sábado, 31 de março de 2012

SOMBRAS DO PASSADO...


“No Brasil de hoje, os cidadãos têm medo do futuro, enquanto os políticos têm medo do passado...”.

Chico Anysio (1931 - 2012)
Humorista, ator, escritor e pintor brasileiro


Há exatos 48 anos atrás, o tempo fechou no Brasil. Afinal, com o golpe militar deflagrado no dia 31 de março de 1964, planejado antecipadamente com certa astúcia e contando com o apoio incondicional do governo dos Estados Unidos – nenhuma surpresa! –, teve início um dos períodos mais sombrios da História do país, cujo término, pelo menos aparentemente, deu-se mais de duas décadas depois – ufa! –, mais precisamente no ano de 1985. Enfim! O fato ocorreu mais ou menos assim... Em 1983, tendo sido eleito deputado federal pelo Mato Grosso no ano anterior, o engenheiro civil Dante de Oliveira (1952 - 2006) elaborou a Proposta de Emenda Constitucional nº 5, que, se aprovada, restabelecia as eleições diretas para presidente da República em 1984. Porém, para a infelicidade quase geral da nação, a Emenda Dante de Oliveira, como a referida proposta ficou popularmente conhecida, tendo, aliás, por seu teor, desencadeado o movimento civil e democrático Diretas já!, foi – não sem surpresas – derrotada por uma manobra política articulada pelo regime militar. Em seu lugar, contudo, foi instituído um colégio eleitoral, que, por sua vez, no dia 15 de janeiro de 1985, elegeu, indiretamente, o ex-governador de Minas gerais, o advogado Tancredo Neves (1910 - 1985), para presidente do Brasil.

Porém, no dia 14 de março, na véspera de tomar posse, Tancredo sentiu fortes e insuportáveis dores intestinais e teve de ser internado às pressas no Hospital de Base de Brasília, sendo submetido a uma cirurgia de urgência para a retirada de um tumor benigno do abdômen. Nesse ínterim, conforme estava previsto, o político maranhense José Sarney, que também havia sido eleito por via indireta como vice-presidente, não se fez de rogado e foi empossado no lugar de Tancredo, lendo, inclusive, o discurso previamente escrito pelo titular do cargo, no qual ele pregava a conciliação nacional e a instalação de uma assembleia nacional constituinte. Sarney, contudo, teria ficado à espera do pleno restabelecimento do mineiro de São João Del Rei para lhe transmitir o trono. Infelizmente, diante de um processo inflamatório que havia se instalado no seu aparelho intestinal, o quadro clínico de Tancredo complica-se – muitos não acreditaram e continuam não acreditando nessa versão –, sendo ele transferido para o Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde, após uma sequencia de novas cirurgias e de uma longa agonia, decidiram desligar os aparelhos de circulação e respiração artificiais que o mantinham em estado vegetativo e ele literalmente faleceu, embora tenham dito que ele morreu por causa de uma infecção generalizada.

Oficialmente, contudo, ou, quem sabe, por interesses escusos, o motivo da morte daquele que poderia ter sido o primeiro presidente civil eleito após o golpe de 64 foi divulgada como sendo diverticulite. Curiosamente, o dia escolhido para a eutanásia de Tancredo Neves – essa é a verdade dos fatos –, já que os aparelhos que o mantinham em coma foram desligados deliberadamente, foi o 21 de abril, exatamente o mesmo dia, embora no ano de 1792, em que esquartejaram o dentista e alferes Joaquim José da Silva Xavier, nascido em 1946 e mais conhecido como Tiradentes, oportunamente, inclusive, alçado à condição de mártir da Inconfidência Mineira, eclodida em 1789. Coincidência, não é? Enfim! Com a morte de Tancredo Neves, não nos restou que engolir a seco a manutenção de Sarney no cargo de presidente do Brasil. Em 1988, contudo, uma nova constituição é aprovada para os brasileiros, a qual, aliás, além de determinar a realização de eleições diretas para presidente da República em 1989 e de estabelecer princípios ditos democráticos para o país, era igualmente um instrumento que, legalmente, apagava os rastros deixados pela ditadura militar no Brasil, ressaltando que, à época, isso foi dito por certas pessoas que não valem confiança alguma nem, muito menos, o chão que pisam. Na verdade, essas pessoas só queriam engabelar o povo brasileiro.

E não é que elas tinham razão! Não em relação a conseguirem enganar a todos nós, mas ao dizerem que os rastros deixados pela ditadura militar seriam apagados. Tanto é que, depois do dia 18 de novembro de 2011, quando foi sancionada por la presidenta Dilma Rousseff a lei que criou a Comissão Nacional da Verdade com o objetivo de investigar crimes contra os direitos humanos cometidos durante a ditadura militar, o que todos têm visto é a tentativa, por parte dos militares e daqueles que, direta ou indiretamente, apoiaram o seu regime nada democrático, de boicote à toda e qualquer inciativa que vise o acesso, por parte dos membros da referida comissão, a documentos que possam contribuir com a investigação desses crimes – isso quando eles não tentam obstruí-la. O fato é que, com essa chaga que foi a ditadura militar no Brasil, muitos foram vítimas das sandices de celerados que, a ferro e ferro, detinham o poder, não restando ao povo brasileiro que rezar – deve advir daí o fervor da sua religiosidade – para que todos os que geriam ou davam sustentação ao regime, do general ao torturador, não se esquecendo, obviamente, dos congêneres, desaparecessem num piscar de olhos, ou melhor, da noite para o dia, igual eles fizeram quando impuseram a instauração de um dos mais tenebrosos períodos históricos pelo qual o Brasil já passou.





“Rezar” foi demais, não? E logo eu dizendo isso... Quem sabe não teria sido mais pertinente ter dito testemunhar – e em silêncio –, ou melhor, se fazer de cego diante das atrocidades cometidas por tão gentis homens de fardas, bem como diante da derrocada paulatina que eles destinaram à democracia no país?





Enfim! Na quinta-feira, 29, durante um debate na sede do Clube Militar do Rio de Janeiro, cujo agradabilíssimo tema era o golpe militar – não revolução, como, distorcidamente, continua sendo dito nas casernas – que surpreendeu o Brasil no dia 31 de março de 1964, deixando o país de calças curtas, o vice-presidente da entidade, o general da reserva Clovis Bandeira, fez, de fato, jus ao seu sobrenome, ou seja, deu uma bandeira danada ao declarar que a Comissão Nacional da Verdade é revanchismo do governo. Para ele, segundo a Agência Brasil, a única coisa a ser defendida pela comissão é a apuração dos crimes cometidos pela guerrilha de esquerda [ele não especificou qual] contra os militares. Não o contrário!





