quarta-feira, 29 de setembro de 2010

SER OU NÃO SER HONESTO: EIS A QUESTÃO



Embalados pela temperança e cuja força é a passiva (yin), os nativos do signo de Libra realmente surpreendem. É o caso do escritor italiano Italo Calvino (1923 - 1985), assumidamente libriano, que, em Um general na biblioteca (2001), nos lega raccontini curiosíssimos, a exemplo de A Ovelha negra, continho escrito em 1944, quando o autor, devido a sua militância política, filiado que era ao Partido Comunista Italiano, com o qual, inclusive, rompeu em 1956, estava preso pelo regime fascista na Itália... Daí ser o conto um gênero literário das sociedades caóticas, como já afirmou o escritor brasileiro Moacyr Scliar? Para a escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, sim, “porque ele é rápido, de curta duração”. Afinal, ela questiona: “O que existe no caos? Justamente a falta de tempo, de perceber o outro”. Para ela, o romance, por sua vez, é para um tempo de paz e de tranqüilidade.

Enfim! Os raccontini de Um general na biblioteca, como eu já mencionei nos dois posts anteriores, foram selecionados e organizados postumamente pela tradutora argentina Esther Calvino, viúva do jornalista, contista, romancista e ensaísta italiano. Já a tradução desta edição para o português é assinada pela brasileira Rosa Freire d’Aguiar, sendo publicada pela editora Companhia de Bolso em 2010, cuja venda, aliás – continuo insistindo que, cada vez mais, não entendo o motivo – é proibida em Portugal... Mas, e A Ovelha negra? Com conotações diversas, a expressão, no caso do continho em questão, se refere, ironicamente, a um dito cidadão que, por prezar por sua honestidade, é a única exceção em um país onde todos são ladrões e no qual todos se locupletam à custa de outrem – qualquer semelhança com a realidade brasileira é, apenas, mera coincidência...





Quanto a Calvino, que, certa vez, disse: “Entre os meus familiares somente os estudos científicos eram honrados: um tio materno meu era químico, professor universitário, casado com uma química; tive dois tios químicos casados com tias químicas. (...) Eu sou a ovelha negra, o único literato da família”. Isso sem falar que o seu pai era agrônomo e a sua mãe botânica... De qualquer modo, feliz do leitor, que, por Calvino ser um escritor, pode desfrutar dos seus textos sempre tão sagazes, perspicazes, irônicos e repletos de bom humor, em um estilo ágil, cuja estrutura narrativa está isenta de elementos de peso. Muitos dos seus textos, inclusive, são, ainda, parábolas por ele inventadas; outros inspirados em fábulas lidas ou contadas. Eis, portanto, o irônico divertido, como Calvino, que acreditava que o horizonte é a única reta contínua, ficou conhecido em Paris!
 

Nathalie Bernardo da Câmara






A Ovelha negra

 

HAVIA UM PAÍS ONDE TODOS ERAM LADRÕES.
          
À noite, cada habitante saía, com a gazua e a lanterna, e ia arrombar a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado, e encontrava a sua casa roubada.

E, assim, todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e este um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último, que roubava o primeiro. O comércio naquele país só era praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinquentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos, por sua vez, só se preocupavam em fraudar o governo. Assim, a vida prosseguia sem tropeços, e não havia ricos nem pobres.

Ora, não se sabe como, ocorre que no país apareceu um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco e a lanterna, ficava em casa fumando e lendo romances.

Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não subiam.

Essa situação durou algum tempo: depois foi preciso fazê-lo compreender que, se quisesse viver sem fazer nada, não era essa uma boa razão para não deixar os outros fazerem. Cada noite que ele passava em casa era uma família que não comia no dia seguinte.

Diante desses argumentos, o homem honesto não tinha o que objetar. Também começou a sair de noite para voltar de madrugada, mas não ia roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Andava até a ponte e ficava vendo passar a água embaixo. Voltava para casa e a encontrava roubada.

Em menos de uma semana, o homem honesto ficou sem um tostão, sem o que comer, com a casa vazia. Mas, até aí, tudo bem, porque era culpa sua. O problema era que seu comportamento criava uma grande confusão. Ele deixava que lhe roubassem tudo e, ao mesmo tempo, não roubava ninguém. Assim, sempre havia alguém que, voltando para casa de madrugada, achava a casa intacta: a casa que o homem honesto deveria ter roubado. O fato é que, pouco depois, os que não eram roubados acabaram ficando mais ricos que os outros e passaram a não querer mais roubar. E, além disso, os que vinham para roubar a casa do homem honesto sempre a encontravam vazia. Assim, iam ficando pobres.

Enquanto isso, os que tinham se tornado ricos pegaram o costume, eles também, de ir à noite até a ponte para ver a água que passava embaixo. Isso aumentou a confusão, pois muitos outros ficaram ricos e muitos outros ficaram pobres.

Ora, os ricos perceberam que, indo à noite até a ponte, mais tarde ficariam pobres. E pensaram: “Paguemos aos pobres para irem roubar para nós”. Fizeram-se os contratos, estabeleceram-se os salários, as percentagens: naturalmente, continuavam a ser ladrões e procuravam enganar-se uns aos outros. Mas, como acontece, os ricos tornavam-se cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

Havia ricos tão ricos que não precisavam mais roubar e que mandavam roubar para continuarem a ser ricos. Mas, se paravam de roubar, ficavam pobres porque os pobres os roubavam. Então pagaram aos mais pobres dos pobres para defenderem as suas coisas contra os outros pobres. E, assim, instituíram a polícia e construíram as prisões.

