sexta-feira, 20 de novembro de 2009

NINGUÉM MERECE!




Outro dia, vi uma árvore de Natal sendo montada. A primeira, pelo menos para mim, de uma série que ainda terei o desprazer de ver iluminada. Senti uma repulsa imediata! Afinal, tenho horror a esse período do ano, quando o consumismo atinge o seu apogeu e a hipocrisia sufoca os sentimentos mais essenciais do ser dito humano. Sinto-me extremamente deprimida. Isso sem falar na atmosfera brega da data: árvores com enfeites coloridos, pisca-pisca, presépios... Todas essas coisas que, desde criança, a gente está acostumada a ver. Só que nem mesmo quando eu era menina, aparentemente sem discernimento, acreditei nessa encenação. Nem em Papai Nöel, com o seu surrealista trenó, puxado por renas, nem no menino Jesus, supostamente vindo ao mundo na manjedoura em um ambiente para lá de inóspito. Pois é! Ninguém nunca teve a capacidade para me convencer da existência desses indigestos analgésicos. De repente, contudo, lembrei de um post do meu blog, datado do dia 19 de maio deste ano, no qual descrevo as semelhanças entre Papai Nöel e o papa Bento XVI, um dos meus maiores desafetos, cuja índole não tem nada de boas intenções. Vamos lá, então, à brincadeira...



DA CASA DE





Não é Dia das Bruxas, mas quem adivinhar
o que Bento XVI e Papai Noël têm
em comum ganha um doce.











Não, não é o gorro.
O de Bento XVI, por exemplo, é apenas um dos muitos chapéus que ele coleciona.
Vejamos!




Bento e Noël não dispensam um trono...










Bento e Noël são chegados a um cajado...









Bento e Noël andam a penar...











Bento e Noël labutam...










Bento e Noël tocam instrumentos musicais...












Bento e Noël tiram férias...












Bento e Noël curtem a natureza...












Bento e Noël adoram criancinhas...












Bento e Noël também poder ser maus meninos...













Bento e Noël adoram voar...











Bento e Noël têm segurança pessoal...











Bento e Noël visitaram a África...











Bento, Noël, o vil metal e congêneres...








Bento e Noël também são filhos de Deus...









Bento e Noël não respeitam a Lei Seca
e, ébrios, colidem...









Bento é flagrado pelo bafômetro
e é interditado...







Noël sobrevive, mas...




— Ho! Ho! Ho!


Nobel iria gostar...


Noël não resiste...





— Buá! Buá! Buá!



Na prisão, Bento acende uma vela
e reza uma missa...





Alguém já remarcou que a vela tem um formato fálico?
Imaginem essa, então, revestida com um preservativo... Ia pegar fogo!



Ai do aquecimento global!




Nathalie Bernardo da Câmara





sexta-feira, 13 de novembro de 2009

EU NÃO MATEI JEANNE D'ARC



“Et Jeanne, la bonne Lorraine
Qu'Anglais brûlèrent à Rouen;
Où sont-ils, où, Vierge souvraine?
Mais où sont les neiges d'antan?”.

François Villon (1431 - 1463), poeta francês
Ballade des dames du temps jadis



Ou ando muito sentimental ou é porque a trágica trajetória da heroína francesa Jeanne D’Arc (1412 - 1431) sempre me comoveu. Outro dia, por exemplo, ao rever o filme Joana D’Arc de Luc Besson, chorei, em um misto de indignação e revolta. Aqui, transcrevo a sinopse do filme, segundo o site http://www.adorocinema.com/filmes/joana-darc/


“Em 1412, nasce em Domrémy, França, uma menina chamada Joana (Milla Jovovich). Ainda jovem, ela desenvolve uma religiosidade tão intensa que a fazia se confessar algumas vezes por dia. Eram tempos árduos, pois a Guerra dos Cem Anos com a Inglaterra se prolongava desde 1337. Em 1420, Henrique V e Carlos VI assinam o Tratado de Troyes, declarando que após a morte de seu rei a França pertencerá a Inglaterra. Porém, ambos os reis morrem e Henrique VI é o novo rei dos dois países, mas tem poucos meses de idade e Carlos (John Malkovich), o delfim da França, não deseja entregar seu reino para uma criança. Assim, os ingleses invadem o país e ocupam Compiègne, Reims e Paris, com o rio Loire detendo o avanço dos invasores. Carlos foge para Chinon, mas ele deseja realmente ir para Reims, onde por tradição os soberanos franceses são coroados, mas como os ingleses dominam a região, isto se torna um problema. Até que surge Joana que, além de se intitular a "Donzela de Lorraine" tinha uma determinação inabalável e dizia que estava em uma missão divina, para libertar a França dos ingleses. Desesperado por uma solução, o delfim resolve lhe dar um exército, com o qual ela recupera Reims, onde o delfim é coroado Carlos VII. Mas se para ele os problemas tinham acabado, para Joana seria o início do seu fim”.


Um fim que, convenhamos, toca e sensibiliza – imagino – até mesmo o âmago do mais insensível dos homens, devido a injustiça cometida contra uma jovem tão pura e bem intencionada, queimada viva por ensandecidos celerados com apenas dezenove anos de idade. E essa é a cena final do filme, ou seja, Jeanne D’Arc na fogueira, ardendo nas labaredas da ignorância. Chocante, tamanha crueldade! Quem puder, então, veja ou reveja o filme. Isto é, se o estômago não revirar, igual o meu revirou. Voilà!


ficha técnica:

título original:The Story of Joan of Arc
gênero:Drama
duração:02 hs 35 min
ano de lançamento:1999
estúdio:Gaumont / Leeloo Productions
distribuidora:Columbia Pictures / Sony Pictures Entertainment
direção: Luc Besson
roteiro:Luc Besson e Andrew Birkin
produção:Patrice Ledoux
música:Eric Serra
fotografia:Thierry Arbogast
direção de arte:Alain Paroutaud
figurino:Catherine Leterrier
edição:Sylvie Landra
efeitos especiais:Duboi

Nathalie Bernardo da Câmara

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A ANTROPOLOGIA DE LUTO

Foi anunciada nesta terça-feira (3) a morte do antropólogo Claude Lévi-Strauss. A informação é da editora do intelectual, pela qual o falecimento teria ocorrido entre sábado e domingo. Criado em Paris, ele nasceu em Bruxelas em 28 de novembro de 1908. Fundador da Antropologia Estruturalista, é considerado um dos intelectuais mais relevantes do século 20.
Membro de uma família judia francesa intelectual, Lévi-Strauss estudou Direito e Filosofia na Sorbonne, em Paris. Lecionou sociologia na recém-fundada Universidade de São Paulo (USP), de 1935 a 1939, e fez várias expedições ao Brasil central.
Ali passou breves períodos entre os índios bororós, nambikwaras e tupis-kawahib, experiências que o orientaram definitivamente como profissional de antropologia.
Em 1955, publicou "Tristes Trópicos" - um registro dessas expedições. No livro, ele conta como a vocação de antropólogo nasceu durante as viagens ao interior do Brasil.
Após retornar à França, em 1942, mudou-se para os Estados Unidos como professor visitante na New School for Social Research, de Nova York, antes de uma breve passagem pela embaixada francesa em Washington como adido cultural.

Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele"
Fez parte do círculo intelectual de Jean Paul Sartre (1905-1980), e assumiu, em 1959, o departamento de Antropologia Social no College de France, onde ficou até se aposentar, em 1982.
Lévi-Strauss passou mais da metade de sua vida estudando o comportamento dos índios americanos.
Jamais aceitou a visão histórica da civilização ocidental como única. Enfatizava que a mente selvagem é igual à civilizada.
As contribuições mais decisivas do trabalho de Lévi-Strauss podem ser resumidas em três grandes temas: a teoria das estruturas elementares do parentesco, os processos mentais do conhecimento humano e a estrutura dos mitos.
Aos 97 anos, em 2005, recebeu o 17º Prêmio Internacional Catalunha, na Espanha.
Declarou na ocasião: "Fico emocionado, porque estou na idade em que não se recebem nem se dão prêmios, pois sou muito velho para fazer parte de um corpo de jurados. Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele - isso é algo que sempre deveríamos ter presente".



Bibliografia publicada no Brasil


• Tristes Trópicos (Companhia das Letras, 1996)
• As Estruturas Elementares do Parentesco (Vozes, 2003)
• Antropologia Estrutural (Vol. 1) (Cosac Naify, 2008)
• Antropologia Estrutural (Vol. 2) (Tempo Brasileiro, 1993)
• O Pensamento Selvagem (Papirus, 2005)
• Sociologia e Antropologia, de Marcel Mauss (introdução de Claude Lévi-Strauss, Cosac Naify, 2003)
• O Cru e o Cozido - Mitológicas (Cosac Naify, 2004)
• Do Mel às Cinzas - Mitológicas (Cosac Naify, 2005)
• A Origem dos Modos à Mesa - Mitológicas (Cosac Naify, 2006)
• O Homem Nu - Mitológicas (Cosac Naify, 2009)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

"O papa Bento XVI parece-me um hipócrita"


por JOÃO CÉU E SILVA
DN Artes

Entrevista com José Saramago



É o escritor português mais polémico de todos os tempos. Se a reacção ao O Evangelho segundo Jesus Cristo foi épica, a que Caim recebeu é digna de um cenário de guerra em que de um lado, pensa-se, estão os ateus e do outro, admite-se, situam-se os crentes. O debate ainda vai no início, como a leitura do livro...


Ia à missa quando era criança?
Levaram-me duas vezes e não gostei. Tinha sete anos e aquilo pareceu-me incompreensível. Nós morávamos na Rua Fernão Lopes, numas águas--furtadas de um prédio, em Lisboa, de cinco andares que já não existe, que era o lugar onde a arraia-miúda morava porque os mais abastados ficavam com os apartamentos mais baixos. Houve alguém de uma família muito católica que perguntou à minha mãe se ela não se importava que me levassem à missa. E à minha mãe, que tanto fazia, disse: "Pois sim, levem."


Que idade tinha quando foi à missa?
Sete anos. Lembro-me de ter cometido um primeiro acto irreverente no momento da elevação, em que toda a congregação dos fiéis baixa a cabeça, e eu levantei a minha para ver o que é que se estava a passar: nada. Cheguei a casa e disse à minha mãe que não queria ir mais. Se não lhe tinha importado dizer que sim, tão-pouco lhe importou que eu tivesse dito que não.


