terça-feira, 21 de abril de 2015

O OLHAR DE LUIZ MARANHÃO SOBRE TIRADENTES

Tiradentes esquartejado (1893) – Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843 -1905)
Óleo sobre tela: 270 x 165 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil.

“Eu resisto, mas não é por coragem, juiz. Eu resisto por amor...”.


Uma das falas atribuídas à personagem do alferes brasileiro Joaquim José da Silva Xavier (1746 - 1792), o Tiradentes, expoente da Inconfidência Mineira (1789), num suposto diálogo que o mártir do movimento de caráter nitidamente republicano teria mantido com um juiz nos momentos que antecederam teriam antecipado o trágico desfecho da sua vida, que foi o de ser enforcado e, na sequência, esquartejado, na peça O Auto de Tiradentes, de autoria de três norte-rio-grandenses: os advogados Danilo Bessa (1940 - 2007), Nathanias Von Sohsten Júnior e Luiz Maranhão (1921 - 1974), que também era jornalista, político e professor – ele gostava do nome –, montada apenas uma única vez, no Teatro Alberto Maranhão, no dia 1º de maio de 1963. 




Natural de Natal, Rio Grande do Norte, Luiz Maranhão foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), não sendo poucos, portanto, os perrengues pelos quais passou ao longo da sua vida. Durante a ditadura militar no Brasil (1964 - 1985), por exemplo, teve cassado os seus direitos políticos, passando a viver na clandestinidade. Preso em 1974, foi torturado e terminou sendo assassinado por agentes do regime ditatorial – o destino dado ao seu corpo permanece, até hoje, uma incógnita. Camarada e amigo pessoal da jornalista, escritora, teatróloga, feminista e política brasileira Heloneida Studart (1932 - 2007), natural de Fortaleza, Ceará, Luiz Maranhão narrou-lhe a peça sobre o alferes brasileiro Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746 - 1792), mas, limitando-se a uma lembrança que tinha da mesma, ou seja: o inconfidente, um dos expoentes do movimento de caráter republicano, que foi a Conjuração Mineira de 1789, dialoga com um juiz pouco antes da sua execução, no Rio de Janeiro, quando seria enforcado e, em seguida, esquartejado, com os membros do seu corpo espalhados por vias que davam acesso a Minas Gerais. E foi a lembrança de Luiz do texto que Heloneida reproduziu na biografia Luiz, o santo ateu, de sua autoria, publicada pela Editora da UFRN - EDUFRN em 2006, embora, pelo que andei pesquisando, existiam, no texto original da peça, mais personagens e, portanto, muitas outras falas, mas ainda não desvencilhei esse caso, que, espero, será mencionado numa breve biografia que escrevi sobre Luiz Maranhão, faltando apenas alguns retoques, que pretendo postar tão logo esteja disponível.




A Peça de Luiz
(como ele contou à amiga Heloneida Studart)


Mesa de madeira de lei. Um exemplar da Bíblia. Um candelabro com duas velas acesas. Um prato com frutas. Atrás da mesa, o juiz, vestido a caráter. Diante dele, Tiradentes, de camisolão e mãos amarradas.


JUIZ: — Sabe por que o chamei aqui?
TIRADENTES: — Não faço ideia.

JUIZ: — Para salvá-lo.
TIRADENTES: — Só Deus poderia me salvar. E ele não quer.

JUIZ: — Não quer?
TIRADENTES: — Deus não é de salvar homens como eu, que anunciam a esperança. Não viu o que aconteceu com o seu próprio filho?

JUIZ: — Está blasfemando.
TIRADENTES: — Não quero blasfemar. Sou crente. O que eu não sou é submisso.

JUIZ: — Olhe, sou um funcionário da Coroa. Estou arriscando-me ao trazê-lo aqui, na minha casa, na calada da noite.
TIRADENTES: — E por que fez isso?

JUIZ: — Porque você tem razão.
TIRADENTES: — Eu?

JUIZ: — Você e todos os inconfidentes.
TIRADENTES: — Quem lhe disse isso?

JUIZ: — Ninguém. Eu disse a mim mesmo. Estou convencido. Quem me convenceu? Eu. Eu com a minha consciência.
TIRADENTES: — Então, também corre riscos.

JUIZ: — Não, não corro risco, alferes, meu pobre louco, porque nunca digo o que não exigem que eu diga. E continuarei jurando que a Coroa está certa, que merece toda a nossa fidelidade e que é preciso manter submissa a colônia e, principalmente, o seu ouro.
TIRADENTES: — Mas, isso é pecado, é um crime contra a verdade!

JUIZ: — A vida é bela e é disso que eu quero que se convença.
TIRADENTES: — Qualquer vida?

JUIZ: — Qualquer vida. – ele pega uma fruta. – Olhe essa maçã... O que ela lhe inspira?
TIRADENTES: — É pequena e feia, mas mostra que Minas Gerais também pode produzir maçãs, assim como produz os diamantes que a Coroa de Portugal nos rouba!

