QUE SEJA FEITA A VONTADE DE DEUS?
PARTE II
“A Igreja é uma instituição fúnebre
que brutaliza o mundo para melhor controlá-lo...”.
Giordano Bruno (1548 - 1600)
Filósofo e dominicano italiano
Quando, em 2000, o ano dito sagrado da Igreja católica, o papa João Paulo II (1920 - 2005) achou por bem pedir perdão por tudo de nocivo que a instituição engendrou em seus dois mil anos de História, em nenhum momento ficou claro a quais fatos, especificamente, ele se referia. E nem adiantou demais autoridades católicas tentarem convencer a opinião pública mundial de que, no gesto inédito de perdão, estavam subtendidas, por exemplo, as barbáries cometidas pelas Cruzadas e pelas Inquisições, em suas diversas fases, as quais, diga-se de passagem, de santas não tinham nada. E isso sem falar nos inúmeros outros crimes e aberrações cometidos por representantes da Igreja, homens de carne e osso, mas sem coração, em nome de um suposto Deus.
Resumindo... A impressão que passou, da parte de João Paulo II, foi a de um pedido de perdão para lá de genérico e, provavelmente, sem muita esperança de que o mesmo fosse concedido. Sim, porque – imagino – ele não era ingênuo nem idiota a ponto de acreditar que o mundo perdoaria as atrocidades cometidas pela Igreja católica ao longo, como ele mesmo disse, dos seus dois mil anos de História, mesmo que esse mesmo mundo estivesse debilitado, sofrendo de Mal de Alzheimer, com lapsos de memória – o que não foi nem é o caso. Além do mais, como costumo dizer, há coisas na vida para as quais não tem perdão. Nesse caso, o mundo não perdoou. Bom! O fato é que a imprensa mundial continuou acusando e cobrando – continua até hoje.
À época, o então bispo italiano da cidade de Como, dom Sandro Maggiolini – elevado à condição de bispo emérito e morto em 2008 –, preocupou-se com a repercussão que causaria no mundo o gesto de João Paulo II. Para ele, um pedido de perdão requer prudência, “senão acaba-se por dar a impressão de que, ao converter-se ao catolicismo, entra-se numa gang de malfeitores e não na comunhão dos santos”. Santos? Fico com a gang. O teólogo alemão Hans Küng parece que também, porque foi ousado ao diagnosticar que “o Vaticano tem urgente necessidade de um Gorbachev que introduza glasnost e perestroika no petrificado sistema vaticano. Fica a esperança – disse – de encontrar um entre os cardeais”. Sei não, mas, como dizem que a esperança é a última que morre...
Em Porto Seguro, no Brasil, pouco depois da peça que intitulei de O Dia do perdão, protagonizada por João Paulo II, cuja trilha sonora poderia ter sido Requiem, última composição do austríaco Mozart (1756 - 1791), considerada um pedido de perdão, um índio pataxó, presente a uma missa celebrada pelo cardeal italiano Angelo Sodano, quando das comemorações do quinto centenário do achamento da Terra dos Papagaios, irritou-se com a fala do religioso, que reproduziu a mensagem do Papa, e interrompeu a liturgia, acusando os colonizadores de terem “destruído a cultura dos povos indígenas, estuprado suas mulheres, invadido e devastado suas terras a qualquer custo”. Aplaudido pelos presentes, inclusive bispos, solidários à causa indígena, o pataxó foi taxativo:
“Não perdôo, não perdôo esse massacre”.
Incontestavelmente, o índio agiu corretamente, não perdoando os algozes dos pataxós e dos demais povos indígenas. Afinal, o perdão é um valor cristão, não sendo, portanto, obrigatoriamente extensivo à quem não reza na cartilha dos ditos valores cristãos – herança, aliás, que mais parece um fardo, ofuscando quem os herdou. Além do mais, só sendo ou estando mentalmente perturbado para perdoar quem comete assassinatos, carnificinas, genocídios ou qualquer outro tipo de crime que viole os direitos humanos, sobretudo o direito à vida. Quanto ao pedido de perdão solicitado por João Paulo II... Não é porque ele era um idoso, quando formulou o tal pedido, que o mundo deveria satisfazê-lo. Mesmo porque é mais fácil acreditar nos contos da Carochinha do que nas supostas boas intenções de um papa.
Não é a toa que Saramago – homem e escritor de opiniões muito bem formadas – entende a história do papado como “algo de terrível, de simplesmente tenebroso”. E ele prossegue: “Não me tiram nem sequer um grama ou um átomo da minha raiva contra a instituição chamada Igreja católica” – sentimento esse, aliás, que é elevado ao cubo quando se trata de Bento XVI. E Saramago questiona, por exemplo, como é que o atual papa tem “a coragem de invocar Deus para reforçar o seu neomedievalismo universal”, sobretudo “um Deus que ele jamais viu e com quem nunca se sentou para tomar um café”. Para o escritor, o fato apenas evidencia ainda mais “o seu absoluto cinismo intelectual”. Enfim! Parece que a História da humanidade, pelo menos na ótica da Igreja católica, quando é conveniente, resume-se ao que narra a Bíblia.
