terça-feira, 28 de setembro de 2010

O SENHOR DAS ÁGUAS


“Enquanto o poço não seca não sabemos dar valor à água...”.

Thomas Fuller (1608 - 1661)
Historiador britânico
 
As voltas com Um general na biblioteca, do escritor italiano Italo Calvino (1923 - 1985), me deparo com uma pérola de raccontini, que é O Chamado da água, escrito em 1976, no qual o autor reflete sobre a água encanada, que bem pode ser considerada uma das grandes conquistas da civilização humana. Assim, lendo o continho, parece até que Calvino já antevia um dos grandes problemas que, junto com o aquecimento global, tem ameaçado a sobrevivência da Terra – problemas esse, aliás, que, se por um lado, anda tirando o sono de muito ambientalista; por outro é ignorado a 3x4 por uma grande parcela da população mundial, que, para obter água, basta, simplesmente, abrir uma torneira, embora, na maioria das vezes, não haja controle do seu consumo, advindo daí o desperdício. Sem falar na contaminação dos rios, dos lagos e dos lençóis freáticos pelo próprio homem.

Ao mesmo tempo, outra grande parcela dessa mesma população vê-se privada dos benefícios da tecnologia e da generosidade do tempo, que, através da chuva, por exemplo – potencialmente fonte de água para o consumo humano diário, contemplando as suas mais diversas necessidades –, poderia dispor nem que fosse de uma gota desse líquido que, segundo o pintor e cientista italiano Leonardo da Vinci (1452 - 1519), que, inclusive, é responsável por inventos hidráulicos, “é o veículo da natureza”. Um paradoxo! Daí que, em seu O Chamado da água, Calvino nos lega uma poética, sensível e bela reflexão sobre esse veículo da natureza, cuja fórmula química é conhecida por H2O. Assim, em mais um dos seus breves contos, que tem como uma das suas características a economia de recursos, o escritor nada mais faz do que render uma homenagem aos recursos hídricos: a gota da vida...

Como foi dito no post anterior, Parábola da incomunicabilidade, os raccontini de Um general na biblioteca foram selecionados e organizados postumamente pela tradutora argentina Esther Calvino, viúva do jornalista, contista, romancista e ensaísta italiano, enquanto a tradução desta edição para o português é assinada pela brasileira Rosa Freire d’Aguiar, sendo publicada pela editora Companhia de Bolso em 2010, embora a sua comercialização – continuo insistindo que não entendi o motivo – seja proibida em Portugal... Aproveito, portanto, o ensejo para transcrever quatro passagens do continho O Chamado da água, que, a bem da verdade, não é que momentos de inspiração, poesia e sensibilidade do autor, se constituindo, igualmente, considerando a sua porção visionária e como sentenciou o brasileiro Rinaldo Gama, mestre em Comunicação e Semiótica, em uma profecia.


Nathalie Bernardo da Câmara




O Chamado da água

 
          ESTICO O BRAÇO PARA O CHUVEIRO, ponho a mão na torneira, mexo-a lentamente, fazendo-a girar para a esquerda.
          Acabo de acordar, ainda sinto os olhos cheios de sono, mas estou perfeitamente consciente de que o gesto que faço para inaugurar meu dia é um ato decisivo e solene, que me põe em contato ao mesmo tempo com a cultura e a natureza, com milênios de civilização humana e com o trabalho das eras geológicas que moldaram o planeta.


(...) Nada me garante que o mundo ainda tenha água e não haja se tornado um planeta seco e poeirento como os outros corpos celestes mais próximos, ou que pelo menos exista água suficiente para que eu possa recebê-la aqui, no vão de minhas mãos, longe como estou de qualquer represa e nascente, no coração desta fortaleza de cimento e asfalto.


          Vem-me o pensamento de que a abundância em que nadei até hoje é precária e ilusória, de que a água poderia voltar a ser um bem raro, transportado com esforço, eis o carregador de água com seu barrilzinho a tiracolo, dirigindo seu apelo as janelas para que os sedentos desçam e comprem um copo de sua preciosa mercadoria.


          Aqui estou, pois, pronto para receber a água, não como algo que me seja naturalmente devido, mas como um encontro amoroso, cuja liberdade e cuja felicidade são proporcionais aos obstáculos que ela teve de superar. (...) A água jorra, obedecendo, célere, ao meu chamado.




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