Dessa forma, já poucos anos depois do episódio do homem honesto, não se falava mais de roubar ou de ser roubado, mas só de ricos ou de pobres. E, no entanto, todos continuavam a ser pobres.

Honesto só tinha havido aquele sujeito, e morrera logo, de fome.





terça-feira, 28 de setembro de 2010

O SENHOR DAS ÁGUAS


“Enquanto o poço não seca não sabemos dar valor à água...”.

Thomas Fuller (1608 - 1661)
Historiador britânico
 
As voltas com Um general na biblioteca, do escritor italiano Italo Calvino (1923 - 1985), me deparo com uma pérola de raccontini, que é O Chamado da água, escrito em 1976, no qual o autor reflete sobre a água encanada, que bem pode ser considerada uma das grandes conquistas da civilização humana. Assim, lendo o continho, parece até que Calvino já antevia um dos grandes problemas que, junto com o aquecimento global, tem ameaçado a sobrevivência da Terra – problemas esse, aliás, que, se por um lado, anda tirando o sono de muito ambientalista; por outro é ignorado a 3x4 por uma grande parcela da população mundial, que, para obter água, basta, simplesmente, abrir uma torneira, embora, na maioria das vezes, não haja controle do seu consumo, advindo daí o desperdício. Sem falar na contaminação dos rios, dos lagos e dos lençóis freáticos pelo próprio homem.

Ao mesmo tempo, outra grande parcela dessa mesma população vê-se privada dos benefícios da tecnologia e da generosidade do tempo, que, através da chuva, por exemplo – potencialmente fonte de água para o consumo humano diário, contemplando as suas mais diversas necessidades –, poderia dispor nem que fosse de uma gota desse líquido que, segundo o pintor e cientista italiano Leonardo da Vinci (1452 - 1519), que, inclusive, é responsável por inventos hidráulicos, “é o veículo da natureza”. Um paradoxo! Daí que, em seu O Chamado da água, Calvino nos lega uma poética, sensível e bela reflexão sobre esse veículo da natureza, cuja fórmula química é conhecida por H2O. Assim, em mais um dos seus breves contos, que tem como uma das suas características a economia de recursos, o escritor nada mais faz do que render uma homenagem aos recursos hídricos: a gota da vida...

Como foi dito no post anterior, Parábola da incomunicabilidade, os raccontini de Um general na biblioteca foram selecionados e organizados postumamente pela tradutora argentina Esther Calvino, viúva do jornalista, contista, romancista e ensaísta italiano, enquanto a tradução desta edição para o português é assinada pela brasileira Rosa Freire d’Aguiar, sendo publicada pela editora Companhia de Bolso em 2010, embora a sua comercialização – continuo insistindo que não entendi o motivo – seja proibida em Portugal... Aproveito, portanto, o ensejo para transcrever quatro passagens do continho O Chamado da água, que, a bem da verdade, não é que momentos de inspiração, poesia e sensibilidade do autor, se constituindo, igualmente, considerando a sua porção visionária e como sentenciou o brasileiro Rinaldo Gama, mestre em Comunicação e Semiótica, em uma profecia.


Nathalie Bernardo da Câmara




O Chamado da água

 
          ESTICO O BRAÇO PARA O CHUVEIRO, ponho a mão na torneira, mexo-a lentamente, fazendo-a girar para a esquerda.
          Acabo de acordar, ainda sinto os olhos cheios de sono, mas estou perfeitamente consciente de que o gesto que faço para inaugurar meu dia é um ato decisivo e solene, que me põe em contato ao mesmo tempo com a cultura e a natureza, com milênios de civilização humana e com o trabalho das eras geológicas que moldaram o planeta.


(...) Nada me garante que o mundo ainda tenha água e não haja se tornado um planeta seco e poeirento como os outros corpos celestes mais próximos, ou que pelo menos exista água suficiente para que eu possa recebê-la aqui, no vão de minhas mãos, longe como estou de qualquer represa e nascente, no coração desta fortaleza de cimento e asfalto.


          Vem-me o pensamento de que a abundância em que nadei até hoje é precária e ilusória, de que a água poderia voltar a ser um bem raro, transportado com esforço, eis o carregador de água com seu barrilzinho a tiracolo, dirigindo seu apelo as janelas para que os sedentos desçam e comprem um copo de sua preciosa mercadoria.


          Aqui estou, pois, pronto para receber a água, não como algo que me seja naturalmente devido, mas como um encontro amoroso, cuja liberdade e cuja felicidade são proporcionais aos obstáculos que ela teve de superar. (...) A água jorra, obedecendo, célere, ao meu chamado.




segunda-feira, 27 de setembro de 2010

PARÁBOLA DA INCOMUNICABILIDADE


"O apólogo nasce em tempos de opressão.
Quando o homem não pode dar forma clara a seu pensamento,
o exprime por meio de fábulas".

