segunda-feira, 3 de novembro de 2014

DE ARRASTÕES E QUENTINHAS



Quase diariamente, na hora do almoço, uma mulher costumava pegar uma quentinha para o marido num bar defronte a sua casa. Ela atravessava a rua, entrava no pequeno estabelecimento comercial e retornava. Certa vez, como de hábito, ao voltar para casa, foi abordada por um jovem, que, ousado, em plena rua, sacou uma arma de fogo e, sem nenhum melindre, a encostou numa das faces da mulher, anunciando o assalto: — Passa a carteira!

— Que carteira, menino? – disse a mulher, surpresa com a abordagem. – Só fui ali pegar uma quentinha. E ainda a deixei na pendura...
— Sem conversa, passa a carteira! – insistiu o incauto mancebo.
— Está me estranhando? – ela questionou, indignada, embora com naturalidade. – Logo você, que mora na rua, vizinho de todo mundo!
— Sem conversa, já disse, passa a carteira!
— Tem carteira não e deixe de ser atrevido. – a mulher continuava impondo-se ao assaltante. – Mas, se quer mesmo me assaltar, leva a quentinha... – ela estendeu a marmita ao moço. – É só o que tenho aqui.
— Quero quentinha não! – o rapaz desdenhou da contraoferta da conhecida - Quero dinheiro! –
— Já disse que eu não tenho dinheiro...

Resmungando algo incompreensível, o vizinho foi embora, provavelmente à procura de outra eventual vítima, enquanto a mulher foi para casa, ela e a quentinha.

Qualquer semelhança com fatos reais não é mera coincidência, pois o episódio realmente aconteceu. E num bairro residencial de um dado município do país classificado de popular pelas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sabendo, contudo, que, pelo ritmo da violência, assaltos desse e de outros tipos estejam acontecendo por toda parte, a 3x4.


Salve-se quem puder!



Foi-se o tempo quando, pelo menos no caso do Brasil, arrastão era um substantivo que, segundo o finado Aurélio (1910 - 1989), significava o “ato de recolher do mar a rede de pesca”. Porém, não é de hoje, arrastão também passou a denominar outro tipo de “pescaria” – a “onda” da vez, infelizmente. Lugar-comum no Brasil, os arrastões tornaram-se conhecidos, salvo engano, no final da década de oitenta e durante a de noventa nas praias mais badaladas do Rio de Janeiro. Em 2013, a “fórmula” foi eficientemente adaptada inicialmente para os shoppings do país, com agrupamentos de jovens que se reuniam e arrastavam tudo o que viam pela frente, ficando essas aglomerações conhecidas como rolezinhos – o primeiro a ganhar repercussão ocorreu na capital paulista, embora pipocassem por toda parte. De lá para cá, os arrastões passaram a ser algo corriqueiro, indiscriminado, aos olhos de todos, descaradamente, deixando a população vulnerável, independentemente de classe social e poder aquisitivo, da localidade e de não importa qual espaço: praias, shoppings, restaurantes, farmácias, demais estabelecimentos comerciais, bancos, caixas eletrônicos, ônibus, pontos de ônibus...

Em Natal, por exemplo, capital do Rio Grande do Norte, já teve até postos de saúde que foram alvos de arrastões – o que dirá os postos de combustíveis! Porém, o mais impressionante é que a maioria dessas unidades públicas de saúde é precária por excelência, carecendo, muitas vezes, inclusive, não somente de médicos, mas, também, de macas, gazes e esparadrapos. Noutra situação, não faz muito tempo, houve uma sequência de arrastões, embora sem repercutir na mídia, em algumas escolas da rede pública de ensino da capital potiguar – detalhe: o material dos roubos, computadores e demais utensílios de uso escolar, foram transportados em... carroças. Ouvi falar, ainda, de um dado centro espírita, localizado num bairro da cidade, que, apesar de sobreviver de parcas doações, possuindo escassos bens, já foi, só este ano... invadido duas vezes – sabe-se lá o que buscavam encontrar em humildes instalações! O fato é que, nesse cenário dantesco, não escapa ninguém, nem, muito menos, autoridades religiosas – em setembro, uma das vítimas dessa violência fora de controle foi o arcebispo do Rio de Janeiro –, e autoridades do sistema judiciário: juízes, promotores e congêneres...

Em 2011, mais um exemplo, uma delegacia de Natal foi audaciosamente palco de um arrastão noturno, com os invasores levando todo um aparato de equipamentos eletrônicos que, diga-se de passagem, continham, entre outros, documentos referentes a investigações criminais e, sem explicações, saindo impunes, livres, leves e soltos. Outro caso, ainda, foi o de um policial militar, que, recentemente, ao sair de uma escola, para onde havia conduzido um grupo de estudantes num ônibus da sua corporação, foi intimidado por homens armados, que o abordaram, saqueando a sua arma e o deixando sem ação. Então... O repertório de situações envolvendo arrastões é longo – enumerá-lo, aqui, daria uma tese sobre os índices de violência, urbana ou rural, contra tudo e todos. E, isso, por todo o país, num aumento considerável da banalização da insegurança da população, consequentemente, da vida. Tanto que, no calor das eleições 2014, a caminho da cabina eleitoral, numa escola de Mossoró, segunda maior cidade do RN, um eleitor foi assassinado em plena fila de votação. Enfim! O drama da violência ocorre sem o menor constrangimento por aqueles que o promove – daí, só apelando para a sorte...


Nathalie Bernardo da Câmara


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