Encerrado, portanto, o debate e já fora da sede do clube, participantes do evento foram hostilizados por militantes de esquerda, que, pedindo punição para os responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura militar, não hesitaram em chamá-los de torturadores e assassinos. Não deu outra! Presentes no local, policiais militares utilizaram bombas de efeito moral e jatos de gás de pimenta para dispensar os manifestantes, que, aliás, não eram poucos...





No dia seguinte ao confronto diante da sede do Clube Militar do Rio de Janeiro, na quinta-feira, 29, entre participantes do debate que aludiu ao golpe militar de 1964 e militantes de esquerda, o ministro da Defesa Celso Amorim evitou entrar em polêmicas, mas, de acordo com a Agência O Globo, chegou a dizer: — Somos contra qualquer violência. Somos a favor de que haja sempre liberdade de expressão, desde que pacífica e respeitosa.





Ocorre que, diante da atual conjuntura, não dá para fugir dos fatos. Nem de certas cobranças. Na terça-feira, 27, por exemplo, a Organização dos Estados Americanos - OEA notificou o governo brasileiro das suas obrigações para apurar a morte do jornalista Vladimir Herzog durante o regime militar, tendo o país cerca de dois meses para apresentar a defesa. A notificação, por sua vez, foi enviada ao governo brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que abriu investigação para apurar se houve omissão do Brasil ao não punir os responsáveis pela tortura e pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. Indagado sobre a notificação, o ministro da Defesa Celso Amorim respondeu: — Não sei. Não recebi ainda. Isso é pelo Itamaraty.

Segundo, ainda, a Agência O Globo, “se considerar que essas explicações são insuficientes, a Comissão [Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, órgão da OEA, sediada em Washington, nos Estados Unidos] poderá remeter o processo para a Corte Interamericana de Direitos Humanos”. Neste caso, o Brasil correrá o risco de ser condenado. Infelizmente, nenhuma novidade, já que, em dezembro de 2010, o Estado brasileiro foi condenado pela mesma Corte por não ter investigado as violações contra os direitos humanos ocorridas na repressão à Guerrilha do Araguaia (1972 - 1975), não podendo, consequentemente, punir os culpados. Novamente, nenhuma novidade, já que, de acordo com informações noticiadas pelo Estadão, inclusive o Supremo Tribunal Federal - STF recusa-se a rever a Lei da Anistia, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, visto que a instituição entende ser a referida lei um meio de isentar das devidas responsabilidades os torturadores e aqueles que cometeram crimes graves, tais como desaparecimentos e mortes, durante a ditadura militar.



Desacato à autoridade





Não, Dilma Rousseff não está passando por nenhuma crise de identidade. Daí, portanto, não necessitar render-se ao conforto de nenhum divã. Na verdade, a charge acima apenas registra, com humor, o desrespeito nutrido por muitos militares contra ela, bem como contra a sua autoridade, na condição de presidente do Brasil, sendo, portanto, a sua máxima representante. E, isso, sistematicamente! Será, então, que já não está na hora de dá um basta nisso? Enfim! Não tem ainda um mês quando, na imprensa, mais precisamente no dia 5 do corrente, foi publicada uma nota de repúdio – intitulada Alerta à nação: eles que venham. Por aqui não passarão. – assinada por militares da reserva, à retirada, por ordem do ministro da Defesa Celso Amorim, de um manifesto assinado e postado no site Clube Militar – A Casa da República no dia 16 de fevereiro deste ano. A ordem, portanto, para a retirada do referido manifesto do site mencionado deu-se em função das críticas nele contidas à Comissão Nacional da Verdade, além das exigências feitas à la presidente Dilma Rousseff para que ela advertisse a ministra-chefe da Secretaria dos Direitos Humanos, a pedagoga Maria do Rosário, e a ministra-chefe da Secretaria de políticas para as Mulheres, a socióloga Eleonora Menicucci, por ambas criticarem o período no qual o Brasil viveu sob a égide da famigerada ditadura militar. Oxente, bichinho! E não é para criticar? Afinal, como se já não bastasse a caduquez impressionante do próprio Clube Militar, fundado no dia 26 de junho de 1887, o manifesto aparentou ser fruto de um delírio surrealista coletivo. Bom! O fato é que na nota divulgada, os militares da reserva não somente reafirmaram, “em uníssono”, a validade do conteúdo do manifesto, bem como disseram que não reconhecem “qualquer tipo de autoridade ou legitimidade” vindas do ministro Celso Amorim. Eita! Assim, desperta a minha curiosidade para ler na íntegra o tal do manifesto, embora soubesse que o mesmo não mais estava disponível no site onde, inicialmente, fora postado, empreendi uma pesquisa na internet e, não demorou muito, consegui uma reprodução do documento num blog que, antes da sua retirada do site dos militares, havia tido tempo hábil para salvar o original do manifesto nos seus arquivos. Porém, não foi sem surpresa que li um texto – muito mal escrito, por sinal –, cujo teor é irrelevante, sem o menor dos sentidos, e a sua divulgação nada mais foi do que um ato de insubordinação.





Cabe, portanto, à la presidenta Dilma Rousseff levar adiante , dando continuidade, à punição dos irresponsáveis que, não prevendo as consequências dos seus atos, agiram com o intuito de tentar desacreditar a Comissão Nacional da Verdade, que, aliás, não faz que investigar, digamos, os podres da ditadura militar. Além disso, os militares da reserva que subscreveram o manifesto – estéril por excelência – nem se iludam que, com o seu gesto, irão conseguir desmoralizar o atual governo, muito menos desestabilizar a democracia brasileira – a meu ver, uma desnecessária provocação...

Nathalie Bernardo da Câmara


REFÉM DO MEDO?


“A coragem é o medo vencido...”.

Gustave Flaubert (1821 - 1880)
Escritor francês


O tema segurança pública há dias já estava na pauta do meu blog, bem como escolhidas a ilustração e a epígrafe, quando soube de um caso de violência urbana ocorrido em Natal, no Rio Grande do Norte, que, inclusive, tão logo foi divulgado pela mídia, criou uma polêmica em torno de algumas particularidades referentes ao seu desenrolar e aos seus protagonistas. Bom! O fato é que, no dia 15 do corrente, após sair de uma farmácia e entrar no carro, um casal foi abordado por um desconhecido, que, empunhando uma arma de fogo, exigiu que ambos, marido e mulher, saíssem do veículo – de acordo com a imprensa, testemunhas presentes disseram que, esbravejando palavrões, o bandido tirou a mulher do carro com violência e a jogou no chão. Em seguida, obrigou o homem a sair do carro. Já dentro, portanto, do veículo, o assaltante colocou a arma no assento ao lado e, ao fazer a manobra para sair do local, foi, através do vidro do carro, o do lado do passageiro, que estava fechado, baleado duas vezes por uma das vítimas, no caso, o marido, que estava igualmente armado. Só que, ferido, o bandido saiu desarmado do veículo e tentou fugir, mas o homem, disparando mais seis tiros, o matou. Não demorou, o casal chamou um táxi e foi embora.