É um obscurantismo tão arraigado que lembro só ter visto algo igual no desequilibrado monge Jorge de Burgos, personagem de O Nome da rosa, romance do escritor italiano Umberto Eco. Guardião da biblioteca de um mosteiro beneditino cravado nos Alpes italianos em pleno séc. XIV, Jorge de Burgos não media esforços para evitar o acesso de outrem ao livro Poética, do filósofo grego Aristóteles (384 - 322 a. C.). E o seu empenho era tamanho que, bastava ele achar necessário, nem a cegueira o impedia de matar. Isso porque, no romance de Eco, mesmo que ficcionalmente, está contemplada, na íntegra, a parte dedicada ao riso. Obviamente que eu não estou comparando a Bíblia com a Poética. Nem poderia! Afinal, simbolizando o cárcere, os textos bíblicos negam o riso.
Assim, diferentemente dos originais do elogio ao riso, de Aristóteles, que simbolizavam a liberdade e que, por isso, são notoriamente dados como desaparecidos até hoje – nem preciso dizer quem lhes deu sumiço – a Bíblia, inquestionavelmente, é um livro de lamentações, de tragédias. A analogia, portanto – dou-me esse direito – dar-se entre a postura da Igreja católica em relação a Caim, de Saramago, e a postura de Jorge de Burgos em relação à Poética, de Aristóteles. Daí que costumo dizer que sorte a nossa não mais vivermos na Idade Média! O grave, contudo, é que, na linguagem religiosa do bibliotecário Jorge de Burgos, bem como na da Igreja católica, o riso deve ser combatido, quando não extirpado, pois liberta o indivíduo do medo. De Deus e do Diabo.
Por isso que, em determinados períodos históricos, a tirania foi exercida por essa mesma igreja, imputando o medo aos fiéis, quando não o temor, as duas supostas entidades que, afinal – Saramago não me deixa mentir –, só existem na cabeça dos homens. De qualquer modo, é a ignorância que gera o tirano, favorecendo as mais bárbaras das ações. Como não temer, então, essas duas entidades, uma representando o bem e a outra o mal, consideradas, ainda, oniscientes, onipresentes e onipotentes? Realmente, quem criou essa tríade – que sabe tudo; que está ao mesmo tempo em toda parte; que pode tudo – tinha uma imaginação muito fértil, sem falar no delírio que foi a invenção de Deus e do Diabo.
Assim, considerando que, no ensaio Entre o sagrado e o profano: o interdito ao riso, o historiador brasileiro Antônio Ozaí da Silva propôs uma reflexão crítica sobre o riso, é imperativo e mais do que urgente pensar que, “se não agirmos positivamente, os fundamentalistas de todos os credos e ideologias, no oriente e/ou no ocidente, imporão o seu fanatismo e a intolerância. Voltaremos, então, à Idade Média, de onde alguns parecem nunca terem saído ao reencarnarem os espíritos medievais”. A referida reflexão, contudo, proposta pelo historiador, foi motivada por protestos suscitados em alguns recônditos do mundo devido à publicação, em 2006, no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, de charges do profeta Muhammad (cerca de 570 – 632 d. C.), nascido em Meca e fundador da religião mulçumana.
O France Soir, por sua vez, que reproduziu as charges, estampou a frase: Sim, nós temos o direito de caricaturar Deus. Concordo. Sem falar que, uma simples frase como essa faz-nos retomar a discussão sobre o direito à liberdade de expressão, “mesmo que isso signifique contrariar uma comunidade religiosa”, disse, à época, um editorial do jornal Folha de São Paulo, que também reproduziu as charges – episódio, aliás, que me faz retornar a Saramago... Alvo de uma avalanche de críticas por ter, em Caim (2009), reescrito, de maneira irreverente, irônica e mordaz, passagens do Gênesis, primeiro livro do Antigo Testamento, Saramago contrariou a Igreja católica, já que, em seu romance, quando não está culpando Deus pelas desgraças da humanidade está questionando a sua existência.
Natural. Afinal, como disse o jornalista e escritor espanhol Juan Arias, o deus de Saramago é o homem, apenas o homem. É como diz um provérbio francês: Des goûts et des couleurs, il ne faut pas discuter. Eu, particularmente, gosto de Saramago, que, por sua vez, considera o Antigo Testamento “uma enxurrada de absurdos”. Agora, quanto ao perdão... Em um dos posts do seu blog, O Caderno de Saramago, ao mencionar o pedido de perdão da Igreja anglicana a Charles Darwin (1809 - 1882), quando das comemorações dos duzentos anos do nascimento do naturalista britânico, o escritor português praticamente sugere que Bento XVI peça perdão a Giordano Bruno, “cristãmente torturado, com muita caridade, até à própria fogueira onde foi queimado”...
Nathalie Bernardo da Câmara