JUIZ: — Não é isso o que eu quero mostra. Veja novamente a maçã. Ela guarda a aurora no seu interior. O cheiro da madrugada e o gosto da vida. Há mulheres que têm essa pele acetinada.
TIRADENTES: — Eu sei.

JUIZ: — E mesmo assim não quer continuar vivo?
TIRADENTES: — Eu também amo a vida, se é o que quer saber.

JUIZ: — Então, siga o meu conselho. Amanhã, durante a sessão no tribunal, negue tudo. Desdiga o que já disse. Faça como os seus companheiros, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto... Caia de joelhos.
TIRADENTES: — Não posso.

JUIZ: — Não pode?
TIRADENTES: — Os homens quando caem de joelhos não se levantam mais.

JUIZ: — Isso são palavras, é loucura! É mais fácil negar tudo e pedir clemência.
TIRADENTES: — Só que eu acredito na liberdade, na independência, na República...

JUIZ: — Alferes, eu também acredito. Os meus sonhos me disseram que tudo isso é justo. Quando durmo, alguém dentro de mim me garante que os inconfidentes estão certos. E nem por isso vou confirmar essa loucura. É preciso ser realista, alferes. É preciso viver! É isso o que eu lhe peço: vida!
TIRADENTES: — A qualquer preço?

JUIZ: — A qualquer preço. Afinal, você está a caminho da morte.
TIRADENTES: — Todos nós estamos.

JUIZ: — Se, amanhã, diante do tribunal,não renegar a tudo, não poderei salvá-lo. Será condenado à forca. Primeiro, irá vestir um camisolão branco...
TIRADENTES: — Eu já estou de camisolão branco.

JUIZ: — É verdade, eu não tinha reparado. Não tinham o direito de lhe enfiar essa veste antes da condenação. Por que o vestiram desse jeito, antes da sentença?
TIRADENTES: — Porque eu já estou condenado.

JUIZ: — Mas, quem o fez?
TIRADENTES: — Um negro, que trabalha na prisão. Ele tem o rosto todo marcado, porque, durante muito tempo, por castigo, usou uma máscara de flandres. Ele havia bebido e disse para mim: “É melhor vestir isso. Você já está condenado, mesmo...”.

JUIZ: — Mas, ainda não houve a última sessão do tribunal! Olhe, estou aqui como seu amigo, não como juiz.
TIRADENTES: — Ah...

JUIZ: — Se fizer o que lhe peço, se renegar tudo, o máximo que pode lhe acontecer é ser degradado para a África.
TIRADENTES: — Eu não conheço a África, mas o negro tem razão, juiz. Os meus companheiros podem se salvar, mas, eu não, já estou condenado.

JUIZ: — Você não tem imaginação, mesmo! Não sabe o que um homem condenado à morte pode sofrer.
TIRADENTES: — Arranco os dentes das pessoas, juiz. O homem pode sofrer muito mais do que gozar. Por que isso? Nunca entendi essa má distribuição...

JUIZ: — Um homem pode sofrer infinitamente. Está preparado para a dor?
TIRADENTES: —Ninguém está.

JUIZ: — Alferes, ainda há tempo... Eu lhe peço!
TIRADENTES: — Não se aflija.

JUIZ: — por que me condena a condená-lo?
TIRADENTES: —Eu?

JUIZ: — Não é só da sua vida que você dispõe. É também da minha!
TIRADENTES: — Da sua vida?

JUIZ: — Com o seu comportamento, eu também sentirei a dor da condenação. Você estará morto, com o corpo esquartejado e os pedaços espalhados por toda parte, e eu estarei sabendo que condenei um homem inocente.
TIRADENTES: — Peça uma bacia e lave as suas mãos.

JUIZ: — Pare com isso! Salve-se, Alferes. São apenas poucas palavras. Ninguém se lembrará delas depois... Renuncie as suas ideias, peça perdão à Coroa.
TIRADENTES: — Mas, eu quero afirmar que acredito na liberdade.

JUIZ: — Amarrarão os seus braços, pendurarão um baraço no seu pescoço, será levado pelas ruas da cidade como opróbio... E quando subir ao patíbulo...
TIRADENTES: — Não estou muito enfraquecido. As minhas pernas não vacilarão.

JUIZ: — Alferes, vão salgar a sua casa e desonrar a sua família!
TIRADENTES: — Eles não têm poder de desonrar ninguém.

JUIZ: — Alferes, renegue tudo! Ainda é tempo. O episódio encolherá, será reduzido as suas devidas proporções. Um bando de tolos, meio poetas, meio infantis, quis imitar a Revolução Francesa... Falta do que fazer e Villa Rica... Primeiro, Sua Majestade se indignou, depois, em sua magnanimidade, não quis o sangue de ninguém... Um degredo, na África, para alguns; calabouço para outros... Tudo logo será esquecido, alferes!
TIRADENTES: —Não quero esquecer as minhas ideias, juiz.

JUIZ: —Então, você resiste e escolhe a morte.
TIRADENTES: —Eu resisto, mas não é por coragem, juiz. Eu resisto por amor...





Nenhum comentário:

Postar um comentário

Aceita-se comentários...