Na verdade, o fato só repercutiu na sociedade, gerando a polêmica que gerou, porque o homem que atirou no bandido, identificado como Julianderson Marcelo da Silva Pereira, 30 – considerado um foragido da Justiça, com extensa ficha criminal –, foi o professor e cirurgião-geral aposentado Onofre Lopes da Silva Júnior, 75, em cujo curriculum consta ter sido o primeiro diretor do Hospital Walfredo Gurgel, fundado no governo do advogado Cortez Pereira (1924 - 2004), durante o qual (1971 - 1975), aliás, quando do projeto Hope em Natal, que consistia no envio, por parte dos Estados Unidos, de um navio-hospital que prestava atendimento médicos a populações em desenvolvimento, lhe foi concedido, sob procuração, o direito de representar o governador do Rio Grande do Norte no período em que a embarcação estrangeira permanecesse em solo potiguar, fato que ocorreu em 1972. Além disso, foi igualmente diretor do Hospital Onofre Lopes, antigo Hospital das Clínicas, cujo atual nome do estabelecimento médico-hospitalar foi uma homenagem prestada ao seu pai, ou seja, Onofre Lopes da Silva (1907 - 1984), um dos fundadores da Faculdade de Medicina do Estado do Rio Grande do Norte, criada em 1955.

Fundador, igualmente, no ano de 1958, da Universidade do Rio Grande do Norte - URN, Onofre Lopes da Silva foi, ainda, o seu primeiro reitor, cargo que assumiu em 1959. No ano seguinte, quando a instituição foi federalizada, ele permaneceu exercendo o cargo de reitor, embora a sua nomeação oficial date de 1961, ficando à frente da instituição até 1971. Enfim! Por terem obtido reconhecimento em função do desvelo com o qual sempre exerceram a profissão de médico, além da relevante contribuição que deram ao serviço público, Onofre Lopes Jr. e o pai sempre estiveram em posição de destaque na sociedade, sendo, portanto, popularmente conhecidos no Rio Grande do Norte. Daí um dos motivos que, a meu ver, influenciou a opinião pública, inclusive – andam a dizer – a ampla cobertura dada pela imprensa à morte de um foragido da Justiça por um renomado médico que, a exemplo de todos que se formam em medicina, jurou curar e salvar vidas. Porém, com o referido ocorrido, o juramento feito por Onofre Lopes da Silva Júnior deu uma guinada de 360 ͦ. Afinal, além de ter tirado a vida de um ser humano, ele também deixou o local no qual o lamentável episódio aconteceu e não cumpriu o prazo estabelecido pela Justiça para prestar depoimento.

O motivo, contudo, para justificar o não cumprimento da lei pelo médico Onofre Lopes Júnior foi apresentado pelo advogado, Guilherme José da Costa Carvalho. No dia 19, o prazo para o médico apresentar-se na 5ª Delegacia de Polícia Civil, o advogado entregou um atestado médico, em nome do acusado, válido por cinco dias – provavelmente retroativo –, ao delegado Ulisses de Souza, responsável pelo inquérito instaurado no dia 16, evitando, assim, um mandado de prisão temporária contra o acusado – o inquérito aberto, aliás, qualifica o ocorrido como crime de homicídio. Enfim! Segundo o jornal Tribuna do Norte, o advogado teria dito que o médico possui não somente o registro da arma utilizada para matar Julianderson Marcelo da Silva Pereira, que tentou assaltá-lo, mas, também, uma autorização para portá-la – a referida arma já foi, inclusive, recolhida para exame de balística. De qualquer modo, no dia seguinte, 20, Onofre Lopes Junior apresentou-se ao delegado e prestou depoimento, sendo, contudo, liberado em seguida, além de ainda resguardar o seu direito de não falar com a imprensa. Sabe-se apenas que, após o depoimento do médico, o delegado iria analisar as perícias, ouvir as testemunhas e reconstituir a cena do crime.

De qualquer modo, de acordo com o delegado, as imagens gravadas pelas câmeras de segurança da farmácia diante da qual ocorreu o fato mostram que, quando chegou ao local, julianderson fazia-se acompanhar de outro homem na garupa da moto. E isso antes mesmo de o médico e a sua esposa estacionarem o seu carro no estacionamento do estabelecimento – detalhe esse que, pelo menos aparentemente, já descarta a possibilidade de o casal está sendo seguido. Para o delegado, tudo indica que a intenção inicial dos bandidos era a de roubarem a farmácia, mas, ao verem o casal, provavelmente pensaram que estavam diante de um “alvo [mais] fácil”, acrescentando que o segundo homem, ainda não identificado, teria fugido quando o médico sacou a sua arma, atirando no seu comparsa dentro do carro. O advogado Guilherme Carvalho, por sua vez, chegou a dizer que o médico agiu em legítima defesa, não existindo, portanto, crime algum a ser julgado. Mesmo assim, explicou, se a morte de Julianderson Pereira se caracterizar crime, a idade do aposentado será indiscutivelmente levada em consideração como atenuante para uma eventual condenação, podendo ele, inclusive, receber como pena o gozo da prisão domiciliar.

O que sabe, ainda, é que, como chegou a ser cogitado pelo delegado da 5ª DP a emissão de um mandado de prisão preventiva contra o acusado, o seu novo advogado de defesa – indicação de Guilherme Carvalho –, ou seja, Diógenes da Cunha Lima, entrou com um pedido preventivo de habeas corpus em favor do acusado. Porém, para o desembargador Rafael Godeiro, que julgou o referido pedido de salvo conduto, o instrumento foi desnecessário, já que, oficialmente, não há nenhuma denúncia formalizada contra o médico. Em declaração à imprensa, analisando o caso não como representante da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/RN, na qual preside a Comissão de Direitos Humanos, mas como criminalista, José Maria Rodrigues Bezerra, entende que a tese de legítima defesa é plausível, explicando, segundo a TN, que “as investigações policiais poderão levar a dois entendimentos: a legítima defesa ou homicídio privilegiado”, que, previsto no artigo de nº 121 do Código Penal Brasileiro, resulta na redução da pena, visto a ação ter sido impelida por motivo de violenta emoção e de relevante valor moral. Nesse caso, o excesso da ação é anulado pela violenta emoção, uma vez que não há como calcular a reação.

