(Publicado originalmente no dia 29 de julho de 2012)
“Há enganos que nos deleitam...”.
Marquês de Maricá (1773 - 1848)
Escritor, filósofo e político brasileiro.
Na ilusão de estar indo para a Europa, onde pretendia mudar de vida, um homem africano, natural de Camarões, embarca, clandestinamente, num navio de bandeira maltesa com destino ao Brasil, cuja tripulação, turca, após descobrir o passageiro inesperado, que havia ficado escondido durante oito dias, tempo que durou a sua comida, tortura-o durante três dias. Depois, numa barca feita de madeira presa a galões, improvisada pelo comandante do navio e alguns tripulantes, ele é lançado em alto mar, já na costa brasileira, a doze quilômetros do litoral paranaense, sem água nem comida, apenas com uma lanterna. À deriva por onze horas, o camaronês é resgatado debilitado por uma embarcação chilena, que lhe presta os primeiros socorros e o deixa em segurança no porto de Paranaguá, onde já se encontrava o navio no qual o náufrago atravessou o Atlântico e de onde é encaminhado para receber os devidos cuidados médicos num hospital. Coisa de filme! Só que o episódio aconteceu há cerca de um mês e, na quinta-feira, 26, foi divulgado pela imprensa o andamento das investigações sobre o caso, que teve o camaronês clandestino como protagonista, a tripulação turca do navio de bandeira maltesa como antagonista e o navio em si como o principal cenário, que, aliás, desde então, se encontra atracado no porto. Ocorre que todos, sem exceção, estão impedidos de deixar o país, permanecendo em Paranaguá, até que o caso seja julgado – julgamento esse, inclusive, que ainda pode levar cerca de oito meses para acontecer.
Detalhe: o camaronês tem apreciado tanto o Brasil e a sua hospitalidade que, caso o governo brasileiro não se oponha, ele gostaria de morar no país – não sabe o encantado que aqui não é Genebra...
Falando nisso, o que é feito das águas de Natal?
“É pau, é pedra, é o fim do caminho...”.
Tom Jobim (1927 - 1994)
Compositor, maestro, pianista, violinista, arranjador e cantor brasileiro, em verso de sua autoria.
Como estão as entranhas de Natal? Título de um excelente artigo do jornalista e escritor brasileiro Públio José sobre as águas da cidade potiguar, capital do Rio Grande do Norte, e a qualidade dessas mesmas águas, de há muito poluídas, bem como sobre o meio ambiente que a natureza e a sua privilegiada localização geográfica legaram à região, cuja degradação, aliás, é decorrente, entre outros motivos, de predadores em potencial como, por exemplo, a especulação imobiliária, que, inclusive, não é de hoje, tem impulsionado a Cidade do Sol a crescer verticalmente, literalmente em direção ao chamado astro-rei, recebendo, ainda, de quebra, os agradecimentos do aquecimento global. No artigo, portanto, o jornalista nos levar a refletir sobre esse legado e de como as ações humanas não fizeram que desfigurá-lo.
(...) Natal, linda cidade, brindada com rios, dunas, brisa suave, clima ameno, lugar bom para se viver, imune a cataclismos, terremotos, enchentes... Natal dos poetas (“em cada esquina um jornal” – lembra-se?). Natal do ar mais puro da América Latina. Ah, Natal... Tanto é bela e atraente que está cheia de gringos querendo encher-lhes os espaços com seus investimentos, sonhos, devaneios – e malandragens também. Muita malandragem. Agora, quero chamar sua atenção para um detalhe importante: vamos traçar um paralelo entre a poluição das entranhas de Natal e a poluição das entranhas dos nossos políticos, dos nossos governantes, das pessoas que tiveram nas mãos os recursos e as condições políticas para não permitir a degradação ambiental de Natal e que, lamentavelmente, nada fizeram. Quero, junto com você, estabelecer a seguinte verdade: se o interior da nossa cidade está poluído agora é porque está poluído também o interior delas, as tais “expressões políticas”. Aliás, quero lhe propor uma sentença bem enfática: a poluição já habitava o interior delas muito antes da degradação ambiental atingir Natal em cheio. O mundo mudou bastante nos últimos tempos e os modelos administrativos seguiram as trepidantes mudanças que se processaram nos grandes aglomerados urbanos. E eles, na qualidade de líderes, acordaram para essa nova