sábado, 24 de outubro de 2009

Do baú...


CRÔNICA DE UMA VIDA ANUNCIADA



Às vezes, penso se viver é realmente uma arte, se requer habilidades específicas, intuição ou, até mesmo, sabedoria; noutras, se requer, simplesmente, maneirismo, traquejo, jogo de cintura, ou, no caso do brasileiro, um certo jeitinho; por fim, se não requer nada, nenhuma aptidão, nada, mas apenas viver, se deixar viver, ou melhor, se deixar levar, ao sabor do vento, no ritmo do tempo, quer sejamos cigarras, quer sejamos formigas.

Não obstante, ociosos como as primeiras, ou laboriosos como as últimas – somos, na verdade – em verdade, somos um pouco de cada –, podemos presenciar, nesse período do ano, mais um despertar das cigarras, cantarolando o seu cio, cumprindo mais um ciclo que se encerra. Saindo dos seus casulos, após sete anos de espera, elas se esbaldam, durante sete horas, nos ares e nas luzes do planalto, por toda parte, dando vazão a um gozo, até então, adormecido.

São sete horas de puro êxtase! Tempo em que os machos emitem sons estrídulos, que fluem dos seus órgãos sexuais durante o coito, após o qual fenecem. Curiosamente, apesar de ser uma celebração à vida, o canto das cigarras nos ensurdece num primeiro momento, embora, aos poucos, nos acostumemos com ele – sintonia ininterrupta que passa a compor o cenário urbano, desafiando os ruídos do trânsito.

Já as formigas... As formigas, nesse período do ano, só pensam em trabalho. São, portanto, minoria. E, como toda minoria, elas quase nunca têm voz, apesar de não serem afônicas. Só que, por não terem voz, quase nunca são ouvidas, nem sentidas. Apuremos, então, a nossa audição, para ouvirmos o canto das cigarras, soberanas, majestosas, macho ou fêmea, alardeando, aos quatro cantos, que o sentido da vida, para elas, é amar.

E as cigarras amam, sim, sem pudor, à céu aberto, protegidas do sol e do calor abrasador sob a copa das árvores – sua alcova, com sombras que são verdadeiros mantos, acalento necessário para o exercício do amor. E, assim, fiéis ao ofício de amar, as cigarras se concentram no seu idílio sazonal, indiferentes e imunes ao bafo quente e seco desse pássaro de concreto que é Brasília, cuspindo labor, rotina e cansaço por todos os lados.

Pois é! As cigarras, que, de tempo, só conhecem o seu próprio ciclo, sete anos debaixo da terra, sete na atmosfera, vivem incólume ao ritmo das formigas. Para elas, as cigarras, o importante é amar, nem que, para isso, tenham de passar sete anos a jejuar. Vai ver, é por isso que as cigarras se entregam ao amor de maneira tão intensa, valorizando a sua importância e a da vida – característica da sua natureza romântica.

Enquanto isso, nós, humanos, apesar de ora laboriosos como as formigas, ora ociosos como as cigarras, costumamos dar mais importância à retidão das primeiras que à amorosidade das últimas. Atados ao dever típico das formigas, esquecemos de amar, à exemplo das cigarras. Formais, desconhecemos o que seja descontração e felicidade. Quiçá, se o nosso ciclo fosse de apenas sete anos, como o das cigarras, daríamos à vida e ao amor a importância que lhes é devida.

Mas não. O labor supera o ócio, superando igualmente a afetividade e a entrega. A vida vira cotidiano e nos perdemos no dia a dia das nossas desilusões; como as formigas, estamos impregnados de retidão, sem o ímpeto das cigarras, sem tesão. Empedernidos, esquecemos de despertar os nossos sentidos adormecidos, esquecemos da maleabilidade dos nossos corpos ao amar, esquecemos dos nossos próprios ruídos e gozos, esquecemos de sonhar.

Assim, sem vermos o tempo passar, cada vez mais nos parecemos com formigas do que com cigarras, esquecendo da necessidade de uma alcova e da proteção de uma manto; ficamos ao relento, a vagar, tragando o bafo quente e seco de certos pássaros. E o que é pior, nem pássaros somos, porque não temos asas nem somos livres. Preferimos a indiferença dos sentidos à sairmos do nosso casulo para a vida, esquecendo que viver é amar – inexorável verdade, sem a qual não somos nada...

Nathalie Bernardo da Câmara

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