De qualquer modo, o criminalista Diógenes da Cunha Lima, autor, coincidentemente, do livro O MagníficoUma biografia de Onofre Lopes, no caso, o pai, lançado em 2009, diz que o caso em questão dispensa advogados, já que “não há crime em casos de legítima defesa”. Além disso, pelo que fiquei sabendo através de fontes que têm acesso à tese da defesa, baseada na versão que, até então, os defensores sustentam... Diferentemente das informações veiculadas pela imprensa, o médico Onofre Lopes teria dado apenas um tiro com a sua pistola 380 no bandido quando este tentava roubar o seu carro, não dois. Em seguida, enquanto fugia, por parar e se voltar algumas vezes em direção ao casal, podendo a qualquer momento – uma hipótese – disparar o seu revólver calibre 38 contra ele, Onofre voltou a atirar, mas, novamente, um único tiro, não seis. Tiro esse, aliás, segundo informações ue obtive, dado ainda dentro dos limites permitido por lei caso a vítima, para se defender, tire a vida do seu agressor, devendo, portanto, a reação do acusado, ser considerada como de legítima defesa. Afinal, segundo Diógenes da Cunha Lima, em situações como a vivida pelo médico Onofre Lopes e a sua esposa, a filantropa Sylvia Faye Raymond Lopes da Silva, “o direito de continuar vivo é do cidadão”. E ponto final.

Porém, não pensa assim o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular - CDHMP, para o qual, segundo fontes da própria entidade, prevalece a versão da mídia em relação à quantidade de tiros disparada pelo médico contra o seu agressor. Ou seja, Onofre Lopes teria disparado dois tiros quando o assaltante ainda estava dentro do carro e mais seis tiros quando, desarmado, ele tentava fugir do local. Segundo essas mesmas fontes, o fato em si foi uma grande tragédia: “Oito tiros”, num caso como esse, “são muitos tiros. E é quando legítima defesa caracteriza uma execução”, o que não deixa de chamar a atenção de membros do CDHMP, sobretudo o estardalhaço que está sendo feito em torno da morte de um excluído da sociedade por parte de um homem que nela está confortavelmente inserido, cujas fontes alertam para que as pessoas não peguem o exemplo em questão nem nenhum outro similar para se apegarem à falsa ideia de que todo bandido deve morrer e que quem mata automaticamente torna-se um herói, já que fez o que fez por omissão da polícia. Não obstante, concluem as fontes do CDHMP, quem comete um crime, independentemente da sua natureza, deve, sim, ser preso e julgado. Se culpado ou não, cabe à Justiça decidir.

Comunga dessa mesma opinião, o diretor do Conselho Estadual de Direitos Humanos - CEDH, o advogado Marcos Dionísio, que, em entrevista concedida à TN, “ainda que, em determinadas circunstâncias, o direito ampare a reação, a agressão paga com agressão gera barbárie. Retroage ao arcaico, ao olho por olho, dente por dente. Não há heroísmo nesse tipo de atitude”, lembrando que “a sociedade precisa recobrar a serenidade e também ser capaz de se solidarizar com a família do assaltante”. Segundo ainda o periódico, o delegado Alberico Noberto, diretor da Policia Civil da Grande Natal, considera que, diante da falta de estrutura da polícia judiciária, “sem pessoal e aparelho para investigar”, além da falta de políticas públicas em segurança, a reação da população era de se esperar. “Acaba a sociedade elegendo esta como a forma de combater a violência, o que não é. Foi mais uma vida ceifada, se é um marginal, se deve a sociedade, isso quem vai julgar é a justiça”. O promotor Luiz Eduardo Marinho da Costa, por sua vez, soma à carência do sistema de segurança “com uma polícia judiciária sucateada”, a existência de “leis benevolentes que urgem de uma reforma” – importante ressaltar que o Código Penal Brasileiro data de 1940...

Para a psicóloga Fernanda Zenteno Jeunon, não há padrão para medir ou prevê um comportamento em situações de grande estresse, como, no caso, um assalto. Tipo: uma mesma pessoa, exposta ao mesmo evento em tempos diferentes, pode, por exemplo, esboçar reações as mais diversas. Segundo Jeunon, para determinar a intensidade da reação, o ser humano, em geral, pondera alguns pontos considerados de risco: a integridade física da pessoa ou a de algum ente familiar ou, ainda, a de terceiros; o valor material e emocional da perda de um bem; quem é o agressor etc. Em seu artigo intitulado Atestado de óbito, publicado no Novo Jornal no dia 23 de março, o jornalista Rafael Duarte diz que, nos últimos dias, “as reações do povo chocaram mais que o próprio homicídio”. Afinal, para ele, “independente do que a Justiça decidir, ninguém há de negar que o que aconteceu, naquela tarde, foi um homicídio. Um homem matou outro. Simples assim. Se foi em legítima defesa cabe ao juiz decidir lá na frente, desde que o delegado não arquive o processo agora. Uma decisão complicada diante da atmosfera que se criou. Mas que deveria se basear apenas nos depoimentos de quem puxou o gatilho oito vezes e das testemunhas que assistiram tudo”.

Depois desse caso, o jornalista, que disse já andar assustado com o ser humano, passou a ter medo. “O que li nos jornais e nas redes sociais (...) tem reforçado um sentimento estranho. Onofre foi alçado à condição de herói porque, segundo o senso-comum, mandou para o quinto dos infernos um bandido que não passa de um Zé Ninguém fodido, um pária da escória da sociedade. Julianderson tinha 30 anos e virou o vilão da novela das 8 que morre no final porque ‘teve o destino que mereceu’. No afã de justificar o apedrejamento do bandido que virou defunto o Estado foi eleito o co-autor do homicídio (...) não pela má formação do sujeito que se tornou bandido”, mas pelo fato do poder público não ter “competência para manter essa gente presa e longe do tal cidadão de bem”. Rafael Duarte diz ainda que, nesse caso, o entendimento da opinião pública raciocina da seguinte forma: “se Julianderson optou pelo crime, se escolheu o errado em vez do certo, que pague com a vida”. Para ele, essa lógica é a do extermínio, não concordando, portanto, com a mesma. Abaixo, contudo, do artigo do jornalista, o comentário de um leitor me chamou a atenção por tornar público um fato que remonta ao passado de Onofre Lopes Júnior e, que, provavelmente, muitos desconhecem.