Italo Calvino (1923 - 1985)



Como eu disse no post anterior, Pelos ares do Brasil (republicado no dia 6 de abril de 2013), adquiri, recentemente, um exemplar do livro Um general na biblioteca, de Italo Calvino. Filho de cientistas italianos, que, à época do seu nascimento, se encontravam em Cuba, Calvino, ainda na infância, segue com os pais para a Itália. O livro em questão compreende, portanto, trinta e duas narrativas, ou trinta e dois raccontini, continhos, contos curtos, escritas entre 1943 – quando o autor não tinha, ainda, nem vinte anos de idade – e 1984. A edição da qual disponho, de 2010. Os continhos, por sua vez, foram selecionados e organizados postumamente pela tradutora argentina Esther Calvino, viúva do jornalista, contista, romancista e ensaísta italiano. Já a tradução desta edição de Um general... para o português é assinada pela brasileira Rosa Freire d’Aguiar, tendo sido publicada pela editora Companhia de Bolso, cuja venda, contudo – confesso que não entendi o motivo – é proibida em Portugal...


Um dos mais curiosos apólogos do livro, que integra a sua primeira parte e compreende o período de 1943 a 1958, é O Homem que chamava Teresa, que, na opinião do brasileiro Rinaldo Gama, mestre em Comunicação e Semiótica, funcionaria "perfeitamente no teatro”. Para ele, o continho, escrito no ocaso do fascismo, em 1943, “é um claro exemplo da síntese que se espera dos dramaturgos”. Ainda segundo o pesquisador, “em duas páginas, Calvino resume o que o teatro de Pirandello [(1867 - 1936)] e o cinema de Antonioni [(1912 - 2007)] levaram anos para construir: uma parábola da incomunicabilidade”. E conclui: “Não é difícil perceber que o Calvino dessa primeira fase é menos ambicioso do que o da segunda parte do livro, que concentra os contos escritos entre 1968 e 1984”. Eis, então, o raccontini que abre Um general na biblioteca, lembrando Gama, que, se referindo ao livro de Calvino, diz: “É preciso estar leve para enfrentar o insuportável peso de ser”.


Nathalie Bernardo da Câmara






O Homem que chamava Teresa


          DESCI DA CALÇADA, recuei uns passos, olhando para cima, e, chegando no meio da rua, levei as mãos à boca, como um megafone, e gritei para os últimos andares do prédio:
          — Teresa!
          A minha sombra se assustou com a lua e se agachou entre meus pés.
          Passou alguém. Chamei de novo:
          — Teresa!
          A pessoa se aproximou, disse:
          — Se não chamar mais alto não vão escutar. Vamos tentar nós dois. Assim: conto até três, no três gritamos juntos. – E disse: — Um, dois, três.
          E, juntos, gritamos: — Tereeeesaaa!
          Passou um grupinho de amigos que voltavam do teatro ou do café e viram nós dois chamando. Disseram: — Bom, também podemos ajudar com a nossa voz. – E também foram para o meio da rua e o primeiro dizia um, dois, três e então todos gritavam em coro: — Te-reee-saaa!
          Passou mais um e se juntou a nós; quinze minutos depois estávamos reunidos num grupo, uns vinte, quase. E de vez em quando chegava mais um.
          Não foi fácil chegarmos a um acordo para gritarmos direito, todos juntos. Havia sempre um que começava antes do “três” ou que demorava demais, mas no final já conseguíamos fazer alguma coisa bem feita. Combinou-se que “Te” seria dito baixo e longo, “re”, agudo e longo, e “sa”, baixo e breve. Funcionou muito bem. Mas, vez por outra, havia uma briga porque alguém desafinava.
          Já começávamos a perder o fôlego quando um de nós, que a julgar pela voz devia ter a cara cheia de sardas, perguntou: — Mas vocês têm certeza de que ela está em casa?
          — Eu não. – respondi.
          — Que confusão. – disse um outro. – Esqueceu a chave, não é?
          — Na verdade – disse eu –, estou com a chave aqui.
          — Então – me perguntaram –, por que não sobe?
          — Mas eu nem moro aqui. – respondi. – Moro no outro lado da cidade.
          — Mas, então, desculpe a curiosidade – perguntou circunspecto o sujeito da voz cheia de sardas –, quem é que mora aqui?
          — Para falar a verdade, não sei. – disse eu.
Houve um certo descontentamento ao redor.
          — Mas, então, se pode saber – perguntou outro com a voz cheia de dentes – por que está chamando Teresa aqui de baixo?
          — Por mim – respondi –, também podemos chamar outro nome, ou em outro lugar. Não custa nada.
Os outros estavam meio aborrecidos.
          — O senhor não teria desejado fazer uma brincadeira conosco? – perguntou o de sardas, desconfiado.
          — Eu, hein! – disse, ofendido, e me virei para os outros para pedir que confirmassem minhas boas intenções. Os outros ficaram calados, mostrando não terem captado a insinuação.
          Houve um instante de constrangimento.
          — Vejamos – disse um deles, bondoso. – Podemos chamar Teresa mais uma vez e, depois, vamos para casa.
          E chamamos mais uma vez – um, dois, três, Teresa! –, mas já não deu muito certo. Depois, nos dispersamos, uns por aqui, outros por ali.
          Eu já havia chegado à praça quando tive a impressão de ainda ouvir uma voz que gritava: — Tee-reee-sa!
          Alguém deve ter ficado chamando, obstinado.



terça-feira, 21 de setembro de 2010

QUAL É O MEU DNA?