Os seus pais não eram muito católicos?
Não. Eram católicos daquela maneira que se era onde a religião imperante é o catolicismo - levam os filhos à igreja quando nascem, depois seguem-se os outros sacramentos quando se seguem.


Então foi baptizado na Igreja Católica?
Fui, mas depois do baptismo não se passou nada, não houve confirmação. Não tive qualquer tipo de educação religiosa e na adolescência não aconteceu nenhuma crise religiosa. E vivi tranquilamente sempre, não foi assunto que me tirasse o sono. Fui crescendo, tornei-me adulto e depois, claro, li umas quantas coisas e uma delas foi a Bíblia.


Nasceu cinco anos depois das aparições e a sua infância decorreu durante a criação do mito de Fátima.
Sim, mas nunca me tocou, nem aos meus pais.


Não acreditou nas aparições?
Naquela altura, com poucos anos, era indiferente que acreditasse ou não acreditasse. Não percebia como é que a Virgem aparecia em cima de uma azinheira para dar um recado divino a três miúdos analfabetos. Acho que tudo isso foi uma montagem que continua a render.


Não vem daí este seu posicionamento?
Eu não disse aos 15 anos: "Isto é mentira e eu vou lutar contra isto." As coisas foram-se tornando claras, sem qualquer sombra de crise religiosa, apenas por curiosidade e por não entender.


A sua mulher, Pilar, foi freira. Não ficou chocada com esta sua narrativa?
Não, nada. Ela hoje não crê. E não é de hoje.


Conversou com ela sobre Caim?
Não. Eu tenho o meu trabalho, faço-o. Ela lê imediatamente aquilo que vou escrevendo - parecendo-me a mim que era algo um tanto ousado - mas nem me disse: "Não faças." Se alguma coisa disse, foi animar-me a continuar.


A religião sempre esteve presente nos seus livros.
Mais ou menos.


Desde o Levantado do Chão!
Na figura do padre... Desde há muitos anos que eu venho dizendo que a Bíblia tem umas quantas histórias mal contadas. Uma é a do David, supostamente o herói David, que matou o gigante Golias porque tinha uma "pistola", que era aquela funda, que se lhe parecia muito. Se Golias se aproximasse dele, provavelmente fazia-o em pedaços, mas David dispara-lhe uma pedra que atinge Golias na testa, este cai desmaiado e David aproxima-se e corta-lhe a cabeça. Onde é que está o acto heróico? Não há. Depois, o caso de Caim e de Abel tornou-se, de uma forma mais impressiva, consciente mais tarde. E desde então, não estive a pensar em Caim durante todos estes anos. De vez em quando, era uma questão que regressava, sobretudo quando se falava da Bíblia. No fim do ano passado, perguntei-me: "E se eu escrevesse sobre Caim?" Pareceu-me, naquela altura, uma tarefa um bocado complicada e afastei-a um pouco da cabeça. Mas ela voltou e eu fiz-lhe a vontade, o livro está aí.


Não foi nenhuma reacção a este Papa?
Só quis foi entender o que se passou naquele lugar onde Caim e Abel estão a sacrificar ao Senhor e Ele se comporta daquela maneira que nem sei como chamar-lhe ao aceitar o sacrifício de um e rejeitar o de outro. Um Deus não podia permitir-se esta desigualdade de tratamento! Era porque gostava mais da carne que das espigas?


Ratzinger é um Papa que não lhe agrada?
Os papas não têm de me agradar nem desagradar. Penso que os verdadeiros juízes das acções dos papas deveriam ser os crentes, pois eu não tenho nada a ver com isso. Não me agrada a figura, parece-me um hipócrita, mas, enfim, a Igreja Católica não acaba pelo facto de eu pensar assim.


A religião sempre foi um assunto que o preocupou. Escrever Caim foi uma razão para poder pensar essas questões?
Não. Eu não quis escrever sobre o assunto, não tenho planos de trabalho, não incluí a religião na lista das coisas que quereria trabalhar. Já teremos falado disso, de que eu obedeço a impulsos. Se escrevo um livro, não quer dizer que o livro seguinte siga a mesma direcção ou que seja uma ampliação do que disse no livro anterior. Para mim, desde sempre, considero um livro terminado como um livro fechado. Não volto a ele e não volto ao assunto. Se formos ao Manual de Pintura e de Caligrafia e acabarmos no Caim, vê-se que os livros não se repetem. Agora, como não sou inteiramente burro, ganhei muito cedo a consciência do peso da religião na vida humana. E como, depois, quando se entra em leituras históricas e se encontra com o desastre, digamos, do alargamento da influência do cristianismo, que isso custou cidades destruídas, milhares de pessoas mortas, assassinadas, degoladas, queimadas… As Cruzadas foram qualquer coisa que a Igreja devia pedir perdão! As Cruzadas, imediatamente idealizadas com esse absurdo de avançarem contra os inimigos aos gritos. Que sabem eles de Deus? Fiz essa pergunta a um teólogo há pouco tempo: o que é que sabem de Deus, afinal de contas? Não sabem nada, alguém um dia disse que Deus existe e depois os teólogos não têm feito outra coisa senão armar o andaime para que essa ideia se sustenha.


Então, tem acompanhado estas questões?
Mais ou menos e, ultimamente, fiz uma descoberta através de uma pessoa, de que Deus antes da criação do universo não tinha feito nada. Durante uma eternidade, que nem podemos avaliar quanta, até que chega a um momento em que decide criar o universo - não se sabe para quê - em seis dias e ao sétimo descansou. E continua a descansar até hoje! Quando digo, e sobre isso não tenho qualquer espécie de dúvida, que o ser humano inventou Deus e imediatamente se escravizou a ele, isto é óbvio! E depois aquilo que ultrapassa a minha capacidade de compreensão é o facto de que, se houvesse Deus, seria apenas um único Deus. Não podemos imaginar um céu dividido em três, quatro, cinco, dez ou cinquenta pedaços e um deles a governar. Portanto, se houvesse Deus, seria um só Deus. Se houvesse um Deus, por muito diferentes que fossem, seriam equivalentes, cada um o faria de acordo com a sua cultura, com o que quer que fosse, mas não é isso que se passa, cada igreja só pensa em derrotar a outra e cada religião só pensa em derrotar a outra. E foi o que se fez: os protestantes, os albigenses, os valdenses perseguidos, enforcados em França. Não há duas pessoas de um manto de religiões diferentes que se sentem a uma mesa e digam uma à outra: "Vamos acabar com isto." O facto religioso está aí, não se pode nada contra ele, e quando digo "acabar com as religiões", sou perfeitamente consciente de que isso não é possível. Mas a minha pergunta é esta: se crêem em Deus, crêem em um Deus. Portanto, até mesmo por respeito a ele, porque não se põem de acordo sobre uma palavra, simplesmente: paz? Paz entre as religiões.


As religiões estão a substituir as ideologias?
Aquilo a que chamamos ideologias nasceu depois de milhares de anos de religião. A religião, que é uma ideologia, precedeu o aparecimento recente daquilo a que nós chamamos ideologias.


Uma das críticas que lhe fizeram nesta polémica é que, sendo Prémio Nobel, não poderia fazer estas afirmações tão polémicas.
Ah, não?! Isso é caricato. Então um Nobel que me foi dado - supõe-se que por boas razões - seria paralela e contraditoriamente algo que deveria fazer-me calar e não tocar em certos assuntos? Era o que faltava!


Nesta polémica, após as críticas da Igreja, houve uma tentativa de a politizar com as declarações do eurodeputado Mário David...
Essas declarações não merecem comentário. Não tenho nada que dizer sobre isso. Ele referia-se que em tempos ameaçara com a renúncia à cidadania portuguesa.
Que eu teria dito isso! Para além de tudo, é mentiroso, pois isso nunca aconteceu. A única coisa que disse - e o futuro nos dirá se tenho razão ou não - é que a união de Portugal com a Espanha será uma fatalidade. Positiva, espero, e que não retirará nada à cidadania portuguesa que continuaremos a ter. Nem ao hino, nem à língua, nem à cultura, nem a nada, até porque a confederação ibérica foi defendida no séc. XIX por muito boa gente como, por exemplo, Antero de Quental.


Continua a pagar os seus impostos cá?
Sempre e até ao último cêntimo. Sou mais honesto a pagar os meus impostos que muitos dos ricaços que estão por aí, que os sonegam, que os escondem e os levam para os paraísos fiscais.


Acha que este ataque imediato da Igreja foi uma tentativa de fazer um ensaio sobre a sua "cegueira" religiosa, ao afirmarem que é um livro unilateral?
Porque é que dizemos cegueira religiosa? É uma cegueira que impede de ver a religião ou é a religião que cega as pessoas?


Aceita que Caim é ingénuo?
Não! Quanto ao ingénuo, há sempre um grau de ingenuidade - felizmente - no que se faz, que é crer que se pode fazê-lo bem e tentar fazê-lo assim foi o que aconteceu comigo. Quanto a essa história, que para a Igreja é o cavalo-de-batalha, de que não levei em conta as leituras simbólicas, a minha resposta é esta: eu li um texto, que é o que difundem e não podem apagar. Se querem evitar leituras simbólicas, então ponham ao lado de cada pessoa um teólogo que explique ao leitor da Bíblia o que é que deve encontrar lá.


O livro saiu em Portugal, no Brasil e em Espanha, países maioritariamente católicos. Acha que esta reacção vai continuar?
Não, em Espanha, não. Publicou-se lá recentemente um livro do Fernando Vallejo, La puta de Babilonia, que se fosse eu a escrever aquilo cá em Portugal tinham-me dependurado num desses candeeiros da avenida. É de uma violência de denúncia e de crítica que é um autêntico bota--abaixo.


A reacção em Portugal deve-se a Caim ser escrito por José Saramago? Basta isso?
Se calhar, basta, mas eu não sou juiz nesse caso. O que digo é que a minha pessoa desperta muitos anticorpos nesta terra.


Que resultaram numa polémica nacional…
Uma polémica que, no fundo, não tem grande sentido. Se não fosse a requintada sensibilidade da Igreja em certos casos - outros há em que não teve nenhuma - isto não teria acontecido. Tive a ingenuidade de supor que a Igreja Católica não se ia meter nisto, porque era o Antigo Testamento. Como digo, e eles não negam e as sondagens ou inquéritos confirmam, os católicos não lêem a Bíblia. Quando muito, lêem o Novo Testamento, e algum mais curioso, ou mais amante da beleza de textos, irá ler o Cântico dos Cânticos, os Salmos e pouco mais. Era o que eu pensava que ia acontecer e não se compreende que pessoas tão habituadas à diplomacia secreta, como é a da Igreja, saltem à arena mal o livro saiu, tomando como pretexto as declarações que fiz em Penafiel. Só que o que disse em Penafiel já o tinha dito antes, que [a Bíblia] não é livro recomendável às crianças. Mas isso não quer dizer nada, os protestantes da facção evangelista são educados na interpretação literal - se é literal não é interpretação, é aquilo que lá já está - e é por aí se regem.