Segundo o leitor, de nome Jonaldo, que foi além de um simples comentário, já que relatou um fato ocorrido há cerca de vinte anos e, desde então, por algum motivo obscurantizado, o médico Onofre Lopes Júnior, “abalizado cirurgião e de reputação ilibada no meio acadêmico, ao entrar no hospital [Hospital Onofre Lopes, o qual, à época, dirigia, além de dar aulas] (...), agiu de forma bizarra ao sacar uma pistola e atirar na direção de um meliante que fugia com a bolsa de uma mulher que estava na fila no lado de fora do hospital”. Considerando insana e inesperada a atitude do médico, já que ele pôs em risco “a vida de estudantes, funcionários e pacientes que estavam entrando no saguão do hospital naquele exato momento”, o leitor evidencia “o descontrole daquele insigne catedrático”, mas que, “felizmente, não houve vítimas daquele surto insensato e irresponsável para os circunstantes”. O episódio, contudo, segundo ele, mudou o conceito que tinha “desse egrégio mestre”, não passando na sua cabeça que, depois de tantos anos, o mesmo homem “viesse ser protagonista de um homicídio qualificado. Um homicida com agravo de ter cometido uma verdadeira execução”. Para o leitor, a reação do médico, ao matar Julianderson, se caracteriza num “contrassenso”.

Afinal, ele prossegue, “ao invés de salvar da morte o assaltante, como era dantes afeito, o executa impiedosamente”. E que “se Julianderson optou pelo crime, a mesma coisa fez a suposta vítima. Quem comete homicídio é homicida e sempre o será, quer vá para a cadeia ou não. Quer tenha dinheiro ou não”. Por fim, acrescentou que sente pena “desse cidadão de idade provecta, com o andar já trôpego e cansado, gozando de bom conceito na sociedade e agora exaltado como herói. Tomara que não se jacte como tal”. Não obstante, um dia antes de publicados o artigo do jornalista e o comentário do leitor, o mesmo jornal publicou uma reportagem na qual tomamos conhecimento de que os advogados do médico Onofre Lopes Júnior, Diógenes da Cunha Lima e Igor Santos Steinbach, teriam chegado a um entendimento com o delegado Ulisses de Souza e que, por isso, eles acreditam que o inquérito aberto para apurar a morte de Julianderson Marcelo da Silva, que deverá ser considerada “excludente de ilicitude”, tende a ser arquivado já nos próximos dias. Segundo os advogados, tudo indica que, convencido da inocência do acusado, o delegado está disposto a enviar um relatório ao Ministério Público solicitando o arquivamento do processo.

O jornalista Anderson Barbosa, por sua vez, autor da reportagem mencionada, tentou, durante a sua realização, falar com o delegado Ulisses de Souza por diversas vezes, mas não obteve sucesso, visto que as chamadas não foram atendidas nem retornadas – não é de se estranhar, já que, na tarde da última quarta-feira, 27, fui pessoalmente à 5ª DP e tentei falar com o delegado, que se recusou a me receber. Assim, pedi a um funcionário da delegacia que pelo menos ele perguntasse ao delegado o motivo da recusa, considerando que eu havia me identificado como jornalista e que gostaria de esclarecer alguns aspectos que estavam a me intrigar no caso em questão. Em vão! Ao retornar, o tal funcionário disse que o delegado havia mandado me dizer que ele só receberia a imprensa quando o inquérito, que passou a correr em segredo de Justiça, estivesse concluído. Antes disso, nem adiantava insistir. Restou-me, portanto, ir embora, mas não sem antes dá uma olhada no carro do médico Onofre Lopes Júnior, que, aliás, por preservar uma prova inconteste, além de ser, como se diz, uma cena de crime, se encontrava na garagem da delegacia, próxima ao portão de entrada e de saída da repartição, ou seja, estava no meu caminho.

Impossível, portanto, não dá uma olhada. E dei, constatando duas perfurações no vidro que fica ao lado do assento do passageiro da frente – perfurações essas, considerando a distância entre elas, feitas por duas distintas balas que foram disparadas da arma do médico contra o assaltante quando este ainda se encontrava dentro do carro, atingindo a sua nuca e um dos seus braços. Assim sendo, se o médico tivesse dado apenas um tiro, como dizem alguns, deveria haver uma única perfuração no vidro com película do veículo, não duas, bem como somente um ferimento à bala no corpo de Julianderson, não duas. Afinal, nesse caso, seria logicamente impossível uma mesma bala atingir dois locais, a nuca e um braço, do corpo do assaltante ao mesmo tempo. Enfim! Só estou dizendo o que qualquer pessoa de bom senso diria ou, quem sabe, a Polícia Militar e o Instituto Técnico-Científico de Polícia - Itep, que chegaram ao estacionamento da farmácia onde tudo aconteceu para identificação e recolhimento do corpo, e o delegado Ulisses de Souza, da 5ª DP, responsável pela abertura do inquérito que investiga o caso. Enfim! Como se diz no meio policial, sobretudo quando está havendo uma investigação criminal, o que conta são as provas.

Gostaria, contudo, de levantar algumas questões, além das que já levantei sobre o caso, bem como das que, por exemplo, também foram levantadas pelas fontes do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular - CDHMP; pelo diretor do Conselho Estadual de Direitos Humanos - CEDH, o advogado Marcos Dionísio; pelo delegado Alberico Noberto, diretor da Policia Civil da Grande Natal; pelo promotor Luiz Eduardo marinho da Costa; pelo jornalista Rafael Duarte, do NJ; por Jonaldo, o leitor que comentou o artigo do referido jornalista, e que – é compreensível – também estão questionando muitas outras pessoas que, anonimamente ou não, se encontram igualmente intrigadas com o desfecho do caso envolvendo um médico e um excluído social, mas que, queiram ou não, é um ser humano. Agora, no que concerne ao relato do leitor, inserido no seu comentário sobre o artigo do jornalista, eu perguntaria: qual o motivo, apesar de cirurgião, que já curou e salvou muitas vidas, que leva o médico Onofre Lopes Júnior, dependendo da situação, trazer à tona o seu eu justiceiro ou fazer valer, num gesto extremado, o seu entendimento do que seja reagir a uma ameaça? Ambos, inclusive, divergentes do seu papel na sociedade, ou seja, a de médico...

Por que Onofre Lopes Júnior, detentor de um registro de arma e de autorização para portá-la, a levava consigo naquela ocasião? Seria costume? E por que, visto que não estava mais sob a mira de uma arma de fogo, sacou a sua pistola, disparando contra o assaltante, que, aliás, já tinha posto o seu revólver sob o banco do passageiro e estava indo embora, não representado mais uma ameaça nem para ele nem para a sua esposa? Por que, simplesmente, não o deixou levar o veículo, já que, segundo o delegado Ulisses de Souza, essa era a sua intenção? Por que, mesmo já tendo ferido o bandido com os dois primeiros tiros, não parou por aí e acionou a polícia? Por que deixou de considerar o fato de que, baleado e fugindo desarmado, o agressor não iria muito longe, deixando, portanto, que fosse capturado por quem de direito, ou seja, pela própria polícia, que, com certeza, sairia a sua procura no bairro tão logo chegasse? Por que, ainda, deixou o local do crime – sim, crime, porque foi isso o que aconteceu, já que nada justifica quem quer que seja a assassinar alguém a sangue-frio – antes mesmo da polícia chegar? Qual o nível do seu estado psicológico naquele momento? Qual o nível de sua tensão? Na sua consciência, era um ato de coragem ou uma tradução de medo?