“Você deve pedir desculpa por ocupar um lugar no espaço...”.

Nise da Silveira (1905 - 1999)
Psiquiatra brasileira



Digressão à parte, falemos de uma mulher especial, que eu tive a graça de conhecer e que muito me encantou por seu maravilhoso bom-humor, carisma e simpatia, ou seja, Nísia Bezerra de Medeiros, brasileira nascida em Pureza, no Rio Grande do Norte, que, inclusive, por ser extremamente espirituosa, disse ser difícil definir pureza, a “inocência no sentido lato da palavra”. O prenome, Nísia, dado, segundo ela, pelo pai, foi em homenagem à educadora, escritora e feminista brasileira Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810 - 1885), nascida em Papary, também no Rio Grande do Norte, e o meu objeto de pesquisa há mais de dez anos. Coincidência, né? Por isso mesmo que, anos atrás, visitando-a, perguntei: “Tem Floresta, também? E Brasileira Augusta?”. Segundo ela, o pai, que deu o seu prenome, pode até ter sido louco, mas não tanto, embora deixasse um espermatozóide por onde passasse... Impossível não rir, né? 

O Fato é que essa mulher, Nísia Bezerra de Medeiros, é divertidíssima! E, aos seus setenta e oito anos de vida (à época de uma de nossas conversas), embora parecesse ter dezoito, de idade, ela me fez conhecer a sua porção poetisa. E das boas! Um caso raro. Tão raro que teve a honra de conhecer pessoalmente a psiquiatra junguiana Nise da Silveira, renomada discípula do suíço Carl Gustav Jung (1875 - 1961), de quem ouviu a epígrafe deste texto. E qual o motivo, alguém pode perguntar, para eu falar dessa mulher, Nísia Bezerra de Medeiros? Simples. Ela disse que iria completar oitenta anos (já completou) e que não morreria sem me conhecer. É demais, né? Bom, qualquer um, em meu lugar, sentaria diante do computador, e, lisonjeado, com certeza escreveria algumas linhas em sua homenagem. Mesmo porque ela também é filósofa. O curioso, contudo, é que a homenageada, no dia, fui eu. Mas, falemos de Nísia Bezerra de Medeiros...

O escritor brasileiro Sanderson Negreiros, por sua vez, sabe muito bem quem Nísia Bezerra de Medeiros é. Afinal, ele escreveu um texto belíssimo sobre ela, mais precisamente no dia 21 de setembro de 2003, no jornal Tribuna do Norte. No referido artigo, intitulado Para Nísia, ele ressaltou a inteligência, bondade e simpatia – qualidades raras, hoje em dia – da sua ex-professora. Tanto que, um dia, segundo Sanderson, Nísia teria, por exemplo, lhe dito que era difícil viver em Natal, a capital do Rio Grande do Norte, “deflagrada de maldade”. E, segundo ele, ela continuou: Uma Natal difícil de viver “na queimação dos melhores nomes e apaziguamento de elogio em torno de tantos medíocres que não conseguem movimentar o bestunto nem para sentir a certeza de existir...”. Depois, respondendo a sua amiga, Sanderson disse que, apesar disso, de há muito não ouvia críticas, o rumor da inveja nem o orvalho da maledicência.

Só que o bonito do texto do escritor foi ele dizer: “Se nos atingirem, faz parte da viagem”, não produzindo a tristeza “vitória para ninguém...”. E que “o humor é uma forma de simpatia quando não se perde a delicadeza...”. Sejamos, então, Nísia Bezerra de Medeiros, Sanderson Negreiros – diante dos dizeres de ambos – e muitos de nós, vitoriosos. E que façamos de nossos “pequenos e mínimos momentos existenciais, instantes de esplendor silente...”. Quanta sensibilidade, Sanderson! E só citei o seu texto porque foi a própria Nísia quem meu deu uma cópia. Assim, minha amiga octogenária, “não feche os olhos...”, como disse o poeta, cúmplice que é “da aurora ao crepúsculo, que empolgam seu quotidiano”, apesar de só enxergar vultos... Mas, ora! Somos todos, no frigir dos ovos, vultos. Nada mais. E, um dia, segundo as suas próprias palavras –Nísia fez uma previsão –, deixaremos todos de enxergar...

Enfim! O título deste post, embora proposto por mim, é nada mais nada menos do que uma frase proferida certo dia por Nísia Bezerra de Medeiros, que, à época, aproveitou para citar uma frase de Nise da Silveira, ou seja: “Não me atrevo a definir a loucura...” – faço minhas as palavras da psiquiatra. Hoje, contudo, espero, minha amiga, que se recupere de certas adversidades e que, junto com Cléa, sua irmã querida, que você, vaidosa, diz ser a maior filósofa do Rio Grande do Norte, possa continuar a nos receber, a minha mãe, Salete Bernardo, e eu, já que adoramos compartilhar momentos com as duas, sempre tão hospitaleiras. Da última vez, por exemplo, ao visitá-las – outro dia –, levei para Cléa um vinho e para Nísia uma caixa de chocolate, que só não digo o nome para não fazer propaganda gratuita. O fato é que ela, Nísia, se refestelou com os doces, que adora! E ainda me pediu que voltasse com mais. Pode? Quanta gula, por vida...