O seu pecado original foi ter feito aquelas declarações em Penafiel?
O que é que eu disse, afinal de contas?! Que na Bíblia há violência, crueldade, incestos e carnificinas? Isso não pode ser negado. Ainda que eu tenha chamado à Bíblia um manual de maus costumes, qualquer um o podia ter feito, porque é, efectivamente, o que é. Tudo quanto é negativo no comportamento humano está ali escrito.


Refere-se ao Antigo Testamento?
O Antigo Testamento é uma espécie de catálogo do pior da natureza humana. O que mostra que, tendo sido escrito há três mil anos, chegamos à triste conclusão de que a natureza humana não melhorou muito. A questão de Deus, que é o que aflige talvez mais aos crentes - um Deus que nunca viram ou que, como eu digo, nunca alguém se sentou a tomar um café com Ele -, é outra coisa.


Queria a Igreja, ou alguns dos representantes, que se levasse em conta as leituras simbólicas da Bíblia?
A grande crítica é que não deu o desconto de ser uma linguagem metafórica.
O que não me impede de considerar a literalidade do texto. Não é isso que está lá escrito? Se a leitura da Bíblia, tal qual ela se apresenta aos olhos de qualquer pessoa, não pode ou deve ser lida assim e se há que levar em conta as leituras simbólicas, então, repito, estão obrigados a colocar ao lado de cada pessoa que esteja a ler a Bíblica um teólogo que oriente essa leitura, para que não caia na tentação, parece que primária e ingénua, de tomar à letra o que lá está.


Não aceita estas críticas, portanto?
Não nego a possibilidade de uma leitura simbólica, ou duas, ou três, ou quatro, ou cinco ou as que quiserem. Mas que as leituras simbólicas e o trabalho da exegese não sirva para fazer de conta que a letra não existe. Não sou teólogo, nem para lá caminho, e não estava obrigado a complicar uma narração que queria simples e directa com introduções exegésicas ou lá do que gostariam. Aquilo que está ali foi lido assim durante séculos, apenas descontando aqueles em que a leitura da Bíblia esteve proibida pela Igreja Católica. É que a Igreja Católica tem muitos telhados de vidro, mas entretém-se a dizer que são os outros que os têm. E, por isso, armou-se uma polémica sem qualquer sentido.


Preferiria que não tivesse acontecido?
Uma coisa é uma opinião que se tem: o livro era mau, o livro não presta, o livro do ponto de vista da Igreja está incorrecto. Que se ficasse por aí.


A reacção, no entanto, foi imediata.
Logo na manhã seguinte já estavam todos alvoroçados a atacar-me! Apesar de terem uma experiência de séculos, podiam ser um pouco mais prudentes, mas são como os cãezinhos de Pavlov, reagem imediatamente ao estímulo. É lamentável. E a Igreja fez uma triste figura em tudo isso, pede-se-lhe mais responsabilidade. Quando disse que há muita frivolidade nos senhores da Igreja, é mesmo o que penso, porque só um comportamento frívolo é que explica isto.


Vários padres disseram que já começaram ou até já leram o livro. Acha que o conseguem ler como uma obra literária?
Não. Estão demasiado condicionados para ler tudo à luz dos preceitos que lhes foram incutidos, em que se criaram, educaram e prosperaram. Portanto, não vão ser capazes. Excepto um ou outro e eu até fiquei surpreendido quando ouvi um teólogo - uma coisa é um teólogo e outra é um padre -, Anselmo Borges, dizer que tinha gostado do livro. Mas a Igreja fará sempre afirmações que querem dizer: "Não devias ter escrito esse livro, devias ter escrito outro." Quer dizer, outro que estivesse de acordo com os preceitos da Santa Madre Igreja.


Também se fizeram ouvir representantes de outras religiões.
Sim, embora sem grande êxito, alguém pôs em marcha as outras confissões religiosas. Os judeus não deram grande importância...


Esperava pior reacção dos judeus?
Quem é que é directamente atingido? Os judeus, que continuam a considerar o Antigo Testamento, a Torah, como o livro sagrado por excelência. Há que dizer que não invento nada, limito-me a levantar as pedras e ver o que está debaixo. Se acho que uma pedra merecia ser levantada, é, justamente, a do assassínio de Abel. E fi-lo.


Caim sempre o perseguiu a vida toda?
Não, coitado do Caim. Desde que li, já lá vão muitos anos, a história de Caim e de Abel, logo me pareceu que havia ali qualquer coisa que não funcionava bem em termos de comportamentos normais, seja de seres humanos ou de Deus, se é que Deus tem algum comportamento normal. Caim mata Abel e o que se esperaria seria que Deus condenasse Caim, de uma forma radical por essa morte. Olho por olho, dente por dente. Mas não - propõe-lhe um pacto que consiste em "eu não te mato, ficas condenado à errância por toda a tua vida". E quando Caim, com uma preocupação bastante legítima, diz: "Mas, como eu matei o meu irmão, agora qualquer pessoa pode matar-me", Deus diz: "Não, porque eu vou pôr em ti um sinal que impede que te matem." Não é estranho? Há um comportamento que, por mais voltas que as igrejas que nasceram do cristianismo lhe dêem, não tem justificação.


A Bíblia não serve de exemplo?
Não consigo entender porque é que Deus aceita um sacrifício e rejeita o outro. Não sabia, omnissapiente e omnipotente, o que ia acontecer? Estava tão confiante na humildade de Caim que pensou que não aconteceria nada? Pois, aconteceu. Essa é a raiz do livro e não outra. Eu não quis escrever sobre a Bíblia, nunca a pretensão seria essa! Eu quis escrever sobre algo que continua para mim a ser incompreensível e, dado o comportamento de Deus numa situação como aquela, se repete ao longo da Bíblia a mesma indiferença e também a mesma crueldade, é por isso que eu digo que Deus não é de fiar. O que é que se pode dizer de um Deus que depois de ter prometido a Abraão que se houvesse dez inocentes em Sodoma não queimaria a cidade e a queima? Podemos ter a certeza, qualquer um de nós, pobres seres humanos, que sabia - sem ir contar os inocentes - que havia inocentes: as crianças. Queimadas como os seus pais e mães, e tudo mais. O que é isso? Prometer e não cumprir?


Pôr Caim a viajar no tempo foi a solução para tratar desses episódios que critica?
Ele viaja no tempo, mas essa história das viagens no tempo já se tornou um lugar-comum.


Mas nunca pela Bíblia?
Nunca na Bíblia, mas o problema que eu tinha para resolver era este: como é que Caim, na sua vida errante, vai encontrar algo que justifique o livro? Não usei, salvo para dizer que não usaria, as palavras futuro e passado. O que utilizei foi outra coisa, chamada presente-passado, ou presente-futuro. Portanto, tudo são presentes, o que acontece é que uns já estiveram e outros irão estar. Foi uma habilidade para fugir a essa coisa da viagem no tempo, embora no fundo o seja. Mas repare que não dou importância nem faço qualquer descrição sobre os efeitos dessa passagem.


domingo, 25 de outubro de 2009

AS TURRAS COM DEUS

“Sou incapaz de acreditar em Deus...”.

José Saramago



Nobre Saramago, nobre. E é do meu coração igualmente nobre que rendo uma homenagem ao escritor português – sempre tão pontual em tudo o que diz e afirma –, após a constância da sua evidência na mídia, quando do lançamento mundial de Caim, o seu mais novo livro. Livro esse, aliás, que seria lançado mundialmente na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, mas, como fiquei sabendo, o lançamento, no Brasil, teve de ser suspenso devido a imprevistos na agenda do autor.

Em Caim, portanto, Saramago reiventa o Antigo Testamento, diferentemente de O Evangelho segundo Jesus Cristo, publicado em 1991, onde o escritor deu a sua visão crítica do Novo Testamento, desencadeando uma torrente de polêmicas. Porém, como ainda não li Caim, não me atrevo a comentá-lo. Seria uma heresia. Limito-me, então, a transcrever, abaixo, uma entrevista concedida recentemente por Saramago, sempre tão lúcido e sagaz, ao repórter Ubiratan Brasil, da Agência Estado. Voilà!


Nathalie Bernardo da Câmara


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Da doença que quase lhe custou a vida no ano passado, José Saramago exibe poucos resquícios, como uma magreza ligeiramente mais acentuada que a habitual. A língua, porém, continua ferina e, prestes a completar 87 anos (em novembro), o escritor português comemora o lançamento de um novo livro, Caim (Companhia das Letras, 176 páginas, R$ 36, à venda a partir de segunda-feira, 19), disparando críticas a torto e a direito.

Primeiro, contra um desafeto antigo, Deus - se em O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) apresentou sua provocativa visão do Novo Testamento, em Caim, Saramago volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, ao mostrar a jornada do personagem principal, depois de assassinar seu irmão Abel. Em seu trajeto, Caim amaldiçoa o amargo destino reservado por Deus.

Nesta semana, quando esteve em Turim para o lançamento de sua obra anterior, O Caderno (seleção de textos divulgados em seu blog), José Saramago revelou seu desprezo pela crença dos religiosos, em especial os católicos.

Ele chamou o papa Bento XVI de “cínico” e disse que a “insolência reacionária” da Igreja precisa ser combatida com a “insolência da inteligência viva”. “Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas o absoluto cinismo intelectual desta pessoa.”

Na Itália, o escritor aproveitou para novamente criticar o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. “Assim como a eleição de Barack Obama foi um sinal de esperança para o mundo, a sentença da Corte Constitucional contra a imunidade de Berlusconi é um sinal de esperança para o povo italiano, que deve retomar seu caminho”, afirmou o escritor.

Ele se referiu à queda da Laudo Alfano, lei que garantia imunidade penal aos quatro maiores cargos do governo da Itália, inclusive o primeiro-ministro, e que foi derrubada pela Justiça na semana passada. Com isso, Berlusconi voltará a responder pelos processos nos quais é citado.

