domingo, 16 de maio de 2010

QUE SEJA FEITA A VONTADE DE DEUS?

PARTE I


ALHOS E BUGALHOS




“O Deus bíblico não é de confiança
e a Bíblia é um rosário de incongruências...”.

José Saramago
Escritor português


Confesso que não entendo o tsunami de críticas ácidas ao livro Caim, de Saramago, lançado em outubro de 2009. E não entendo pelo simples fato de que, em sua maioria, tais críticas têm sido feitas por católicos que, aliás, nem sequer leram o livro. Daí, a meu ver, serem críticas inconsistentes, já que são baseadas apenas no fato de o escritor, nas palavras de dom Eurico Dias Nogueira, ex-arcebispo de Braga, em Portugal, ser “ateu confesso e comunista impenitente”, bem como nas opiniões pessoais que ele emite sobre não importa qual tema, mas, sobretudo, os que concernem à política e à religião, nas mais diversas entrevistas que concede, normalmente já provocando o maior estardalhaço, preconceito e discriminação.

Para Saramago, levando em consideração o desrespeito das pessoas, sem falar no alto grau de intolerância, principalmente a dos católicos, em relação a opiniões contrárias as suas, esse tipo de postura, apesar de injusta, é compreensível, já que, para ele, nem os católicos leem a Bíblia. Afinal, segundo o escritor, os textos bíblicos são mal escritos, sendo, para a maioria, um enigma, salvo se houver ao lado um teólogo para decifrá-lo. Daí que, em sua lucidez peculiar, Saramago até entende certos arroubos de ignorância de quem repudia alguns dos seus livros ou mesmo o conjunto da sua obra, mas questiona de qual moral os autores de tais arroubos se revestem para julgar os escritos de outrem, criticando-o negativamente.

Porém, diferentemente da Bíblia, Caim não exige do leitor nenhuma muleta para ser compreendido. A narrativa é fluída, a linguagem clara, direta, sem artimanhas, embora o que incomoda Saramago é o seu livro, que reconstrói passagens do Antigo Testamento, ser visto não como um trabalho literário, mas um caso político-religioso. Além disso, ele espera que a contestação religiosa votada a Caim, um ousado e bem elaborado libelo contra Deus – grafado sempre em caixa baixa no livro –, não se transforme “em insulto ao autor”, visto que o direito à liberdade de opinião e expressão o ampara. Um dos motivos, inclusive, que encorajou Saramago a escrever Caim. Afinal, segundo ele, “já não há fogueiras da Inquisição”.

O curioso é que, apesar de protegido por lei e privilegiado por viver em um período histórico que se supõe de amplas liberdades democráticas, já que ainda existem sociedades dominadas por governantes tiranos e guerras fomentadas por mentes insanas, Saramago também tem sido alvo da ira e da intolerância do político português nascido em Angola Mário David, deputado ao Parlamento Europeu e vice-presidente do Partido Popular Europeu, que, em seu site na internet, alegando vergonha de ter o escritor como “compatriota”, exorta-o, absurdamente, à renúncia da cidadania portuguesa, além de questioná-lo se ele se julga imune a reações contrárias as suas “imbecilidades e impropérios”.

Não satisfeito, o eurodeputado prossegue: “Se a outorga do Prêmio Nobel deslumbrou-o [Saramago], não lhe confere a autoridade para vilipendiar povos e confissões religiosas, valores que, certamente, desconhece, mas que definem as pessoas de bom caráter”. Quanta arrogância! Só que, a meu ver, imagino que o parlamentar disse isso com o único intuito de atrair os holofotes para si, já que, por suas opiniões retrógradas e tacanhas, não deve receber com freqüência – se é que há alguma – atenção ao seu mandato. E ele também não tem autoridade para criticar o livro de Saramago, já que nem sequer o leu: “Não li nem vou ler. Ou é obrigatório?”, ironizou, possivelmente com inveja da mente brilhante do escritor.

Um ignóbil cidadão esse Mário David. Já o nobre Nobel, ao contrário das declarações levianas do parlamentar, não se deixa deslumbrar por honrarias. Afinal, além do radicalismo da sua ideologia, como ele costuma dizer, ou seja, de agarrar as coisas pela raiz, que “para o homem é o próprio homem”, como já dizia o filósofo e economista alemão Karl Marx (1818 - 1883), da sua coerência e sensatez, o que importa, para Saramago, são os seus leitores. Nada mais. A portuguesa Edite Estrela, por sua vez, eurodeputada pelo Partido Socialista, indignada com a declaração de Mário David, disse, em plenário, que o parlamentar “mostrou a sua intolerância e atitude inquisitorial” ao exigir que Saramago renunciasse à nacionalidade portuguesa.

Denunciou, assim, Mário David, esclarecendo qual dos dois atacou a liberdade de expressão. Em outro momento, na Sociedade Independente de Comunicação de Portugal, ao debater com o padre e teólogo Joaquim Carreira das Neves, o maior estudioso português da Bíblia, Saramago esclareceu que nunca pensou em renunciar à cidadania portuguesa. À oportunidade, aproveitou, ainda, para propor a inclusão de dois novos direitos à Declaração Universal dos Direitos Humanos: o direito à dissidência e à heresia, embora ambos os direitos propostos pelo escritor já estejam contemplados nos artigos XVIII e XIX do referido documento, os que se referem as liberdades fundamentais.

Quanto à insólita rapidez de representantes da Igreja católica nas críticas a Caim, a imprensa quis saber a opinião de Saramago a respeito. Sem rodeios, como é do seu feitio, o escritor disse: “O que me surpreende é a frivolidade dos senhores da Igreja”, que, segundo ele, derramaram-se “em opiniões e desqualificações, tanto da obra como do seu autor. Como falta de seriedade intelectual, não se poderia esperar pior. Compreendo que tenham de ganhar o seu pão, mas não é necessário rebaixarem-se a este ponto” – opinião que, com certeza, cai como a uma luva para uma declaração de Carreira Neves, que, apesar de fã da literatura de Saramago, considera-o um “gato fedorento a brincar com a Bíblia”.

Porém, mantendo-se firme em suas posições, o escritor não hesitou em dizer que quem lê a Bíblia, “um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”, perde a fé, ressaltando que, sem o livro considerado sagrado, “seríamos outras pessoas, provavelmente melhores”. E afirma: “Não percebo como é que a Bíblia se tornou um guia espiritual”. Para ele, o leitor, lendo os textos bíblicos, encontra-se “com o desastre, digamos, do alargamento da influência do cristianismo”, que promoveu crueldades e carnificinas: “É uma verdade inquestionável”, que “custou cidades destruídas, milhares de pessoas degoladas, queimadas... As Cruzadas foram qualquer coisa que a Igreja [católica] devia pedir perdão!”.


Nathalie Bernardo da Câmara

Um comentário:

  1. Compartilho da opinião de Saramago, de que sem a bíblia “seríamos outras pessoas, provavelmente melhores”.
    Não tenho o costume de dizer a todos que sou ateu, mas passei por uma situação complicada esses dias, o qual sem querer acabei falando que era. As duas pessoas com quem estava conversando me olharam com ar de espanto e ao mesmo tempo repúdio, como se eu fosse alguém sem moral. Isso me serviu de inspiração, o qual vou colocar em meu blog. Acesse em breve e veja o texto completo.

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