Nathalie Bernardo da Câmara

sábado, 18 de setembro de 2010



“Estar perdido na floresta é o mesmo que estar perdido
no labirinto da multiplicidade da manifestação...”.

Marcelo Del Debbio
Arquiteto brasileiro

 

Há meses, lendo, casualmente, sobre as ditas virtudes que correspondem aos ditos pecados capitais, resolvi tecer algumas linhas a respeito, apesar deste não ser um tema que me apeteça, já que o considero controverso. Afinal, as catalogações, iniciadas no séc. IV, feitas por doutos da Igreja católica, sobre algumas das condutas humanas, passando por algumas mudanças ao longo do tempo, só têm uma aparente validade para quem reza na cartilha do catolicismo. Além disso, o mais badalado dos conceitos dos pecados e das virtudes, que se tem conhecimento, herdados do cristianismo, é extremamente relativo, variando de acordo com a moral vigente de uma época, de uma dada sociedade, de uma cultura etc.

Sem falar que, independentemente de não importa qual fator, cada ser humano tem, ainda, as suas próprias noções e entendimentos do que é certo ou errado, podendo, ambos, inclusive, sofrer mutações e variações, dependendo da vivência pessoal de cada um. No séc. IV, por exemplo, o monge cristão e asceta grego Evagrius de Pontus (345 - 399) classificou oito males do corpo humano. Porém, no séc. VI, se inspirado na referida classificação, o papa italiano Gregório Magno (540 - 604) definiu os pecados capitais, embora tenha reduzido a lista do grego para, digamos, sete infrações, substituindo, ainda, do rol de males do corpo humano, a acídia, ou depressão, pela melancolia, que, por sua vez, cedeu, no séc. XVII, espaço à preguiça.

Nos dias de hoje, portanto, quando dizem que os pecados capitais residem no excesso, considerados um caminho para o autoconhecimento, tem-se a seguinte lista de classificação dos sete pecados e das virtudes que lhes são oponentes, as quais, aliás, segundo muitos, indicam a luz para uma suposta salvação, ou seja: soberba ≠ humildade; inveja ≠ caridade; ira ≠ paciência; preguiça ≠ disciplina; avareza ≠ generosidade; gula ≠ temperança e luxúria ≠ castidade – parcerias antagônicas, digamos, inspiradas no poema alegórico Psychomachia, do poeta latino Prudêncio (348 - 410), que, de grande aceitação durante a Idade Média, propôs as virtudes para evitar que as pessoas não caíssem em tentação.

A meu ver, não acho que o antagonismo acima mencionado seja coerente, como, por exemplo, a caridade opor-se à inveja, que, pela lógica, teria como melhor opositor o respeito. Mas, como, nesta vida, tudo se resume a uma questão de ponto de vista... Caso contrário, teríamos normas de conduta uniformes, sem consideração à adversidade – uma chatice! Assim, como diria Marcos Fleury, membro da sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA: “Historicamente, as religiões funcionaram como uma forma externa de controle e moderação dos apetites humanos. Com o tempo, o homem internalizou esse aspecto moderador, trocando a culpa – que era atribuída a um ente externo – pela responsabilidade individual por seus atos”.





No caso, a história pela qual me baseei, ou seja, nas crenças da Igreja católica, do catolicismo, sobre os ditos 7 pecados capitais, mas, apenas, tendo como inspiração o modus vivendi de um gato rebelde, personagem criada pelo cartunista norte-americano Jim Davis, que é o Garfield – uma graça! Vejamos, porque, pelo menos para mim, ele, o gato, é hilário - e a historinha que criei também -, já que, desde criança, sou fã do bichano. Mas, levando em consideração de que todos os pecados, a meu ver, ficam no limite do supostamente, ou seja...



1° pecado: Soberba – Supostamente, se bastar a um...
Virtude correspondente: humildade,
que significa modéstia.




2° pecado: Inveja – Uns têns e outros não...
Virtude correspondente: caridade,
que significa promover o bem de outrem.




3° pecado: Ira – Com raiva, o descontrole...
Virtude correspondente: paciência,
que significa suportar a espera.




4° pecado: Preguiça – Ser indolente...
Virtude correspondente: disciplina,
que significa cumprimento de ordem imposta.




5° pecado: Avareza – Querer mais dinheiro e não gastar...
Virtude correspondente: generosidade,
que significa dá sem nada em troca.




6° pecado: Gula – Descontrole na comida e na bebida,
nos prazeres gastros...
Virtude correspondente: temperança,
que significa ser adepto da moderação.




7° pecado: Luxúria – Descontrole no sexo...
Virtude correspondente: castidade,
que significa abstinência total dos desejos sensuais.





Para muitos, o tema abordado na primeira parte deste blog é levado a sério, mas, para mim, sem deboche, isso tudo é, apenas, a forma que trato do mesmo, um ócio criativo, sobretudo a segunda parte, quando recorro ao Garfield para exemplificar os tais ditos 7 pecados capitais...


 
Nathalie Bernardo da Câmara

quarta-feira, 15 de setembro de 2010


(Originalmente, publicado no dia 19 de agosto de 2009)

“É triste pensar que a natureza fala
e que o gênero humano não a ouve...”.