É possível, portanto, que Saramago continue desferindo seus golpes verbais neste domingo (18/10), em Penafiel, cidade portuguesa que lhe fará homenagem e onde acontece o lançamento oficial de Caim. Sobre essa obra, que foi apresentada à imprensa mundial em Frankfurt, durante a Feira do Livro, Saramago respondeu, por e-mail, às seguintes perguntas.

AGÊNCIA ESTADO - A ideia de Caim surgiu há alguns anos, mas o senhor já disse que que a história só começou a tomar forma em dezembro do ano passado. Por que justamente nessa época?

SARAMAGO - Não perguntamos a uma maçã porque amadureceu naquele momento e não noutro. Neste sentido o escritor é uma maçã, tem uma ideia, desenvolve-a pouco a pouco, até que sente que está pronto para começar a escrever. O que há de mais complicado neste processo passa-se no subconsciente, uma subconsciente que trabalha por conta própria e só depois apresenta os resultados.

AGÊNCIA ESTADO - Em outra entrevista, o senhor disse também que utiliza seus romances como veículo para a reflexão sobre a vida. Em que aspecto a religiosidade é cabível na reflexão proposta por Caim?

SARAMAGO - Caim é um livro escrito contra toda e qualquer religião. Ao longo da História, as religiões, todas elas, sem exceção, fizeram à humanidade mais mal que bem. Todos o sabemos, mas não extraímos daí a conclusão óbvia: acabar com elas. Não será possível, mas ao menos tentemo-lo. Pela análise, pela crítica implacável. A liberdade do ser humano assim o exige.

AGÊNCIA ESTADO - O senhor acredita que o tom antirreligioso de Caim provocará semelhante celeuma como aconteceu com O Evangelho segundo Jesus Cristo? Pergunto isso pois, em A Viagem do elefante, são postas a nu muitas das hipocrisias da Igreja Católica - os católicos já se acostumaram com José Saramago?

SARAMAGO - Não gostaria que se acostumassem, mas espero, se forem sensatos, que não se metam com um livro que não lhes diz respeito.

AGÊNCIA ESTADO - Se O Evangelho segundo Jesus Cristo despertou a ira de parte da comunidade católica mundial quando lançado, o senhor acredita que Caim provocará o mesmo entre os religiosos judeus?

SARAMAGO - É possível. Será necessária uma argumentação muito retorcida para explicar e justificar os atos de barbárie de que a Bíblia está repleta. Em todo o caso, tenho a pele dura. Nada do que possam dizer me surpreenderá.

AGÊNCIA ESTADO - O senhor ainda sente necessidades de ajustar contas com Deus, mesmo acreditando que ele só existe na cabeça das pessoas?

SARAMAGO - Deus não existe fora da cabeça das pessoas que nele creem. Pessoalmente, não tenho nenhuma conta a ajustar com uma entidade que durante a eternidade anterior ao aparecimento do universo nada tinha feito (pelo menos não consta) e que depois decidiu sumir-se não se sabe onde. O cérebro humano é um grande criador de absurdos. Deus é o maior deles.

sábado, 24 de outubro de 2009

Do baú...


CRÔNICA DE UMA VIDA ANUNCIADA



Às vezes, penso se viver é realmente uma arte, se requer habilidades específicas, intuição ou, até mesmo, sabedoria; noutras, se requer, simplesmente, maneirismo, traquejo, jogo de cintura, ou, no caso do brasileiro, um certo jeitinho; por fim, se não requer nada, nenhuma aptidão, nada, mas apenas viver, se deixar viver, ou melhor, se deixar levar, ao sabor do vento, no ritmo do tempo, quer sejamos cigarras, quer sejamos formigas.

Não obstante, ociosos como as primeiras, ou laboriosos como as últimas – somos, na verdade – em verdade, somos um pouco de cada –, podemos presenciar, nesse período do ano, mais um despertar das cigarras, cantarolando o seu cio, cumprindo mais um ciclo que se encerra. Saindo dos seus casulos, após sete anos de espera, elas se esbaldam, durante sete horas, nos ares e nas luzes do planalto, por toda parte, dando vazão a um gozo, até então, adormecido.

São sete horas de puro êxtase! Tempo em que os machos emitem sons estrídulos, que fluem dos seus órgãos sexuais durante o coito, após o qual fenecem. Curiosamente, apesar de ser uma celebração à vida, o canto das cigarras nos ensurdece num primeiro momento, embora, aos poucos, nos acostumemos com ele – sintonia ininterrupta que passa a compor o cenário urbano, desafiando os ruídos do trânsito.

Já as formigas... As formigas, nesse período do ano, só pensam em trabalho. São, portanto, minoria. E, como toda minoria, elas quase nunca têm voz, apesar de não serem afônicas. Só que, por não terem voz, quase nunca são ouvidas, nem sentidas. Apuremos, então, a nossa audição, para ouvirmos o canto das cigarras, soberanas, majestosas, macho ou fêmea, alardeando, aos quatro cantos, que o sentido da vida, para elas, é amar.

E as cigarras amam, sim, sem pudor, à céu aberto, protegidas do sol e do calor abrasador sob a copa das árvores – sua alcova, com sombras que são verdadeiros mantos, acalento necessário para o exercício do amor. E, assim, fiéis ao ofício de amar, as cigarras se concentram no seu idílio sazonal, indiferentes e imunes ao bafo quente e seco desse pássaro de concreto que é Brasília, cuspindo labor, rotina e cansaço por todos os lados.

Pois é! As cigarras, que, de tempo, só conhecem o seu próprio ciclo, sete anos debaixo da terra, sete na atmosfera, vivem incólume ao ritmo das formigas. Para elas, as cigarras, o importante é amar, nem que, para isso, tenham de passar sete anos a jejuar. Vai ver, é por isso que as cigarras se entregam ao amor de maneira tão intensa, valorizando a sua importância e a da vida – característica da sua natureza romântica.

Enquanto isso, nós, humanos, apesar de ora laboriosos como as formigas, ora ociosos como as cigarras, costumamos dar mais importância à retidão das primeiras que à amorosidade das últimas. Atados ao dever típico das formigas, esquecemos de amar, à exemplo das cigarras. Formais, desconhecemos o que seja descontração e felicidade. Quiçá, se o nosso ciclo fosse de apenas sete anos, como o das cigarras, daríamos à vida e ao amor a importância que lhes é devida.

Mas não. O labor supera o ócio, superando igualmente a afetividade e a entrega. A vida vira cotidiano e nos perdemos no dia a dia das nossas desilusões; como as formigas, estamos impregnados de retidão, sem o ímpeto das cigarras, sem tesão. Empedernidos, esquecemos de despertar os nossos sentidos adormecidos, esquecemos da maleabilidade dos nossos corpos ao amar, esquecemos dos nossos próprios ruídos e gozos, esquecemos de sonhar.

Assim, sem vermos o tempo passar, cada vez mais nos parecemos com formigas do que com cigarras, esquecendo da necessidade de uma alcova e da proteção de uma manto; ficamos ao relento, a vagar, tragando o bafo quente e seco de certos pássaros. E o que é pior, nem pássaros somos, porque não temos asas nem somos livres. Preferimos a indiferença dos sentidos à sairmos do nosso casulo para a vida, esquecendo que viver é amar – inexorável verdade, sem a qual não somos nada...

Nathalie Bernardo da Câmara

domingo, 4 de outubro de 2009

LA NEGRA SOSA

LA NEGRA SOSA


(Tucumán, 9/7/35 - Buenos Aires, 4/10/09)



"En el día de la fecha, en la ciudad de Buenos Aires, Argentina, tenemos que informarles que la señora Mercedes Sosa, la más grande Artista de la Música Popular Latinoamericana, nos ha dejado"... Foram essas as palavras que, neste domingo, 4 de outubro, pouco depois das cinco horas da manhã, os argentinos ouviram de um assessor de imprensa, tomando conhecimento, com pesar, da morte, por complicações cardiorespiratórias, aos setenta e quatro anos de idade, de um dos maiores ícones da liberdade da Argentina. Na última sexta-feira, contudo, Mercedes Sosa já havia recebido a extrema-unção. A família esperava por um milagre, que não veio, calando a voz da América Latina... Que se levantem, então, todas as bandeiras!

Si se calla el cantor


Si se calla el cantor calla la vida
porque la vida, la vida misma es todo un canto
si se calla el cantor, muere de espanto
la esperanza, la luz y la alegría.


Si se calla el cantor se quedan solos
los humildes gorriones de los diarios,
los obreros del puerto se persignan
quién habrá de luchar por su salario.


'Que ha de ser de la vida si el que canta
no levanta su voz en las tribunas
por el que sufre, por el que no hay
ninguna razón que lo condene a andar sin manta'


Si se calla el cantor muere la rosa
de que sirve la rosa sin el canto
debe el canto ser luz sobre los campos
iluminando siempre a los de abajo.


Que no calle el cantor porque el silencio
cobarde apaña la maldad que oprime,
no saben los cantores de agachadas
no callarán jamás de frente al crimen.


'Que se levanten todas las banderas
cuando el cantor se plante con su grito
que mil guitarras desangren en la noche
una inmortal canción al infinito'.


Si se calla el cantor . . . calla la vida.
Compositor: Horacio Guarany
Intérpretes: Mercedes Sosa y Atahualpa Yupanki

Para ouvir a música, clique o link abaixo:

http://www.nuestraedad.com.mx/sicallaelcantor.htm

domingo, 20 de setembro de 2009



XIXI SUSTENTÁVEL



Achou a pergunta acima inusitada? Pois é! A enquete da campanha Xixi no banho está sendo promovida pela ONG brasileira SOS Mata Atlântica e pode ser encontrada no site http://www.xixinobanho.org.br/. Por mais incrível que possa parecer, o ato de fazer xixi no chuveiro não é nada nojento e nem transmite doenças. Ou seja, fazer xixi no banho é ecologicamente correto. Afinal, segundo o site, uma descarga dada para eliminar o xixi do vaso sanitário corresponde a doze litros de água potável disponível no planeta. E quanto menos água se gastar menos se degrada a natureza, preservando os recursos naturais e a nascente dos rios. O recomendável, contudo, é que se faça xixi - composto por 95% de água e 5% por uréia e sal, entre substâncias outras - no início do banho, pois a água corrente lava e leva tudo para o ralo. Então, o que você está esperando?

sábado, 19 de setembro de 2009

Do baú...



TERRA À VISTA!


“Muitos são os que falam, mas poucos os que sabem o que dizem”.

