domingo, 25 de outubro de 2009

AS TURRAS COM DEUS

“Sou incapaz de acreditar em Deus...”.

José Saramago



Nobre Saramago, nobre. E é do meu coração igualmente nobre que rendo uma homenagem ao escritor português – sempre tão pontual em tudo o que diz e afirma –, após a constância da sua evidência na mídia, quando do lançamento mundial de Caim, o seu mais novo livro. Livro esse, aliás, que seria lançado mundialmente na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, mas, como fiquei sabendo, o lançamento, no Brasil, teve de ser suspenso devido a imprevistos na agenda do autor.

Em Caim, portanto, Saramago reiventa o Antigo Testamento, diferentemente de O Evangelho segundo Jesus Cristo, publicado em 1991, onde o escritor deu a sua visão crítica do Novo Testamento, desencadeando uma torrente de polêmicas. Porém, como ainda não li Caim, não me atrevo a comentá-lo. Seria uma heresia. Limito-me, então, a transcrever, abaixo, uma entrevista concedida recentemente por Saramago, sempre tão lúcido e sagaz, ao repórter Ubiratan Brasil, da Agência Estado. Voilà!


Nathalie Bernardo da Câmara


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Da doença que quase lhe custou a vida no ano passado, José Saramago exibe poucos resquícios, como uma magreza ligeiramente mais acentuada que a habitual. A língua, porém, continua ferina e, prestes a completar 87 anos (em novembro), o escritor português comemora o lançamento de um novo livro, Caim (Companhia das Letras, 176 páginas, R$ 36, à venda a partir de segunda-feira, 19), disparando críticas a torto e a direito.

Primeiro, contra um desafeto antigo, Deus - se em O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) apresentou sua provocativa visão do Novo Testamento, em Caim, Saramago volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, ao mostrar a jornada do personagem principal, depois de assassinar seu irmão Abel. Em seu trajeto, Caim amaldiçoa o amargo destino reservado por Deus.

Nesta semana, quando esteve em Turim para o lançamento de sua obra anterior, O Caderno (seleção de textos divulgados em seu blog), José Saramago revelou seu desprezo pela crença dos religiosos, em especial os católicos.

Ele chamou o papa Bento XVI de “cínico” e disse que a “insolência reacionária” da Igreja precisa ser combatida com a “insolência da inteligência viva”. “Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas o absoluto cinismo intelectual desta pessoa.”

Na Itália, o escritor aproveitou para novamente criticar o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. “Assim como a eleição de Barack Obama foi um sinal de esperança para o mundo, a sentença da Corte Constitucional contra a imunidade de Berlusconi é um sinal de esperança para o povo italiano, que deve retomar seu caminho”, afirmou o escritor.

Ele se referiu à queda da Laudo Alfano, lei que garantia imunidade penal aos quatro maiores cargos do governo da Itália, inclusive o primeiro-ministro, e que foi derrubada pela Justiça na semana passada. Com isso, Berlusconi voltará a responder pelos processos nos quais é citado.

É possível, portanto, que Saramago continue desferindo seus golpes verbais neste domingo (18/10), em Penafiel, cidade portuguesa que lhe fará homenagem e onde acontece o lançamento oficial de Caim. Sobre essa obra, que foi apresentada à imprensa mundial em Frankfurt, durante a Feira do Livro, Saramago respondeu, por e-mail, às seguintes perguntas.

AGÊNCIA ESTADO - A ideia de Caim surgiu há alguns anos, mas o senhor já disse que que a história só começou a tomar forma em dezembro do ano passado. Por que justamente nessa época?

SARAMAGO - Não perguntamos a uma maçã porque amadureceu naquele momento e não noutro. Neste sentido o escritor é uma maçã, tem uma ideia, desenvolve-a pouco a pouco, até que sente que está pronto para começar a escrever. O que há de mais complicado neste processo passa-se no subconsciente, uma subconsciente que trabalha por conta própria e só depois apresenta os resultados.

AGÊNCIA ESTADO - Em outra entrevista, o senhor disse também que utiliza seus romances como veículo para a reflexão sobre a vida. Em que aspecto a religiosidade é cabível na reflexão proposta por Caim?

SARAMAGO - Caim é um livro escrito contra toda e qualquer religião. Ao longo da História, as religiões, todas elas, sem exceção, fizeram à humanidade mais mal que bem. Todos o sabemos, mas não extraímos daí a conclusão óbvia: acabar com elas. Não será possível, mas ao menos tentemo-lo. Pela análise, pela crítica implacável. A liberdade do ser humano assim o exige.

AGÊNCIA ESTADO - O senhor acredita que o tom antirreligioso de Caim provocará semelhante celeuma como aconteceu com O Evangelho segundo Jesus Cristo? Pergunto isso pois, em A Viagem do elefante, são postas a nu muitas das hipocrisias da Igreja Católica - os católicos já se acostumaram com José Saramago?

SARAMAGO - Não gostaria que se acostumassem, mas espero, se forem sensatos, que não se metam com um livro que não lhes diz respeito.

AGÊNCIA ESTADO - Se O Evangelho segundo Jesus Cristo despertou a ira de parte da comunidade católica mundial quando lançado, o senhor acredita que Caim provocará o mesmo entre os religiosos judeus?

SARAMAGO - É possível. Será necessária uma argumentação muito retorcida para explicar e justificar os atos de barbárie de que a Bíblia está repleta. Em todo o caso, tenho a pele dura. Nada do que possam dizer me surpreenderá.

AGÊNCIA ESTADO - O senhor ainda sente necessidades de ajustar contas com Deus, mesmo acreditando que ele só existe na cabeça das pessoas?

SARAMAGO - Deus não existe fora da cabeça das pessoas que nele creem. Pessoalmente, não tenho nenhuma conta a ajustar com uma entidade que durante a eternidade anterior ao aparecimento do universo nada tinha feito (pelo menos não consta) e que depois decidiu sumir-se não se sabe onde. O cérebro humano é um grande criador de absurdos. Deus é o maior deles.

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