Victor Hugo (1802 - 1885), escritor francês


A INFÂNCIA OUVE, SIM!



E O GÊNERO ANIMAL TAMBÉM!




DESMATAMENTO




MAIS-VALIA




O planeta Terra grita: a Amazônia vai virar cerrado;
o cerrado, por sua vez, vai virar o quê?
Imagine, então, o sertão nordestino...



EFEITOS DO AQUECIMENTO GLOBAL





SALVEMOS, PELO MENOS, A AMAZÔNIA!




O TEMPO URGE...




ENQUANTO ISSO...




O MEIO AMBIENTE ESTARIA AQUI?




Para refletir...
CONTRA A OBRIGATORIEDADE DO COMPARECIMENTO AS URNAS:
PELO VOTO FACULTATIVO!



Nathalie Bernardo da Câmara
Registro profissional de jornalista:
578 - DRT/RN, desde 1989



terça-feira, 14 de setembro de 2010

ATENÇÃO!




A maioria dos artistas e jornalistas,
que, de fato, forma a opinião pública do Brasil, 
aderiu...

Quem sabe você, que, agora, lê estas poucas palavras, também não adere? Eu aderi!

Nathalie Bernardo da Câmara

segunda-feira, 13 de setembro de 2010


LEMBRANDO...




Quase todos os meus amigos, de décadas, votam nela. Não posso mais me abster. Eu a quero no governo deste Brasil complexo. Só espero que ela tenha saúde para suportar o mandato. Vou comparecer à urna, contrariando o pacto que fiz comigo mesma de não mais votar em ninguém. VOTO EM MARINA! Alguma coisa tem de mudar neste país. Não creio que trazer o alemão Hitler (1889 - 1945) à tona, incorporado na versão Dilma Rousseff, vale a pena. Afinal, quando ela, Dilma, disse que a questão ambiental é um entrave para o desenvolvimento sustentável... Sem comentários.

A minha irmã, lendo o parágrafo acima, comentou comigo que Marina só deveria engordar um pouquinho. De imediato, lembrei de uma receita para fastio que aprendi com a minha amiga pajé, da reserva dos índios potiguara, lá da Baía da Traição, na Paraíba. Sei que o problema de Marina não é fastio, mas... Então! Às 17h, corta-se um coco seco, rala-se o coco inteiro, as duas partes. Tirando o leite, acrescenta-se um pouquinho de água e se coloca todo o líquido em uma das partes do coco. Às 18h, a cumbuquinha com o leite deve ficar no sereno. Na manhã seguinte, em jejum, a pessoa toma o líquido. É receita certa! Em quinze dias, duvido que Marina não engorde alguns quilos e possa, com saúde, apesar da sua fragilidade física, ser eleita presidente e governar este Brasil.

E que o seu vice, que produz o meu sabonete de pitanga, faça jus ao sobrenome que tem, ou seja, leal. Enfim! Espero que esta receita chegue à ela... Enquanto é tempo. Ambientalista que é, com certeza aceitará a minha dica. Agora, se até o dia das eleições, eu perceber que ela não engordou, desisto de votar.


Nathalie Bernardo da Câmara

terça-feira, 7 de setembro de 2010

SONHOS? FOI-SE O TEMPO!
NULAS AS ESPERANÇAS...


“Só sei que nada sei...”.

Sócrates (470 - 399 a. C.)
Filósofo grego



2010. Ano de eleições no Brasil, cujo povo, o eleitor, anda mais perdido do que apostador principiante do jogo do bicho. Afinal – convenhamos –, os candidatos a deputado estadual, distrital - no caso do Distrito Federal - federal, governador, senador e presidente, que ora ocupam espaços da propaganda eleitoral gratuita, sobretudo na televisão, se assemelham mais a mais bizarra das faunas, desrespeitando, com as suas performances, até o mais instruído dos eleitores. Sim, porque formular uma frase corretamente, que é bom, nem pensar! Articulá-la com precisão, então... Uma vergonha. E eles, os candidatos, ainda pedem voto. É uma mendicância total! Todos mendigando voto.

Nossa! Voto não se pede. Conquista-se. Tanto que, após uma explanação de motivos, a maioria mirabolante, para se tentar justificar o fato de estarem pleiteando tal ou qual cargo, é mais ou menos assim que muitos dos candidatos concluem as suas falas: — Por isso, eu peço o seu voto. Outros, contudo, já começam dizendo: — Eleitor, eu peço o seu voto porque (e, por aí, vai)... Sem falar que têm aqueles que ainda dizem: — Minha amiga, meu amigo: sem o seu voto, não poderei (etc)... Ninguém merece! Porém, o curioso é que, quando eleitos e tomado posse dos seus cargos, os ex-candidatos – ex-mendicantes – transformam-se da água para o vinho. Tornam-se arrogantes, como se fossem mais soberanos do que a própria Constituição brasileira.

O pior é que, invariavelmente, esquecem aqueles que, ludibriados por um proselitismo eleitoral, os elegeram. Aí, das falcatruas verbais – as promessas feitas nas campanhas –, passa-se as falcatruas manuais, já que, tão logo podem, os eleitos correm para assinar decretos, medidas provisórias ou outro absurdo qualquer. O lamentável é que tais leis apenas os favorecem, em detrimento do povo, que fica à mercê de programas ditos sociais, meramente assistencialistas, como se isso fosse a salvação da lavoura, mas que é, apenas, um paliativo. Até quando essa farsa? E não estou defendendo candidato algum – não me compete –, mas, simplesmente, propondo uma reflexão diante de um cenário político tão deprimente.