José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta
Terra Papagalli


Quando os portugueses puseram os pés em terras do atual Estado do Rio Grande do Norte, por volta de 1500 e alguma coisa, os seus olhos devem ter confirmado a impressão que tiveram desde que, ainda em alto-mar, avistaram, anos antes, no dia 22 de abril de 1500, a Terra dos Papagaios pela primeira vez. Ou seja, eles estavam desembarcando no Paraíso. Porém, não demorou muito, a cobiça dos portugueses foi, mais uma vez, atiçada, logo transformando toras de pau-brasil, ouro, araras, com as suas exuberantes plumagens, e, até mesmo, exemplares vivos ou mortos de índios em cifrões. Como tudo isso começou?

No dia seguinte à chegada dos navegadores lusos ao Ilhéu de Coroa vermelha, nas águas da Baía de Cabrália, na Bahia, quando os portugueses estabeleceram o primeiro contato com os habitantes locais – logo chamados de índios –, ajudados, é claro, por um gaiteiro. À oportunidade, um dos tripulantes da esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral (1467 - 1520) presenteou os índios, como prenda por seu exotismo, com um singelo espelho. E, aí, com aquele estranho objeto do desejo em mãos, o aborígine logo tratou de rapaginar o visual, formulando a pergunta: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais simplório do que eu?”.


Foto: Nathalie Bernardo da Câmara

Corte de cabelo inspirado no dos jesuítas.

Foi a gota d’água, ou melhor, a senha para que, de imediato, os portugueses percebessem que não seria, assim, tão difícil, tomar para si as terras de tão gentis nativos, os próprios nativos e, é claro, as suas riquezas, logo criando a, hoje, tão conhecida propaganda enganosa. Afinal, em questão de dias, os portugueses puseram as mangas de fora e revelaram as suas verdadeiras intenções. Utilizando a força braçal indígena, eles derrubaram o primeiro dos milhares exemplares de pau-brasil (caesalpina echinata), extremamente lucrativo, que, durante séculos, confiscariam da Mata Atlântica brasileira, transportando-os para a Europa.


A Primeira missa no Brasil, 1861 – Victor Meireles

Bom! Madeira no chão, os portugueses esculpiram, toscamente, uma cruz, portando as armas e as divisas de Portugal, e, no dia 26 de abril, como marco da sua nova conquista, amparada pelo Tratado de Tordesilhas, assinado com a Espanha, em 1494, erigiram o símbolo cristão no Ilhéu de Coroa Vermelha e celebraram a primeira missa no Brasil, arrogantemente tomando posse das terras que mal conheciam e que, aliás, já tinha dono. Achando pouco, os primeiros posseiros que o Brasil conheceu – nascia, aí, a prática de grilagem de terras – decidiram realizar uma segunda missa. Desta vez, na foz do rio Mutarí, no dia 1° de maio.




No dia seguinte, ou seja, no dia 2 de maio, após deixar alguns pobres coitados em terra-firme, abandonados a sua própria sorte, já que, apesar de firme, a terra era totalmente desconhecida, Pedro Álvares Cabral lavou, literalmente, as mãos e partiu rumo às Índias, mas não sem antes, é claro, abastecer as suas naus com lenha, água doce e demais artigos básicos necessários à travessia. O curioso é que, apesar de passar apenas dez dias na Terra dos Papagaios, Cabral teve tempo suficiente para, em pouco tempo, fundamentar as bases de muitos dos estragos que, futuramente, seriam cometidos no Brasil.



Os fenícios.

Falando em Brasil, o fato é que existem controvérsias a respeito de quem primeiro chegou à Terra dos Papagaios, visto que, antes de Cabral, dois espanhóis, Vicente Pinzón e Diego de Lepe, já haviam navegado pela costa brasileira, mas, em função do Tratado de Tordesilhas, logo partiram. Então, quem chegou primeiro? A bem da verdade, nem espanhol nem português. Os pioneiros foram os fenícios, cuja primeira visita ao Brasil remonta aos idos de 1.100 a. C., embora, depois disso, “durante o reinado de Salomão (961 - 920 a.C.), cumprindo um acordo feito entre o rei de Judá, Davi, e o rei fenício Hirão II”(1) , tenham retornado outras vezes.

Tanto que foi com o ouro, demais metais preciosos e a madeira do Brasil que o rei Salomão construiu o Templo de Jerusalém(2). As viagens dos fenícios ao Brasil, juntamente com os hebreus, foram, então, registradas em documentos, guardados na biblioteca do Templo de Salomão. Tempos depois, encontrados pelos templários, após a fundação, no séc. XII, da Ordem dos Cavaleiros do Templo de Salomão, os documentos permitiram o nascimento do embrião das futuras “navegações e ‘descobertas’ empreendidas pelos reis-templários de Portugal”(3), cuja fundação, aliás, em 1143, bem como a sua localização, foi, de certa forma, motivadas pelos ideais milenaristas.

Fundado por São Bernard de Clairvaux (1090 - 1153), patrono da ordem dos templários, Portugal teve como seu primeiro rei o templário dom Afonso Henriques (1109 - 1185), sendo a sua localização considerada propícia aos descobrimentos almejados, já que “era o ponto geográfico mais próximo do caminho para as Américas, principalmente para o Brasil”(4). Dois séculos depois, em 1296, um outro rei templário, dom Diniz (1260 - 1325), criou, juntamente com a rainha Isabel de Aragão (1270 - 1336), o Projeto Áureo, que, entre outras ações, consistia em abrir “as portas do mundo para os descobrimentos e a modernidade”(5).



A rainha Isabel de Aragão e o rei dom Diniz.

Um dos cinco alicerces do Projeto Áureo era, inclusive, a “plantação de pinhais para as futuras naus dos descobrimentos”(6). Com a morte de dom Diniz, em 1325, assumiu o trono português o seu filho Afonso IV (1291 - 1357) – época em que surge a Carta Náutica, do cartógrafo genovês Angel Dalorto, descrevendo a localização precisa da Ilha Brasil. Em 1343, o papa Clemente VI oficializa a descoberta da Insula Brasil(7). O Brasil já era, portanto, desde os tempos mais remotos, o sonho de consumo dos templários, que, alimentando ideais milenaristas, tencionavam fazer do País o berço do Quinto Império, acalentado, ao longo dos séculos, por muitos humanistas.

Ou seja, equivalente à Terceira Era proposta pelo monge calabrês Gioachino di Fiori (1131 - 1202), milenarista por excelência, o Quinto Império seria “um período de apogeu para toda a humanidade”(8). No entanto, apesar de terem participado da aventura de 1500 – o rei dom Manuel I (1469 - 1521) pertencia à ordem de Cristo –, com a missão de fazer do Brasil o “celeiro da cultura universal”, nas palavras do filósofo e escritor indiano Rabindranath Tagore (1861 - 1941), Prêmio Nobel de Literatura, em 1913(9), os templários foram oficialmente “dispensados” do processo de colonização do Brasil pelo rei dom João III (1502 - 1557).

Às voltas com interesses de cunho políticos e econômicos, que contrariavam os ideais milenaristas, dom João III dissolveu, em 1521, a Ordem dos templários. Afinal, não precisava mais dos seus conhecimentos, visto que o Brasil já tinha sido “achado”. Nesse ínterim, a Terra dos Papagaios, chamada de Ilha de Vera Cruz, já havia mudado de nome duas vezes: Terra de Santa Cruz e, por fim, Brasil. Curiosamente, o processo de colonização do Brasil pelos portugueses só teve início, de fato, duas décadas depois do seu achamento. E apenas devido à constante presença de franceses, holandeses e ingleses no Brasil.



Antes disso, o domínio luso fez, sim, do Brasil um celeiro, mas um celeiro de pau-brasil, que os portugueses, num afã sem precedentes, já que as especiarias da Índia estavam em baixa, extraiam sem dó nem piedade. Com a colonização, então, iniciada, à medida que os portugueses avançavam em suas conquistas, a supressão das liberdades individuais e coletivas da maioria dos grupos indígenas do Brasil aumentava, o que lhes fez conhecer o Inferno, onde estão até hoje. Tudo matemático. Ou seja, a exploração dos indígenas era proporcional ao acúmulo de bens dos portugueses. Ou melhor, quanto maior era a riqueza de um, maior o sofrimento do outro...

Afinal, cordatos e generosos – qualidades que foram mal interpretadas como ingenuidade e burrice –, os índios foram presas fáceis para os portugueses. Ávidos por se apropriarem do que não lhes pertencia, os portugueses, na maioria das vezes, e sem o menor escrúpulo, recorriam as ações mais bárbaras e hediondas quando o assunto era o vil metal. Achando pouco, diante de tanta fartura, e sempre querendo mais, os colonizadores lusos logo se encarregaram de importar uma equipe de assessores, ou melhor, uma companhia de jesuítas, trazida, ao Brasil, pelo governador-geral Tomé de Sousa (1515 - 1579), em 1549.

A partir de então, os padres da Companhia de Jesus se tornariam os responsáveis pelo processo de submissão do povo supostamente arredio e bronco que, aqui, encontraram. E isso até 1591, quando foram expulsos das terras brasileiras. A variedade de adjetivos, contudo, atribuídos aos índios, traduziu-se, de certa forma, em uma incoerência dos portugueses. Mas, àquela época, quem se importava em ser ou não coerente? De qualquer modo, foi uma incoerência até compreensível, já que, quando lhes convinha, os nativos eram ora gentios, cordatos e generosos, ora ingênuo, burro arredio e bronco. Pode?



O fato é que, com a chegada da Companhia de Jesus, tudo se tornou uma grande confusão! Era jesuíta para lá, jesuíta para cá... Liderados, então, pelo padre Manoel da Nóbrega (1517 - 1570), os primeiros jesuítas que vieram ao Brasil, cuja Ordem, de clérigos regulares, foi criada pelo basco Inácio de Loyola (1491 - 1556), no ano de 1539, em Paris, até que se empenharam em sua missão. Afinal, até açoitar índios eles açoitaram! Sim, como se a sua verdade fosse a única e todos, querendo ou não, tivessem de abraçá-la – de preferência, sem arco e flecha. Um dos casos mais famosos, mas pouco divulgado, foi o do jesuíta José de Anchieta (1534 - 1597).

Por mais incrível que pareça, o padre Anchieta acreditava, entusiasmado que estava com o ouro e com a sua fácil exploração, que, através de relatos sobre o metal, encaminhados ao rei, convenceria este a enviar uma esquadra unicamente para destruir os “perversos que resistem à pregação do evangelho e submetê-los ao jugo da escravidão”(10). Que paradoxo! A verdade é que faltou bom senso aos jesuítas. Ao invés de se irritarem com a nudez e as práticas de canibalismo e poligamia dos índios, eles pecaram por não terem aproveitado a sua permanência nos Trópicos para se despojarem das longas vestes, nada apropriadas ao clima local.