E a sua fuga do local do crime? Seria a constatação de ter cometido um ato ilícito e que, por isso, seria preso em flagrante? Isso sem falar que – ainda bem que não aconteceu – alguma das balas disparadas pela pistola do médico poderia ter atingindo um desavisado transeunte que, porventura, estivesse próximo ao local onde os tiros foram dados. Sei não, mas, aludindo ao que disse o tal leitor já na primeira frase dos seus comentários, podemos estar, neste caso específico, diante de uma espécie de “paradoxo socrático”. De qualquer modo, de há muito me sinto igual ao jornalista Rafael Duarte, ou seja, assustada com o ser humano, com a sua imprevisibilidade, tipo acreditando sem acreditar. E isso independentemente de condição social, nível de instrução, ideologia, raça, credo... Só que o mais degradante disso tudo é a apologia que muitos fazem à violência sem pensar na barbárie que ela pode desencadear. Tanto que dois artigos que li, referentes ao caso em questão, que foi Se defender é crime e Coração valente, me fizeram pensar. Ou seja, a lei autoriza o cidadão a se defender em legítima defesa, mas não tipifica, nessas situações, a sua atitude como crime. Falando nisso, onde começaria e onde terminaria o direito à legítima defesa desse mesmo cidadão?

A subtração da vida de alguém que não representa ou deixou de representar uma ameaça constitui um ato criminoso? E o ato em si seria um gesto de valentia ou de covardia? Agora, quanto à coragem da qual nos fala Flaubert na epígrafe desta postagem... No sentido filosófico do seu significado, ela se refere à superação de algum obstáculo. O medo, por exemplo, cuja sensação pode chegar até mesmo a nos paralisar diante de não importa o quê: uma cobra, um rotineiro exame de sangue, a própria vida... Sim, a coragem, ainda, da aceitação da existência das adversidades inerentes à vida e que, para superá-las, temos de banir a sensação de medo, seja ela eventual ou crônica, nos tornando, portanto, pessoas mais fortes. Não, não falo de força física ou de uma suposta valentia, que pode, inclusive, incluir a covardia, que se esconde, por exemplo, atrás de uma arma, seja ela qual for – que o leitor, no caso, não distorça as minhas palavras. O título da postagem, por sua vez, de fato se refere à violência, urbana e/ou rural, mas que tem de ser combatida pelas autoridades competentes, não por civis – tenham ou não registros de armas e autorização para portá-las. Agora, se assim o for, corremos o risco de regredir à barbárie de certos períodos históricos. E isso não é legal...

Nathalie Bernardo da Câmara


sexta-feira, 30 de março de 2012

O BRASILEIRO CAI NO CHORO


 Foto: Rubens Américo/O Cruzeiro/D.A. Press - anos 1950

“Ademilde está para o choro como Pelé está para o futebol...”.

Alexandre Moreira
Bandolinista brasileiro que, em abril, acompanharia a intérprete no show que ela havia previsto para fazer em Natal. Moreira e outros músicos, como Fernando Botelho (violão de 7 cordas), Domício Damásio (violão) e Rafael Almeida (cavaquinho), estão planejando um show em homenagem à Ademilde no dia 24 de abril. Provavelmente, segundo ele, no Teatro de Cultura Popular da Fundação José Augusto, em Natal.


Na última quarta-feira, 28, o povo brasileiro teve de se confrontar com a perda de mais um dos seus artistas consagrados. Aos 91 anos de idade, quem nos deixou a chorar desta vez foi a divina e graciosa Ademilde Fonseca (1921-2012), mais conhecida como a Rainha do choro, tendo sido, inclusive, considerada a primeira cantora nordestina a divulgar o gênero no país e a popularizá-lo por toda parte. Natural de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte, mais precisamente de um lugarejo chamado Pirituba, que, segundo ela, em um antigo depoimento, possuía, à época, apenas “umas poucas casinhas”. De Pirituba ao patamar da fama, contudo, muitas águas rolaram – e não somente as de março – para que, um dia, ela conquistasse o seu título de nobreza. O referido depoimento, por sua vez, parte integrante do volume 4 da coleção A Música Brasileira deste século [XX], por seus autores e intérpretes, lançado em 2000 pelo Sesc de São Paulo e pela Fundação Padre Anchieta, é apresentado pelo crítico musical brasileiro Moacyr Andrade, para quem, aliás, “Ademilde é a fixadora de uma das modalidades de maior aceitação de nossa música popular: o chorinho com letra”.

E tudo isso começou quando, em 1942, numa festa no Rio de Janeiro, o compositor, flautista e maestro Benedito Lacerda (1903 - 1958) solou Tico-Tico no fubá, de autoria do compositor e instrumentista Zequinha de Abreu (1880 - 1935), que a criou por volta de 1917, embora a letra, do dentista Eurico Barreiros, tenha sido criada apenas em 1931, ano em que foi gravada pela Orquestra Colbaz, do maestro Gaó (1909 - 1992), tendo sido provavelmente essa a gravação que, coincidentemente, então com cerca de dez anos idade, Ademilde conheceu e aprendeu a cantar. Não deu outra! Ademilde não somente cantou Tico-Tico no fubá, acompanhada pelo regional de Benedito Lacerda, como, por sua irrepreensível interpretação, logo se viu gravando a composição, em 78 rpm, nos estúdios da Columbia – futura Continental –, à época dirigida pelo compositor Braguinha (1907 - 2006). Regravada, portanto, a composição, a primeira com voz depois da morte de Zequinha de Abreu, Tico-Tico no fubá foi não somente o primeiro disco de Ademilde, mas, também, o seu primoroso cartão de visita, que, por si só, já lhe valia o título de nobreza, ou seja, de rainha do choro.

Enfim! Para quem “o brasileiro tem que tomar jeito”, se referindo ao pendor dos seus políticos pela corrupção, Ademilde diz que não chegou a pegar o cinema mudo, mas, quando menos esperou, “já estava no mundo”. Afinal, a música começou muito cedo na sua vida. Um dia, desafiando o establishment, além de se imiscuir num gênero tipicamente masculino, que era o choro, bem como nas suas animadas rodas, ela passou a cantá-lo, mas apenas porque, segundo o jornalista Eduardo Tristão Grião, era “dona de uma articulação vocal de impressionante habilidade”. Um dos registros mais célebres de Ademilde foi Brasileirinho, choro criado em 1947 pelo compositor Waldir Azevedo (1923 - 1980), chamado de o mestre do cavaquinho, cuja letra é de autoria de Ruy Pereira da Costa (1920 - ?). “A agilidade dela para acompanhar, com a letra, a melodia do cavaquinho em alta velocidade é impressionante”. Segundo Moacyr Andrade, “Ademilde Fonseca não tem sucessoras: ninguém chega perto da espantosa agilidade e do andamento realmente vertiginoso com os quais, sem perder um mínimo da perfeita dicção e do timbre viçoso, alterou a trajetória do choro”.