Afinal, quem conhece a História do Brasil sabe que, desde os seus primeiros desbravadores, em 1500, até os dias de hoje, não houve muita mudança em relação à situação dos governantes que já passaram e continuam passando pelo poder na tão decantada Terra dos Papagaios. Daí que, no frigir dos ovos, chegamos à conclusão de que, de fato – infelizmente –, o poder corrompe a maioria que, amparada pela dita legitimidade do voto que o elegeu, o detém. E, sinceramente, nunca vi um governante que, realmente, tivesse pulso forte para implementar mudanças estruturais necessárias para que, enfim, possamos dizer que vivemos em um país democrático, ou seja, em um regime democrático de direito.

O curioso é que, quando escrevi a palavra implementar, o dicionário do computador recusou o verbo transitivo direto, dizendo que o mesmo não existe. Vai ver que é por isso que os políticos nunca implementam mudanças de estrutura que, enfim, eliminem as desigualdades sociais – eles nem sequer as vislumbram. E nem poderiam, porque, caso o fizessem, perderiam, inevitavelmente, os privilégios que o poder, equivocadamente, confere. Por isso que a tão ambicionada sociedade justa e igualitária resume-se a uma utopia – ninguém pode ser livre passando privações. E, assim, continuamos em um faz-de-conta – tipo um filme de quinta – onde, por exemplo, os discursos dos candidatos, durante as campanhas eleitorais, diferem em quase nada.

O fato é a maioria dos discursos ser indecente e o compromisso com a ética – em extinção –, que deveria ser condição sine qua non para as candidaturas serem aceitas pelos tribunais eleitorais, nunca é posto em questão. Afinal, a gestão pública é algo sério, mas muitos fazem caso disso e é daí que advém a corrupção, as acusações por improbidade administrativa, os escândalos nos governos, seja em âmbito municipal, estadual ou federal. O projeto Ficha Limpa, por sua vez, aprovado este ano pelo Congresso Nacional, propondo critérios mais rígidos para o registro de candidaturas, ainda não é a solução para evitar que canastrões demagogos candidatem-se e, de repente, sejam eleitos.

Sem falar que muitos políticos terminam fazendo da política uma carreira. Assim sendo, que sejam criados cursos de graduação para que isso se efetue. Afinal, para alguém se tornar um engenheiro, um médico ou um jornalista, por exemplo, se requer anos de estudo em uma universidade. Tal exigência, portanto, deveria ser extensiva para quem ambiciona seguir o ofício de político, já que, nos bancos da universidade, eles teriam a oportunidade para aprenderem conhecimentos vários: ética, moralidade, decência, gestão pública etc – coisas que, não é de hoje, poucos sabem do que se trata. Quanto ao quesito consciência... Infelizmente, essa, nenhuma universidade é capaz de legar, pois consciência se adquire. Ou não.

Outro aspecto, contudo, que me preocupa, é o vice. E, no caso das eleições deste ano, o vice de um candidato a governador e a presidente. Vejamos... A maioria dos eleitores não atenta para o vice. Só que, caso o governador ou o presidente eleito fique, por algum motivo, impossibilitado de governar, quem assume? O vice, mas, quem é o vice? Qual o seu passado político, por exemplo? Isto é, quando ele tem um. Desse modo, é importante levar em consideração não apenas o histórico dos candidatos a governador e a presidente, mas, também, o dos seus vices, alguns escolhidos apenas em função de certas exigências das coligações feitas pelos partidos que apóiam os candidatos a governador ou a presidente.

Algo que também me indigna é a maioria dos candidatos não utilizar os espaços garantidos a sua propaganda eleitoral gratuita para informar o eleitor sobre a sua plataforma de governo. Ao contrário! Cada um fica comparando as suas ações – quando elas existem – com a de outros candidatos. Isso quando não ignoram as suas próprias propostas, sem divulgá-las, perdendo, inclusive, o tempo que lhes é destinado, porque se limitam a criticar, negativamente, os adversários, explorando, muitas vezes, detalhes da sua vida pessoal. Atitude mais sórdida não poderia haver, pois se os candidatos que, ainda nas eleições, já se revelam inescrupulosos, imaginem como atuarão ao serem eleitos e assumirem o poder!

Ética, que é bom, nada... Enfim! Em pleno séc. XXI, o Brasil insistir na obrigatoriedade do comparecimento as urnas, é dose! Isso não é – convenhamos – uma prática de governos que se dizem democráticos, mas de governos totalitários, quando, a bem da verdade, o ideal é o que se chama de voto facultativo. Ou seja, o cidadão sairia de casa para comparecer à urna e votar em tal ou qual candidato se quisesse. Não porque é obrigado por lei. Afinal, não há nada mais indigesto do que fazer algo só porque se é obrigado. Assim, o cidadão termina sendo refém de uma legislação démodée, caduca por excelência, que, aliás, deveria ser revista e reelaborada, sendo substituída por outra mais moderna. E é isso!

Nathalie Bernardo da Câmara

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

CASTELOS DE AREIA...