Quanta pequenez de espírito! Sim, porque os jesuítas também sentiram inveja da influência e do poder dos curandeiros, com a sua farmacopéia rica em ervas e chás. E, para piorar a situação, os missionários religiosos, juntamente com os demais colonizadores portugueses, dependentes que eram das suas próprias leis, cegos pela fé absoluta no catolicismo e subjugados ao rei que os dominavam, contribuíram, e muito, para disseminar, mundo afora, que os indígenas não tinham lei, fé nem rei. Diziam, por exemplo, que os índios precisavam de uma organização social, de lei – daí negarem a cultura indígena e reprimirem os seus hábitos e costumes, tidos como “selvagens”.

Achando pouco, disseram que os índios precisavam, igualmente, de uma religião, de fé – daí tentarem, a ferro e fogo, catequizá-los. Por fim, disseram, também, que os índios não tinham senhores soberanos, um rei – daí a escravidão a que muitos foram subjugados, em nome da Coroa Portuguesa. De novo, como podemos ver, eles se valeram da propaganda enganosa – sempre tão útil, quando convém. Acontece que os portugueses não entendiam que os indígenas tinham, sim, uma lei, mas não a do branco; que tinham, também, uma fé, só que em Tupã, não em Cristo; bem como tinham um rei, só que chamado de cacique.

Desse modo, os portugueses é que passaram a se comportar como verdadeiros selvagens, massacrando tribos e dizimando inúmeros povos indígenas, à revelia do direito destes à vida. Foi o quê, a exemplo de outras terras, aconteceu no Rio Grande do Norte...


Os Potyguara (11)




Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Índio que atuou como figurante no filme Batalha dos Guararapes, de Paulo Thiago, lançado em 1978, que retratou a luta entre holandeses e luso-brasileiros, nos arredores de Recife, em Pernambuco, no início do séc. XVII.



Segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898 - 1986), após a chegada dos portugueses no Rio Grande do Norte, três séculos foram suficientes para que a região perdesse a sua população aborígine, basicamente constituída por três grandes grupos: os gê, os cariri e os potyguara(12). Todavia, neste genuíno artigo, nos reservarmos a falar dos índios potyguara, que, até hoje, mesmo não mais existindo sequer um autêntico exemplar no Rio Grande do Norte, ainda dá nome a quem nasce no Estado. Vamos tentar, então, definir os potyguara.

Para Cascudo, “poti é camarão e guar, particípio nominal, significa oriundo, vindo de, o que é de, o que é com etc. (...) Daí potiguar ser procedente do camarão ou comedor de camarão, se tomarmos o particípio como sendo nominal, no primeiro caso, ou tempo do verbo comer, no segundo”(13). No entanto, para o desembargador Luiz Manoel Fernandes Sobrinho (1856 - 1935), potyguar em hipótese alguma pode significar comedor de camarão. Afinal, na língua tupy, “para significar comedor temos a palavra quar ou quara, de maneira que comedor de camarão seria potyquar e não potyguara ou potyguar”(14).

E o desembargador vai mais longe quando afirma que o correto seria petyguares, ou melhor, “amigos do fumo”, já que este era o verdadeiro nome dos aborígines em questão, antes da chegada dos portugueses no Rio Grande do Norte(15). Acontece que, ainda segundo Luiz Fernandes, cronistas e historiadores da época deram aos índios que habitavam o litoral do Rio Grande do Norte, “por manifesta confusão de idéias, o nome de potyguares ou potyguaras”, que, para ele, significa “amigos de poty”, nome que, por sua vez, significa “camarão”(16).

Para o desembargador, o equívoco deu-se porque, em meados de 1600, existiu um índio, de nome Poty, que cedeu aos encantos dos portugueses e se aliou a eles, logo se convertendo ao catolicismo. Assim, batizando-se no dia 4 de Março de 1612, o índio Poty passou a se chamar dom Antonio Felippe Camarão, destacando-se na guerra contra os holandeses e se tornando um herói(17). Desse modo, para agraciarem o tal índio por sua conversão e bravura, e porque eles não tinham muita familiaridade com a língua Tupy, os portugueses passaram a chamar petyguar de potyguar.

O fato é que até bem pouco tempo depois da chegada do homem branco às terras que, hoje, vão da Paraíba até o Maranhão, os potyguara falavam a língua Tupy, habitavam o litoral, viviam da pesca e da agricultura, plantando grãos e raízes, comiam frutas, se deliciavam com mel e apreciavam a carne de animais ditos de caça. Além disso, quando, após alguma luta, com tribos vizinhas, faziam algum prisioneiro, eles realizavam certos rituais, em cujo cardápio constava carne humana – a carne do prisioneiro –, embora, vale salientar, não sem antes darem um trato no mesmo.


Ritual de canibalismo.

Sim, apesar da propaganda de que os potyguara não eram hospitaleiros, as índias até que se esforçavam. Asseadas e vistosas, elas sabiam que higiene era fundamental, sobretudo para agradar as suas narinas. Desse modo, nos dias que antecediam ao sacrifício, elas se dedicavam de corpo e alma ao prisioneiro, cobrindo-o de afagos, dando-lhe comida e deixando o seu corpo lavado e sem impurezas, satisfazendo, portanto, todas as exigências de um rigoroso controle de qualidade, o qual era feito pelo chefe da tribo, que autorizava ou não o consumo do produto.

Mas, práticas de canibalismo à parte, já que se os potyguara comiam a carne dos adversários era porque acreditavam que os tornariam fracos, presas fáceis numa próxima batalha, ou qualquer outra sorte de aberração que o valha, os comedores de camarão, segundo o folclorista Câmara Cascudo, eram, decididamente, um povo livre e feliz. Porém, no séc. XVI, quando o Brasil passou a ser dividido em Capitanias Hereditárias, a liberdade e a felicidade dos índios, de uma maneira em geral, passaram a ter os seus dias contados.



Tratado de Tordesilhas, 1494.

A bem da verdade, àquela época, a Capitania do Rio Grande começava na Baía da Traição, hoje pertencente à Paraíba, e ia até onde, hoje, o Rio Grande do Norte faz fronteira com o Ceará(18). Unindo as duas extremidades, uma enorme extensão de terras cobertas de mata virgem, a qual passou a ser acintosamente violada não somente pelos portugueses, mas, também, por corsários franceses, holandeses e ingleses – excluídos do Tratado de Tordesilhas –, que extraiam um sem fim de pau-brasil, utilizado para tingir tecidos, construir navios e fabricar móveis preciosos.

Tal prática, ao longo dos séculos, deu início ao processo de devastação da Mata Atlântica na região, assim como em todo o litoral brasileiro – atualmente, existem, no País, apenas, 7% do que ela já foi um dia –, e privou, paulatinamente, os potyguara do seu habitat, fazendo-os se refugiaram e se concentraram na Baía da Traição, na Paraíba, cujo nome original, segundo os pesquisadores consultados, era Akajutibiro, que significa terra dos cajus amargos(19). Já o nome Baía da Traição foi dado, obviamente, pelos portugueses. E três versões tentam explicar o motivo da escolha de tal nome.

Ou seja, o fato de muitos portugueses terem sido tragados pelas águas ditas traiçoeiras do mar do lugar, que possui longos e escorregadios arrecifes, da costa até o alto-mar; as alianças firmadas pelos potyguara com franceses e holandeses e o canibalismo então praticado pelos índios da região – um dos primeiros grupos, aliás, a serem contatados pelo colonizador luso. Só que, como era de praxe, os potyguara, bem como muitos outros grupos indígenas do País, sofreram, inevitavelmente, a interferência e a influência dos portugueses, além de demais povos europeus.

Inicialmente colonizados pelos portugueses, seguidos dos franceses, de quem, em um dado momento histórico, se tornaram aliados, os potyguara derrotaram os primeiros. Em 1584, contudo, os portugueses expulsam os franceses do lugar e, em 1591, chega a vez dos jesuítas serem expulsos do País. Feitas as pazes, então, com os portugueses, em 1599, os potyguara passam a ser catequizados por uma missão carmelita enviada ao Brasil. Em 1625, os holandeses fazem uma rápida e informal visita à Baía da Traição.

Ao partirem, levam consigo alguns índios, que, anos depois, quando do domínio holandês no País, voltaram falando a língua dos dominantes, bem como convertidos ao calvinismo. O tempo passa e, com a expulsão dos holandeses pelos portugueses, em 1654, os potyguara são induzidos pela missão carmelita, que continuava na região, catequizando e convertendo – não arredava pé! – a formarem as aldeias da Baía da Traição e as da Preguiça – olhe o nome! –, no atual município de Mamanguape, também na Paraíba, bem como a elegerem padroeiros para as tribos.

Resultado: São Miguel foi eleito o santo protetor da Baía da Traição e Nossa Senhora dos Prazeres a santa protetora da Preguiça... Curiosa, não, a relação de prazeres com preguiça? Mas, bom! Um belo dia do séc. XIX, movido, quiçá, por algum sentimento ufanista, dom Pedro II (1825 - 1891) decidiu fazer uma “boa ação”, garantindo aos potyguara o direito a um pedaço de terra. No dia 27 de dezembro de 1859, o monarca doou aos potyguara “a sesmaria de Baía da Traição – na realidade, uma re-doação, porque a sesmaria já era deles há muito tempo”(20).

Ou seja, as terras dos potyguara, transformadas em sesmarias, antes mesmo de serem sesmarias já lhes pertencia. Porém, os documentos que poderiam comprovar o nobre gesto “nunca foram encontrados e deve ter sido destruídos pelos invasores das terras indígenas”(21). O tempo passou e, no séc. XX, na década de trinta, sob os auspícios do então Serviço de Proteção ao Índio - SPI, criado em 1910, foi fundado, na aldeia São Francisco, na Baía da Traição, o Posto Indígena - PI Nísia Brasileira, cujo objetivo era o de assistir os potyguara, posteriormente, transferido para a aldeia do Forte.