Em 1975, para homenageá-la, a antiga dupla João Bosco & Aldir Blanc inclusive compôs para ela o chorinho Títulos de nobreza - Ademilde no choro:



Instrumentos típicos do choro brasileiro (gênero, aliás, no qual todos os que lhe são ligados são chamados de chorão): violão de 7 cordas, violão, bandolim, flauta, cavaquinho e pandeiro.


A MPB está de luto? Está, mas, sobretudo, o povo brasileiro, que, literalmente, caiu no choro...

 
É, um mês sem graça alguma, março, já que, além das perdas de artistas brasileiros – não pretendo fazer do meu blog nenhum obituário –, eu, particularmente, quebrei o meu pé, passando, circunstancialmente, a andar de cadeira de rodas – episódio sobre o qual, inclusive, falarei no mês de abril, que, aliás, está na iminência de despertar.

Ah! Para quem aprecia...

Tico-Tico no fubá – Música de Zequinha de Abreu e letra de Eurico Barreiros, interpretada por Ademilde Fonseca:

Brasileirinho – Música de Waldir Azevedo e letra de Ruy Pereira da Costa (instrumental):

Brasileirinho – Interpretado por Ademilde Fonseca:

Camisa Listrada – Letra e música de Assis Valente (1911 - 1958), com interpretação de Ademilde Fonseca:


Nathalie Bernardo da Câmara



quinta-feira, 29 de março de 2012

+ 1 QUE SAI DE CENA...



Jornalista, cartunista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor brasileiro



O questionamento feito por Millôr Fernandes na charge acima é uma alusão a um mal entendido quando do registro em cartório da sua certidão de nascimento, já que, na verdade, o seu verdadeiro nome era Milton Viola Fernandes. Assim, graças a uma duvidosa caligrafia do tabelião, Milton virou Millôr, que, aliás, só descobriu o erro na certidão aos dezessete anos e até achou graça, adotando um novo nome, que – parece – lhe deu sorte. É cada uma! O fato é que, hoje, será realizado o velório daquele que, para o cartunista brasileiro Ziraldo, Millôr foi “um grande filósofo”, odiando, mais que tudo, as frases feitas. Segundo o amigo, Millôr fazia piadas, mas nunca uma piada barata, um trocadilho, mas sim uma coisa profunda, sendo a sua maior arma o humor afiado. O “escritor sem estilo”, contudo, como Millôr mesmo auto se definiu, nos deixou órfãos do seu apurado humor no último dia 27, naquele onde, no caso, o Brasil, todo dia, para ele, é 1º de abril, ou seja, o Dia Mundial da Mentira. Irônico, não, Milton? Não foi à toa que, certa feita, ele disse que o seu script era original. Daí não morrer no fim. De fato! Millôr não morreu. Ele, simplesmente, se encantou. Ganhou asas e voou. E o tempo corre, continua a correr: pif-paf, pif-paf, pif-paf...



Enquanto isso, nos Estados Unidos...



Adrienne Rich by Martina Hynan

“O que acontece entre nós aconteceu durantes séculos. Sabemos disso através da literatura...”.

Adrienne Rich
Feminista, poetisa e ensaísta norte-americana


Não importa a nacionalidade, as mulheres estão de luto, já que, na última terça-feira, 27, Adrienne Rich, um dos maiores ícones do feminismo no mundo foi pregar a sua palavra noutras plagas, não restando ao jornal The New York Times que enaltecer no obituário da autora toda uma vida dedicada à luta pelos direitos das mulheres e das minorias de maneira em geral, bem como o seu posicionamento contra não importa qual guerra. Além disso, Rich igualmente destacou-se por defender ideias sempre à frente do seu tempo. Tanto que, muito antes de serem criados e ficarem na moda os termos de certas questões, tipo, por exemplo, a de identidade, ela de há muito já havia firmado a sua. Não satisfeita, ergueu a sua bandeira e expandiu a sua causa em versos de poesia. Que assim o seja, então, onde quer que ela esteja...

Nathalie Bernardo da Câmara


quarta-feira, 28 de março de 2012

CONCRETO NOSSO DE CADA DIA


“Outro dia, entrei no mato para piar um inhambu e o que saiu de trás da moita foi um Volkswagen...”.

Tom Jobim (1927 - 1994)
Compositor, cantor e instrumentista brasileiro


Não é de hoje que a verticalização cada vez mais frequente e desenfreada de Natal, capital do Rio Grande do Norte, chama a minha atenção, bem como a da maioria dos seus moradores, nascida ou não na cidade. Certa vez, contudo, no dia 21 de junho de 2011, publiquei a postagem intitulada Cidade do Sol (http://abagagemdonavegante.blogspot.com.br/2009/05/7-em-1-castrar-ou-nao-castrar-eis.html), na qual teci algumas considerações a respeito, ou seja, “o gritante aumento populacional” de Natal, o comprometimento preocupante da “população local, que, não faz muito tempo, ainda podia desfrutar da brisa benfazeja que, devido à localização estratégica do lugar, era, generosamente, ofertada pelo mar, que, aliás, nunca pediu nada em troca. Ao contrário! Sempre esteve a dar mais e mais...”. À ocasião, mencionei, inclusive, le coup de foudre, ou seja, o amor à primeira vista de muitos turistas por Natal. Afinal, não demora muito para que, mesmo de passagem, os turistas conheçam “a beleza das suas paisagens” naturais, “o calor humano dos nativos” e “a sua peculiar gastronomia”, logo caindo de amores pela chamada Cidade do Sol, findando por decidirem morar aqui – a gota a mais que sempre impulsiona especulações imobiliárias e alimenta a ambição da construção civil, que, aliás, já tendo explorado terrenos outrora desocupados, nos quais, inclusive, da noite para o dia, despontam edificações as mais diversas, de uns tempos para cá, tem investido na compra de novos espaços, digamos, alternativos – alternativos para a construção civil, né? Ou seja, a compra de um grande terreno habitado, cuja transação consiste numa troca: o terreno, com tudo o que nele tiver, por certa quantidade de apartamentos no edifício que será construído no local.