realidade? Tendo na mão estrutura e recursos para pensar e agir diferente, de ousar em suas ações administrativas, porque não o fizeram? A realidade é que as entranhas de Natal estão apodrecendo – e os políticos não estão nem aí. Suas atenções estão voltadas para ocupação maior de seus espaços individuais, suas idiossincrasias mais evidentes, suas manifestações de insensibilidade mais visíveis. Os lençóis freáticos de Natal, suas nascentes, seus rios e córregos estão morrendo e não se vê, no meio político, nenhuma preocupação ou providência, nenhuma atitude para resolver esta questão. Da natureza não podemos reclamar, não é verdade? Natal é rodeada de dunas que funcionam como verdadeiras esponjas de armazenagem de água. Ao mesmo tempo em que armazenam, servem também de filtros naturais. Coroando toda essa bela engenharia ambiental, uma farta vegetação protege esse verdadeiro tesouro. Entretanto, o meio ambiente de Natal está trilhando um caminho de retorno quase impossível. De todo esse aparato natural o que temos hoje? Águas que chegam ao interior das dunas já poluídas; lençóis freáticos contaminados por coliformes fecais e matéria orgânica em geral; lençóis profundos contaminados por nitrato oriundo da matéria orgânica maturada nas fossas e sumidouros; rios alimentados, a céu aberto, por esgotos infectos, enegrecendo o que a natureza nos entregou, há anos atrás, límpido e puro. Se a água – e todo conjunto natural que lhe cerca, como dunas, rios, córregos, matas, manguezais – é tão importante para a qualidade de vida de nosso povo, porque não criarmos o Plano Diretor de Águas de Natal? Um documento robusto, completo, voltado à cura das entranhas da cidade. Fica a sugestão. A solução seria trilateral: curaria a natureza, melhoraria substancialmente a qualidade de vida do nosso povo – e daria um novo direcionamento às catracas mentais dos nossos políticos. É sonhar demais?
Não, não é sonhar demais. Isto é, penso que não. Só que eu não diria que a natureza local ficaria curada, como num passe de mágica, da noite para o dia, porque, afinal, são mais de 400 anos de agressividade que provocaram o desmantelo no qual hoje se encontra o meio ambiente de Natal. E, convenhamos, não há boa intenção e querer, muito menos vontade política, capazes de mudar tal realidade num curto espaço de tempo. O máximo que se poderia conseguir era minimizar, e ainda assim relativamente, os impactos provocados por toda essa agressividade, ao mesmo tempo fiscalizando e, se necessário, punindo quem se atrevesse a construir, por exemplo, outras tantas edificações, como as que já deformam a paisagem local, sem o rigor do controle de órgãos ambientais, condicionando o licenciamento para tais obras ao cumprimento de um criterioso leque de exigências. Isso sem falar, obviamente, da necessidade urgente de uma reforma radical no saneamento básico, de há muito estrangulado, e que este acompanhe o crescimento acelerado da construção civil de Natal, que, aliás, precisa é de um basta! E não continuar crescendo desenfreadamente – o que pode ser comprovado numa rápida olhadela sobre a cidade, obviamente que do alto, na cabine de um avião, ou, mesmo, andando por suas ruas. Na verdade, como se já não bastassem os especuladores nacionais injetarem altas dosagens de reais na sua topografia, Natal anda mais retalhada do que uma cirurgia de incisões imperfeitas devido à imperícia de um cirurgião qualquer. Detalhe: cirurgia essa paga com euros e dólares. Enfim! O Brasil pode não ser Genebra, mas Natal e demais cidades e até pequenas localidades e lugarejos aparentemente esquecidos do litoral brasileiro têm sido o paraíso de muitos estrangeiros, que, para levarem adiante os seus empreendimentos imobiliários, sobretudo os turísticos, tem as suas licenças autorizadas por autoridades brasileiras, sabe-se lá amparadas por quais critérios, para, conforme a gula, repartirem entre si o bolo cujos andares não param de crescer. E, diga-se de passagem, com direito à cobertura e a banhos, muitos banhos, ou melhor, a lavagens nas águas já poluídas das praias do país, inclusive lavagens de um troço que, diga-se de passagem, custa limpar: o dinheiro...
Nathalie Bernardo da Câmara
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