“O homem não morre quando deixa de viver,
mas quando deixa de amar...”.

Charlie Chaplin (1889 - 1977),
ator e cineasta britânico.


Confesso que não lembro a data precisa, mas deve ter sido no início dos anos noventa, pouco antes de eu ir morar em Paris. Algo assim... De qualquer modo, sei, apenas, que foi em um dia de muita lucidez da minha avó, dona Conceição (1920 - 2010), mãe da minha mãe, Salete Bernardo – uma das mais espetaculares mulheres que eu já conheci –, que ouvi algo que me surpreendeu e que nunca esqueci. Ou seja, na cozinha da sua casa, em uma conversa íntima, quando certa privacidade era possível, devido a sua enorme prole, sobretudo a porção feminina dessa prole, ela, dona Conceição – acho que, de todos os netos, só eu a chamava assim –, disse que nunca quis se casar. Questionei, então, como ela tinha vivido maritalmente mais de sessenta anos com o meu avô, Manuel Bernardo da Silva (1919 - 2000), e posto no mundo quatorze filhos. Ela me respondeu que, simplesmente, aconteceu. Que devia ter sido a vontade do seu Deus. Respirei fundo...

Católica fervorosa, vovó disse, também, que, por vocação, queria ter sido freira. Não me surpreendi, considerando a devoção que ela tinha por sua Nossa Senhora e pelo seu Nosso Senhor Jesus Cristo, sempre as voltas com a sua Bíblia e os seus rosários. O curioso é que, ainda nessa mesma conversa, vovó acrescentou – o mais poético –, que, em diversos momentos da sua vida, chegou a construir muitos castelos. Castelos de areia, ela disse, que, para sua tristeza, findaram por ruir... Outra vez, respirei fundo. Afinal, tínhamos mais uma poetisa na família e não sabíamos. Sim, vovó escrevia algumas mensagens religiosas em seus cadernos, que chegou a me mostrar, e gostava de ler poemas... Ela apreciava, e muito, as escritoras brasileiras Auta de Souza (1876 - 1901) e Myriam Coeli (1926 - 1982), ambas norte-rio-grandenses e a segunda a primeira jornalista profissional do Rio Grande do Norte e madrinha, inclusive, de uma das minhas tias  as duas eram comadres.

O fato é que a minha vó, nascida em Belém, no Estado do Pará, chegou, depois de uma breve passagem por Santos, em São Paulo, a São José de Mipibu, no Rio Grande do Norte, onde conheceu seu Manuel, um nativo, que viria a ser o meu avô querido – companheiro de todos nós. Anos depois, com a família, transferiram-se para Natal. Em seu último endereço, no bairro de Lagoa Nova, onde viveu décadas, vovó teve participação decisiva na comunidade local, de um tudo fazendo para erguer a Igreja de São Camilo de Lélis – de quem ela também era devota. À época, o meu avô, que, carinhosamente, dona Conceição chamava de Neco, colaborou com o assentamento de cada tijolo da edificação. Para tal feito, vovó passou a pedir contribuições a todos, indistintamente. Fossem ajudas financeiras ou através de algum material de construção. Tornou-se uma missão para ela, ou seja, uma causa. Mas, enfim! Vovó conseguiu erguer a sua igreja.

O curioso é que mesmo depois de ter conseguido construir o seu templo religioso, ao qual se dedicava todo santo dia, como costumava dizer, ela continuou a solicitar contribuições, ou doações, para mantê-lo. Quando, contudo, aos oitenta e poucos anos, vovó começou a manifestar os primeiros dos sintomas do Mal de Alzheimer, deixou de freqüentar a igreja, que era o leitmotiv da sua vida, limitando-se – não por opção – a ficar apenas em casa, recebendo cuidados especiais, sobretudo em seu quarto, diariamente higienizado, e cercada pelo carinho dos seus entes queridos – sempre ao seu lado. A sua memória – o maior bem de um ser humano – ia e vinha, a sua revelia, com o desfecho inexorável já a se revelar... O admirável é que a família não mediu esforços para manter a sua dignidade, um exemplo de dedicação a um parente idoso – atitude tão rara nos dias de hoje, quando a terceira idade costuma ser relegada a sua própria sorte, a destinos imprevisíveis.

Ocorre que, quando a sua situação agravou-se, devido a uma pneumonia, vovó, cada vez mais fragilizada, foi hospitalizada. A memória, paulatinamente, diluindo-se – nem sei se registrou o sofrimento dos que acompanhavam o seu martírio... Infelizmente, não mais saiu com vida do hospital. No último dia 28 de agosto, a pneumonia, implacável, pôs termo a sua existência, deixando órfãos um sem fim de admiradores da sua persistente crença em ajudar os mais necessitados. Enfim! Em seu velório, vi vovó en passant, já que sou muito sensível as perdas de uma maneira em geral, sobretudo a de pessoas queridas. No entanto, foi o suficiente para percebê-la envolta em um véu, protegendo, quiçá, a sua pureza, que, por ela, nunca teria sido maculada. Logo vovó, que sempre quis ser uma imaculada. Bom! Até, dona Conceição: exemplo de fé e generosidade cristã... Falando nisso, já está nos braços de Neco ou, quem sabe, nos do seu Nosso Senhor Jesus Cristo?


Nathalie Bernardo da Câmara