Ocorre que, profundamente ligados pelo afeto a casa na qual, por exemplo, moram há décadas, muitos não aceitam a oferta. Outros, contudo, apesar dos sentimentos que nutrem por aquela que lhe deu teto e histórias, boas ou não – não importa –, ao longo da vida, aceitam a proposta – foi o caso da minha mãe, que logo estará vendo a sua casa sendo derrubada para, em seu lugar, ser erguido um edifício sabe-se lá de quantos andares e que, sem dúvida alguma, comprometerá ainda mais com a poluição visual da cidade. Daí que, “diante de tantos obstáculos, a brisa do mar ou recua ou vai para outro lugar, não mais para a cidade. Quem perde com isso? Todos os que moram em Natal, que virou um forno abafado e quente, insuportavelmente inabitável, sobretudo para quem é avesso a calor. E com o efeito estufa, então! Isso sem falar na erosão inevitável das dunas...”. Segundo ainda a referida postagem, “o pior é que, com o crescimento populacional, aumenta o acúmulo de lixo e a quantidade de veículos circulando pelas ruas da cidade, que, desde os seus primórdios, foi privada de largas avenidas, o que agrava o fluxo de carros, tornando o trânsito estressante e sufocante, devido à emissão em demasia de gás carbônico na atmosfera. É poluição sonora, visual, do solo, do ar...”. A solução para o problema em questão? Confesso que desconheço, mas tenho curiosidade em saber se há alguém que a tenha. Se tiver – não se acanhe, como se diz no Nordeste –, me avise! Enquanto isso, eu aproveito o ensejo para parafrasear alguns dos versos da letra Águas de Março, de autoria daquele que, em vida, foi não somente um amante incondicional do seu lar, o Brasil, mas, também, tão criativo, ou seja, Tom Jobim: É cal, é ferro, é o fim do caminho, é um resto de casa, é o concreto no ninho...


Nathalie Bernardo da Câmara


terça-feira, 27 de março de 2012

27 DE MARÇO:
DIA NACIONAL DO CIRCO E DIA MUNDIAL DO TEATRO



“Democracia é a arte de, da gaiola dos macacos, gerir o circo...”.

Henry Louis Mencken (1880 - 1956)
Jornalista e crítico social norte-americano



Peça em cartaz: A Galinha dos ovos de ouro




“Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de ideias e paixões. Tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro! (...) Atores somos todos nós e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”.

Augusto Boal (1931 - 2009)
Diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro



Ao mesmo tempo, circo e teatro no sentido pejorativo das respectivas palavras...



“O ser alienado não procura um mundo autêntico...”.

Paulo Freire (1921 - 1997)
Educador brasileiro


Nathalie Bernardo da Câmara




209 (OU MAIS) RAZÕES PARA SORRIR...


“Creio no riso e nas lágrimas como antídotos contra o ódio e o terror...”.

Charles Chaplin (1889 - 1977)
Ator, diretor, produtor, humorista, empresário, escritor, comediante, dançarino, roteirista e músico britânico – haja versatilidade!

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“O humor sempre funciona. Ninguém reclama de rir...”.
 



Enquanto isso...





Ocorre que o céu não estava devidamente adaptado para, de uma só vez, atender à demanda. Isso sem falar que os recém-chegados mais pareciam alienígenas pairando sobre as nuvens.


Amarildo: — Não existiu nem existirá outro igual...






E a saia justa de Deus, diante da burocracia divina!





Causou ira até na Dercy...





Já no país da Cobra Grande...





Não é que ele está mesmo vivo! Vivinho da Silva! E, o que é pior, flanando em Brasília...


Cláudio Oliveira: — Na charge acima, a homenagem a Chico Anysio, um dos mais importantes humoristas da TV brasileira. Fazia humor popular, sem cair no besteirol e na apelação. Desde criança, eu assistia aos programas com os seus geniais personagens. Um deles, o atualíssimo deputado Justo Veríssimo.



Na linha, contudo, com Passo Fundo, no Rio Grande do Sul...


Salomé: — E aí, guri, já esbarrou no nosso amigo?
Deus: — Já...
Salomé: — E como foi o encontro?
Deus: — Desconfortável, já que ele queria porque queria entrar no céu com toda uma tropa de elite.
Salomé: — Barbaridade, tchê!
Deus: — E você sabe (não sabe Salomé?) que não é porque o céu é um paraíso que não vamos ter as nossas regras.
Salomé: — Tô sabendo, guri, tô sabendo.
Deus: — Só que o pior não foi isso...
Salomé: — Não?
Deus: — O pior foi quando ele encontrou a Dercy Gonçalves.
Salomé: — Pior? Como assim, se o Chico e a Dercy sempre foram tão amigos?
Deus: — Por isso mesmo! Com ele, a Dercy se sentiu mais à vontade e, quando soube que eu não havia permitido a entrada no céu das múltiplas personalidades do Chico, disse para eu pegar o beco, soltou um palavrão e fez até aquilo...
Salomé: — Já sei: ela te estirou o dedo.
Deus: — Estirou. E, quando eu fui pedir que se portasse, que tivesse mais modos, quase me deixou surdo com outros palavrões, mais desbocados, vale salientar, do que os que ela dizia quando chegou aqui.
Salomé: — Tu falas sério, guri? A Dercy armou um barraco?
Deus: — Tanto que eu precisei chamar um negociador.
Salomé: — Negociador? Como assim, guri?
Deus: — Sim, aí do Brasil, que, inclusive, vez ou outra, presta serviços aqui para nós...
Salomé: — Do Brasil?
Deus: — Coisa terceirizada.
Salomé: — E qual o nome do sujeito?
Deus: — Se eu não me engano, acho que é Zé...
Salomé: — Quem, guri?
Deus: — Zé, o negociador.
Salomé: — Sei...
Deus: — E foi somente graças a ele, o Zé, que conseguimos controlar a situação. A Dercy, por exemplo, depois desse episódio, até deixou de falar palavrão e estirar o dedo. Um milagre divino!
Salomé (abafando o telefone com a mão, para não ser ouvida, e dizendo para si mesma): — Perdeu a graça... Ah, eu faço a cabeça do Chico ou não me chamo Salomé!



Nesse ínterim, em uma dada escola da rede pública de ensino de um recôndito qualquer do país da Cobra Grande...


“A libertação através da educação é um esforço coletivo...”.

Paulo Freire (1921 - 1997)
Educador Brasileiro


No dia 24 do corrente, seguido à morte do humorista, publiquei a postagem CHICO ANYSIO: — Não tenho medo de morrer, tenho pena. (...) Mas, que bom que valeu!


Já no dia 26, postei uma Homenagem do chargista Ivan Cabral ao humorista Chico Anysio:


Nathalie Bernardo da Câmara