O Serviço de Proteção ao Índio - SPI, contudo, foi extinto em 1967, sendo substituído, em suas atribuições, pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI. À época, o Posto Indígena - PI Nísia Brasileira passou, então, a se chamar PI Potiguara. Atualmente, é chamado de PIN Potyguara, tornando-se uma referência para os potyguara, que, aliás, ao longo dos séculos, a exemplo dos demais grupos indígenas existentes no País, oscilaram entre momentos de guerra e de paz, ora vindo à tona leis e alvarás, prejudicando-os, ora bulas papais, subjugando-os ainda mais.

Nos dias de hoje, contudo, os pouco mais de dez mil remanescentes de potyguara, segundos dados da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, obtidos em 2004, ocupam 333.757 hectares, distribuídos em uma área que abrange os municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação. Os potyguara do início do séc. XXI, aliás, em nada lembram os seus valorosos e guerreiros ancestrais, na luta diária pela sobrevivência, no seu modus vivendi. Sim, porque, apesar de viverem a beira-mar, eles preferem pescar em rios e mangues.

Só que, devido à poluição produzida pelas usinas de álcool e de cana-de-açúcar de regiões limítrofes, que despejam os dejetos nos rios, cujo curso passa pelas aldeias, a atividade pesqueira dos potyguara, que inclui os mangues, a coleta de crustáceos e moluscos e as suas criações de camarão – está seriamente comprometida(22). No entanto, esse povo “arretado” vive, também, da agricultura de subsistência, plantando mandioca – o principal produto agrícola da região –, cana-de-açúcar, milho, feijão e hortaliças, bem como colhendo frutos e ervas.


Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Além disso, os potyguara perderam o hábito de comer carne humana na brasa e substituíram a carne dos animais de caça – até mesmo porque estes não mais existem –, por carne de porco, galinha, pato e boi. No entanto, eles continuam, apesar dos pesares, sendo um povo feliz, enfrentando e tentando superar com dignidade e altivez, qualidades que lhe são inerentes, as adversidades. Curiosamente, os brancos – parece – não sabem viver sem os índios – no caso, os potyguara –, contaminando-os até com a sífilis e o vírus HIV.

Sim, porque gripe não é mais novidade! Nem para os potyguara nem para a maioria dos demais grupos indígenas do País, afetados, inclusive, pela mortalidade infantil, casos de emigração e discriminação. No caso dos potyguara, a pobreza é, também, um grave problema. Para tentar minimizá-la, os índios, sempre que podem, praticam o escambo, assim como produzem artesanato, que, se antes era exclusivo para uso cotidiano, passou a ser comercializado dentro e fora das suas aldeias, aumentando, de certa forma, a renda familiar.



O Toré da pajé

Foto: Tânia Costa
A pajé da reserva indígena da Baía da Traição com a jornalista.

Aceitando o convite da pajé para passar o réveillon de 1999/2000, na Baía da Traição, que, até então, eu não conhecia, tive a oportunidade, durante dois dias e duas noites, de verificar, in loco, tudo o que eu já tinha ouvido falar da descaracterização da cultura dos potyguara, ou melhor, do que sobrou das suas tradições e costumes. Obviamente que isso só me foi possível porque, além de amiga da pajé, eu era sua hóspede. E foi exatamente em sua casa, na aldeia São Francisco – olhe a influência católica! –, que tive a oportunidade de presenciar mudanças de hábitos tão radicais, motivadas, ao longo dos tempos, pela aculturação, mas, sobretudo, como já dissemos, pela pobreza.

A mesma pobreza que, aliás, aflige milhares de trabalhadores rurais de todo o Brasil e que – parece – não tem fim. Sim, o que antes era apenas um drama cultural, porque os portugueses negavam todas e quaisquer tradições que não fossem as suas, muito menos as dos aborígines que, aqui, encontraram, passou a ser também um drama social e econômico. Felizmente, esse drama não é pior porque os índios, ao contrário do que tem dito a maioria dos historiadores oficiosos, nada têm de preguiçosos. Pelo que vi, os índios são pessoas dinâmicas, criativas, enérgicas, determinadas, corajosas e, sobretudo, dispostas ao trabalho, coisa que muito europeu nem sabia o que era.

E basta ir a uma aldeia indígena para se ter noção da bravura e integridade desse povo. Um povo, aliás, que continua desafiando os desmandos de autoridades que reproduzem atos e leis de quinhentos anos atrás – instrumentos de força já utilizados pelos portugueses para negarem ao índio, como já dissemos, o seu direito à liberdade e à vida. Mas, apesar de pobres e restritos a um pedaço de terra, vivendo em precárias condições habitacionais e sobrevivendo basicamente do que eles plantam e pescam, os potyguara, hoje, são um exemplo de resistência, embora os mais velhos sintam dificuldades em transmitir para as novas gerações o que restou da sua cultura e das suas tradições.


Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Curumim potyguara.

Bom! Ao percorrermos uma das aldeias da Baía da Traição, a impressão que tivemos foi a de que estávamos em uma pequena cidade interiorana, porque, de há muito, ninguém mais mora em oca ou taba, mas em casas de alvenaria ou cobertas de palha e piso de terra batida. Além disso, todos andam vestidos. Nada de mostrarem as suas “vergonhas”... Para completar, a televisão está em todos os lugares. Só que tudo isso apenas contribui para reforçar o que os mais velhos de há muito já sentem na própria pele, ou seja, a ausência de uma identidade indígena, que os una ao Presente e os ligue ao Passado, visto que é através da língua que um povo mantém a sua identidade cultural.

Infelizmente, os potyguara não mais falam a sua língua de origem, o tupy-guarany, mas, sim, a língua portuguesa; não cultuam mais os seus deuses, com exceção de Tupã, e passaram a freqüentar rituais religiosos de terceiros – rituais esses, aliás, que nada têm a ver com os dos seus antepassados, como assim queriam os primeiros jesuítas que, aqui, puseram os seus insolentes pés, desrespeitando e desmantelando uma cultura que, até a sua chegada, com terços e exemplares do evangelho, era soberana. Falando em soberania, a Igreja Católica também perdeu a sua, já que diversos outros templos, de demais religiões, são, igualmente, encontrados nas diversas aldeias dos potyguara.

Enfim! Não podemos esquecer a música do branco, invadindo as casas dos índios, expostos ao que há de pior nas rádios e televisões brasileiras. E a coisa é tão grave que, certa hora, chegamos a pensar que estávamos em um pé sujo qualquer, ouvindo lamúrias de bêbados abandonados e apelações sexuais de alguns grupos de forró, para quem, aliás, erotismo é falar de sexo de maneira vulgar, citando trechos da anatomia humana como se fossem bolas de bilhar. Infelizmente, são coisas desse tipo, de tão baixo calão, que os índios têm ouvido, dia após dia, em todo o País, que, inclusive, prejudica não somente a formação de crianças e jovens indígenas, mas, também, a de crianças e jovens negros e brancos.


Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Cunhãs potyguara.

E o que fazem as autoridades ditas competentes para coibir esses abusos? Nada! No entanto, essas mesmas autoridades bem que podiam criar uma lei, estabelecendo critérios e horários para a veiculação dessas músicas, assim como para determinados programas televisivos, poupando, assim, a audição e a visão de todos, de maneira geral. É! Não tem sido fácil para os potyguara, embora esses sejam apenas alguns dos muitos dramas que presenciamos durante a nossa permanência na Baía da Traição. Outro drama, por exemplo, são as queimadas, devastando quilômetros e mais quilômetros de mata, transformando o verde num cenário desolador. E, o que é pior, sem que os responsáveis sejam punidos.

Felizmente, da mesma forma que existem as desgraças da vida, existem as graças. Uma das nossas graças, portanto, foi a satisfação da pajé em nos receber, comermos com ela, nos fundos de sua casa, sentados no chão de terra batida, uma comida feita em um fogareiro e, depois, durante a tarde, nos vermos instalados em agradáveis e confortáveis redes. Sim, a hospitalidade dos potyguara continua sendo a mesma de quinhentos anos atrás, ou seja, exemplar. Mas, vale salientar, só para quem eles acham que a merece. Tanto é verdade que demorou mais de um ano para a pajé autorizar a minha ida à tribo dos potyguara na qual ela vive, de onde saí inteira e, agora, cá estou eu, contando história.

Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Forno da casa de farinha na Baía da Traição.

Por falar nisso, a única carne de quatro patas que comemos, nos dias em que passamos com os potyguara, foi a carne de uma galinha, ou melhor, a de um frango, e com direito à hormônios, visto que o mesmo foi comprado em um supermercado fora da aldeia. E só não digo a marca do produto para não fazer propaganda. Bom! Além do frango, degustamos o feijão e o arroz da pajé, cuscuz, cabeça de peixe com farinha de mandioca, pé-de-moleque e biju. Os dois últimos, além de outras iguarias, foram feitos na casa de farinha, e constaram, também, do menu do nosso réveillon, abrilhantado, diga-se de passagem, com a presença do cacique, que, junto com a pajé, comandou uma representação do Toré – ritual de passagem votado a Tupã.

Com os índios dançando, cantando e tocando maracás, o Toré também pode ser realizado para receber o espírito de uma pessoa querida, ou, ainda, nas comemorações do Dia do índio, no dia 19 de abril, data em que os potyguara, caracterizados, com pinturas no corpo, poucas vestes e adereços, seguem, solenemente, e em silêncio, sem cantar – o único som que se ouve, além do canto dos pássaros, do vento e do estalar de gravetos quebrados pelos pés dos índios, durante a sua caminhada, é o dos instrumentos: zabumba, maracás... –, em direção ao ouricouri, no alto de um monte, próximo à aldeia São Francisco, para a festa propriamente dita, sendo encontradas, no local, duas grandes ocas.

Em uma das ocas, os potyguara recebem os convidados e aproveitam para venderem camisetas e o artesanato que produzem (colares, brincos, anéis, flechas, arcos etc), além de exposições de fotografias, enquanto na outra oca são depositadas e guardadas as comidas preparadas pelas mulheres das aldeias e as bebidas a serem servidas durante a festa. O curioso é que o Dia do índio, criado, em 1943, pelo decreto-lei nº 5.540, assinado pelo então presidente do Brasil Getúlio Vargas (1882 - 1954), passa a idéia, mesmo não sendo essa a intenção, de algo alegórico, uma data folclórica. Não vejo, portanto, sentido algum esse tipo de comemoração, já que, antes disso, “todo dia era dia de índio”, como bem disse a cantora Baby Consuelo.


Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Cacique dos índios potyguara da Baía da Traião, na Paraíba, e a mãe.


