“A cada um a
sua pitada de sal...”.
Luiz Maranhão (1921 – 1974),
advogado, político,
jornalista e educador brasileiro.
Idos de 1995.
Não sabia que,
deixando Paris em pleno verão para aportar em terras lusas, passaria aquelas que seriam umas das
férias mais bem degustadas da minha vida – em vários sentidos. Certa manhã, por exemplo, fui com uma amiga portuguesa, em cuja casa estava hospedada, buscar a sua mãe na ilha de Fuseta, no Algarve – não demorou muito, pegamos a estrada, com Lisboa logo ficando para trás, embora eu já estivesse sido tomada por aquela sensação indescritível de aventura que
sempre me transmite a simples menção do nome viagem...
Horas depois, já
na ilha, localizada no Golfo de Cádiz, caminhávamos na praia, tocando com os
pés, hesitantes, atlânticas gélidas águas, embora, provavelmente, temperadas
com as mediterrânicas, quando a minha amiga sugeriu que deitássemos na areia e
contemplássemos a Via Láctea, estampada, no alto, tipo uma pincelada imprecisa,
assimétrica, apesar de nada aleatória, compondo, magistralmente, uma tela –
noite deveras sui generis, aquela.
Na manhã do dia
seguinte, louca por um café, sai vagando na ilha, onde dizem que “o sol acorda e adormece envolto em tons de fogo”, procurando
por um – café, claro, que findei encontrando, mas que, para o meu espanto, tive,
literalmente, de cuspi-lo, pois era salobro – não tinha água doce na
ilha, água potável –, não hesitando em perguntar ao
rapaz do quiosque onde poderia tomar um café decente e ele disse que só no
continente. Peguei, então, uma barca e sai atrás do pretinho básico.
Pouco depois, numa
espécie de bistrô francês, pedi um expresso e acendi um cigarro, tragando uma
sensação de liberdade peculiar, satisfeita e largada, naquele lugar, com paradeiro ignorado – naquela
época, felizmente, nada de celular. Por garantia, pedi um segundo
expresso – consequentemente, fumei outro cigarro e achei melhor voltar para
ilha, já que, ao sair, todas dormiam – quando acordassem, percebendo a minha
ausência, poderiam ficar preocupadas. E sai, flanando. De repente, esbarrei num
mercado – ambiente pelo qual nutro enorme simpatia.
Numa banca – o
mercado já quase fechando –, resolvi comprar um peixe, tipo cioba, o que mais
gosto, e um bem grande, para tentar agradar a anfitriã, ou seja, a mãe da minha
amiga. Queria fazer no forno, com bastante alho e azeite de oliva, mas não tinha mais. Porém,
para a minha surpresa – talvez para eu não sair com as mãos abanando –, a dona
da banca apontou para uma saca de peixes pequenos ao lado, deixada mais cedo por
um amigo, e propôs que eu a levasse. Sim, toda ela, a saca. E com todos aqueles
peixes.
Não entendi nada,
mas, mesmo assim, agradeci, embora recusando-me a aceitar a oferta, alegando
ser peixe demais para três pessoas, a mãe da minha amiga, a minha amiga e eu, e
que, por serem pequenos, ia dar um trabalho danado tirar as escamas, essas
coisas. Só que, indiferente aos meus argumentos e achando graça na minha
franqueza – quiçá ignorância cultural –, a senhora continuou insistindo e disse
que eu não pagaria nada pela saca de peixes, já que, afinal, segundo ela,
português quando recebe presente passa para a frente.
Desse modo, diante
de tanta generosidade, terminei por aceitar os peixes, mas apenas seis. Dois
para cada, levando, ainda, por sugestão da portuguesa, algumas batatas, tomates
e cebolas, que comprei. Em seguida, levando em conta o adiantado da hora,
apressei-me para pegar a barca, retornando sã, salva e faminta, logo providenciando
uma faca e um jornal velho para tratar os peixes numa muradinha que tinha na
varanda.
