa e delicadamente

colhidos, acolhidos e degustados...

 

Pautada pela palavra,

ingrediente a temperar

a ciranda da minha vida,

e abraçando uma dada ideologia

– a minha “pitada de sal”[1]

fostes comigo,

a exemplo do teu próprio idealismo,

respeitosa e generosa...

 

Ah!, minha mãe, por onde andas?

São tantos os meus andores de barro

impregnados nas dores que escarro...

 

Hélas!, em lugar algum te encontro,

salvo na vívida lembrança do teu ser

e do quão sutil foi a nossa despedida,

como se de véspera antevisse a tua partida...

 

Envoltas no manto do orvalho

de uma cálida noite de verão

e após um meigo pedido teu,

aspiramos juntas o aroma que emanava

de uma das flores do teu jasmim,

cujo pé, quiçá também saudoso,

até hoje guardo para mim...

 

Desde então, busco em vão, sei,

uma plausível compreensão

– nunca a encontrarei –

para o teu adeus nada à francesa,

ficando eu assim tão dégradé,

mas igualmente um colosso

a tecer lacrimosos versos

por si só espalhados ao relento,

solitários, tristes e dispersos,

deixando-se levar pelo vento...

 

Sim, sempre a poesia,

neste caso – querendo ou não –

tábua de salvação que em seus meandros

dia após dia os meus passos encaminha...

 

Nathalie



[1] Nascido em Natal, Rio Grande do Norte, em 1921, mas morto e desaparecido nos porões da ditadura militar-civil no Brasil (1964-1985), em 1974, o advogado, jornalista e político comunista brasileiro Luiz Maranhão costumava dizer que enquanto houver um ser humano privado da sua “pitada de sal” não conquistaremos a tão decantada justiça social.

 

 Vou compatilhar um link de uma postagem que postei quando a minha mãe fez uma viagem sem volta: https://abagagemdonavegante.blogspot.com/2023/04/cronica-de-uma-morte-quica-anunciada.html