Outras datas, inclusive, que – fiquei sabendo – são comemoradas pelos potyguara chamaram a minha atenção e me causou espanto. Ou seja, as festas de santo, tais como a festa de São Miguel, o padroeiro dos potyguara, celebrada, efusivamente, no dia 29 de setembro, e a festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira da aldeia São Francisco, onde mora a pajé, comemorado no dia 12 de outubro, sempre seguidos de novenas. Sem falar que quase todas as aldeias têm o seu santo padroeiro. Que esquisito! Sim, já que religião não é coisa de índio. Bom! Além dessas duas festas, todas as aldeias festejam São João e São Pedro, no mês de junho, Senhora Santana, no mês de julho, e Nascimento, que é o Natal, no mês de dezembro, bem como o Dia de finados...

Por mais incrível que pareça, os potyguara comemoram, sim, o Dia de finados. À oportunidade, aproveitam para visitar o cemitério dos índios, que fica ao lado da igreja da aldeia de São Miguel... Sei não, mas, confesso, acho tudo isso muito estranho. Ao mesmo tempo, até entendo, considerando a forte influência que foi para os potyguara, durante quinhentos anos, a presença católica na região. Mas, rituais à parte, quaisquer que sejam eles, a noite de réveillon que passei no terreiro da pajé foi, no mínimo, curiosa, regada, aliás, com as mesmas bebidas alcoólicas consumidas pelos brancos, culminando com rajadas e mais rajadas de fogos. Um espanto para nós, os convidados, já que explosão de fogos – convenhamos – também é coisa de branco.

Não obstante, mesmo querendo experimentar o cauim, bebida de origem indígena, que eu não conheço, à base de milho e mandioca, antes uma tradição, mas que, de há muito, deixou de ser consumida – vai ver, os potyguara nem sabem mais como prepará-la –, tivemos, diga-se de passagem, um réveillon incomum, ali, no meio do mato, longe da dita civilização, apenas observando. Eu, particularmente, observei tanto que, quando já estava dormindo, acordei sufocada. Para espantar os mosquitos, a pajé detonou quase um tubo de Baygon pelos cômodos da casa, que, detalhe, estava toda fechada. Assustada, com falta de ar, eu perguntei: “Fafá, você quer nos matar? Não tem nenhum incenso, aqui?”. Não tinha. Levantamos e abrimos portas e janelas.

A Respeito de um porto inseguro...

Foto: Lula Marques
Protesto de índio nas comemorações dos 500 anos do
descobrimento do Brasil, em Porto Seguro, na Bahia.

Na maioria dos casos, a historiografia dita oficial do Brasil peca por ser tendenciosa, ocultando, em suas entrelinhas, a verdade de certos fatos históricos. Resultado: a nossa História foi mal contada. E ai de quem conteste! Curiosamente, dizem que, agora, vivemos em uma democracia e que podemos contestar. Será que podemos? Até mesmo porque não foi isso que vimos, em abril de 2000, durante as comemorações oficiais dos quinhentos anos do achamento do Brasil, quando representantes de comunidades indígenas, em Porto Seguro, na Bahia, foram sumariamente reprimidos, apenas porque protestavam contra as comemorações. Afinal, eles, os índios, não tinham nada para comemorar. E com toda razão.

Acontece que todos continuam, ainda, querendo a sua parte do bolo, o que implica em novos sacrifícios. Infelizmente, os sacrificados de hoje são as crianças e os jovens. Os únicos, aliás, que poderiam resgatar a cultura dilacerada de um povo que, há quinhentos anos, não fazem outra coisa a não ser suportar, com dignidade, os sacrifícios que, ao longo dos séculos, lhes foram impostos, e continuam sendo, por todos aqueles que, de 1500 para cá, passam pelo poder, detendo, cada um a seu modo, o controle do gigante, do belo, do forte e do impávido colosso que passaram a chamar de Brasil, dilapidando as suas riquezas e repartindo fatias do bolo com o capital estrangeiro.

Só que, a bem da verdade, o gigante, em 1500, era o povo indígena. Com o seu brado retumbante, o índio habitava as terras garridas, de lindos campos floridos, não fugindo à luta nem mesmo com a chegada dos portugueses. Resistiram. Porém, apesar do tamanho e da força que tinha, o gigante se viu, de uma hora para outra, com as suas pernas e braços atados. Sem perspectivas e, sobretudo, sem grandeza, visto a emboscada na qual tinha caído, ele só viu como alternativa se recolher a sua ini(23) – o seu berço esplêndido, onde, até hoje, sem o som do mar e sem a luz do céu profundo, ele permanece deitado, como queriam os portugueses e como persistem querendo os que se dizem filhos deste solo.

Infelizmente, estes últimos só estão realmente interessados nas riquezas do país, esquecendo que, em cada tribo indígena do Brasil, muitos acreditam, ainda, em um futuro melhor. Mas, não o futuro que os políticos planejam para eles em seus gabinetes, em reuniões de portas fechadas, sem nem mesmo ouvi-los, mas um outro, independente dos rumos da História. De qualquer forma, nunca é tarde para repararmos certos erros, sobretudo num país de crianças e jovens – não importa se indígenas, negras ou brancas –, em nome das quais o Brasil precisa, urgentemente, adquirir uma identidade – coisa que, aliás, ele nunca teve.


Índio em Brasília, no Distrito Federal.

Vai ver, quem sabe, está na hora de termos uma identidade! Só que não é reprimindo as diferenças que conseguiremos isso, mas somando e multiplicando. Por tudo isso e muito mais é que o Brasil só será um país realmente digno de respeito no dia em que uma pajé potiguar – a minha amiga – não mais tiver de passar pelo vexame de ver um dos seus apanhando e sendo arrastado por policiais, colocado às pressas numa ambulância e levado para o hospital – aconteceu em Porto Seguro. Caso contrário, não nos resta que cultivar um único sentimento pelo Brasil, ou melhor, pelos que governam este Brasil, que é o sentimento de vergonha...

Bibliografia consultada

1. SCHWENNHAGEN, Ludwig. Fenícios no Brasil (Antiga história do Brasil de 1.100 a.C. a 1.500 d.C.). In: PACHECO, Cláudia Bernhardt de Souza. História secreta do Brasil – O Millennium e o homem universal. São Paulo: Editora próton, 2000, p. 21.
2. Idem, p. 21.
3. PACHECO, op. cit., p. 8.
4. Idem, p. 108.
5. Ibidem, p. 156.
6. QUADROS, António. Portugal, razão e mistério – O Projeto Áureo ou Império do Espírito Santo. In: PACHECO, op. ci.t, p. 158.
7. PACHECO, op. cit., p. 152.
8. Idem, p. 9.
9. PACHECO, op. cit., p. 19.
10. LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae. Roma, 1956, 2:196. In: DEAN, Warren. A Ferro e fogo - A História e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 76.
11. Segundo o antropólogo José Glebson Vieira, o grupo indígena potyguara está reivindicando o resgate da língua dos seus antepassados, ao mesmo tempo que reivindicam, também, o reconhecimento do seu tronco lingüístico, que é o tupy-guarany. Daí utilizar, neste artigo, a grafia potyguara.
12. CASCUDO, Luís da Câmara. O Povo do Rio Grande do Norte, In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Volumes XXXII a XXXVII. Anos 1935 – 1937. Natal. Tip. Santo Antônio, 1940, páginas 69 e 70.
13. Idem.
14. FERNANDES, Luiz. Estudos Potyguares, História Colonial do Rio Grande do Norte no Século XVI. P. 8 e 9.
15. Idem.
16. Ibidem. P. 6.
17. Ibidem. P. 9.
18. Ibidem. P. 11.
19. SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descriptivo do Brazil em 1587. Typographia Universal de Laemmert, 1851. P. 27.
20. MOONEN, Frans e MAIA, Luciano Mariz. Etonografia dos Índios Potiguaras. Procuradoria da República na Paraíba, Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Paraíba. João Pessoa, 1992. P. 99.
21. Idem.
22. Santos, Tânia Mara dos e Costa, Francisco Xavier Pereira da. GT Indígena e o povo potiguara, p. 115. Disponível em: . Acesso em: 04/04/2007.
23. Rede, na língua tupy-guarany.


Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
ALDEIA QUE TE QUERO ALDEIA


Globais ou não, as trinta e uma aldeias dos potyguara estão distribuídas em 33.757 hectares, pertencentes às Tribos indígenas - TI: TI Potyguara, TI Jacaré de São Domingos e TI Potyguara de Monte-Mór. Segundo os pesquisadores Tânia Mara dos Santos e Francisco Xavier Pereira da Costa, a TI Potyguara, com 21.238 hectares, homologados em 1991, situa-se nos municípios da Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação, na Paraíba, embora a presença indígena na região tenha sido reconhecida, oficialmente, em 1930, passando a ser beneficiada pela política indigenista nacional. A TI Jacaré de São Domingos, em Marcação, por sua vez, teve os seus 5.032 hectares homologados em 1993. No entanto, em 2005, alguns usineiros da região questionaram a decisão judicial e a homologação foi suspensa.

Já a TI Potyguara de Monte-Mór, em Marcação e Rio Tinto, reconhecida apenas no início do séc. XXI, está, ainda, com os seus 7.487 hectares sendo identificados, para, em seguida, serem demarcados e, posteriormente, homologados(i). Segundo dados da III Assembléia Indígena do Povo Potiguara, realizada em 2004, são vinte e sete as aldeias das três Tribos Indígenas: Forte, Galego, Lagoa do Mato, Cumaru, São Francisco, Vila São Miguel, Laranjeira, Santa Rita, Tracoeira, Bento, Silva, Acajutibiró, Jaraguá, Silva de Belém, Jacaré de São Domingos, Jacaré de César, Estiva Velha, Lagoa Grande, Grupiúna, Brejinho, Tramataia, Camurupim, Caieira, Nova Brasília, Vila de Monte-Mór e Três Rios. Ainda segundo os dados da referida Assembléia, “Monte-Mór e Três Rios passaram a ser consideradas como aldeias há pouco tempo”(ii).



i. Santos, Tânia Mara dos e Costa, Francisco Xavier Pereira da. GT Indígena e o povo potiguara, p. 114. Disponível em: . Acesso em: 04/04/2007.
ii. Potyguara, Caboquinho; Sobrinho, José Ciríaco; Rodrigues, Manoel Eufrásio; Silva, Luiz Benedito da. III Assembléia Indígena do Povo Potiguara – Juventude e reconquista. Cimi – Setor de documentação. 2004.





Nathalie Bernardo da Câmara
Registro profissional de jornalista:
578 - DRT/RN, desde 1989