De repente, de
maneira inesperada, a mãe da minha amiga chegou perto e parou, olhando
gravemente para a minha “arte”, como se estivesse repreendendo-me, apesar de eu
ignorar o motivo, já que, pelo menos na minha cabeça, eu não estava fazendo
nada demais, apenas preparando o almoço. De qualquer maneira, ela ia e vinha,
ia e vinha... E sempre com o cenho franzido, como se algo inquietasse-a, a
ponto de aquela situação constranger-me, embora por pouco tempo, pois, não
demorou muito, a minha amiga apareceu, rindo de um jeito que eu conhecia bem. Daí
que, apesar do meu alheamento em relação ao que se passava, sabia que, com
certeza, ela ria de algo engraçado e que, no momento certo, eu saberia o motivo
do seu regozijo. Enquanto isso, dei de ombros e continuei tratando os peixes.
Quando terminei, a
minha amiga me chamou num canto e, sem se aguentar de rir, disse que a mãe
estava horrorizada com a minha assepsia, tirando escamas de sardinhas... Ora,
eu nem sabia que eram sardinhas!
E ela continuou
falando, num jeito brincalhão, que lhe era peculiar, explicando que, em Portugal – era para eu aprender –, ninguém fazia
seis sardinhas, nem, muito menos, tirava as escamas. Bem comunista, retruquei,
dizendo que dois peixes – sardinhas ou não –, por pessoa, já eram uma refeição. E ainda
tinham batatas, tomates e cebolas, acrescentando que, no Brasil, a gente
costuma tirar, sim, escamas de peixe. Aí, veio o resto da aula! Eu não estava
no Brasil, mas em Portugal. E em Portugal não se compra apenas seis sardinhas...
― Não comprei – atalhei, rindo junto com ela –, ganhei da mulher do mercado.
Enfim! Em Portugal,
faz-se sardinhada. Bota na brasa com escamas, vísceras e tudo o mais, e pronto,
ainda chamando os vizinhos para compartilhar. Resultado: relevei aqueles
comentários e disse que até podia não estar preparando uma sardinhada
tipicamente lusa, mas que os peixinhos iam para a brasa bem limpinhos, ah, isso
iam. E ainda tinha a salada como acompanhamento, temperada apenas com sal e
azeite de oliva.
Uma hora depois,
aproximadamente, sentamos à mesa, mas apenas nós duas, a minha amiga e eu, para um almoço, no
mínimo, frugal – de longe, a anfitriã limitava-se a nos observar, ainda
criticamente, enquanto a filha, bem-humorada, disse-lhe que eu tinha outra
cultura, que, no Brasil, as pessoas limpam os peixes por hábito... Calada
estava, calada fiquei, mas, não deu dois minutos, a mãe da minha amiga, a
pedido desta, sentou-se à mesa e, mesmo contrariada, comeu os dois peixinhos
reservados à ela, entupindo-se de batatas, tomates e cebolas. E vinho. Bebemos
uma garrafa – sem sal.
Finalmente, quando
terminou, a mãe da minha amiga esboçou um sorriso, a ponto de dizer que tinha sido
a melhor sardinha que já havia comido na vida – ela não falou apenas para tentar minimizar
a desfeita inicial e ser gentil, já que, por mais incrível que pareça, a sua
satisfação era visível, bem como a da minha amiga, que sentia os efeitos da
maresia à mesa. Eu, achando tudo muito agradável – estávamos à beira-mar –, ainda
mais quando, depois de uns goles de vinho, a anfitriã inventou contar piada
de... português... – agora, pense português contando piada de português! Com
sotaque, então!
Pena, contudo, que
não me recordo da piada que ela contou nem que, à ocasião, aproveitando o ensejo, a que contei para elas
– felizmente, pois, sabe-se lá, poderiam, aqui, acusar-me de xenofobia.
Bom! O fato é que,
depois do trivial cafezinho com água mineral e açúcar – nada de sal –, fomos, a minha amiga
e eu, tomar banho de mar, um mar de águas frias e revigorantes. Sim, porque
ainda éramos filhas de Marx e, no dia seguinte, retornaríamos a Lisboa, onde eu
ficaria mais uns dias de férias – férias essas, aliás, que, de tão maravilhosas, passaram a fazer parte da minha história, ficaram registradas em minha mente. Para sempre.
Nathalie Bernardo da Câmara
Até bateu uma saudadezinha!
ResponderExcluirBelas lembranças.
ResponderExcluir