quinta-feira, 2 de junho de 2016

SOBRE PERDÃO E TOLERÂNCIA: CARTA A UMA AMIGA

Bom dia! Não quis ser áspera, mas estava esgotada, cansada demais, às quatro da madrugada, já falando coisas que não passariam no meu crivo antes de dizer, pois sei que você ainda não tem respostas para certas perguntas.

Então... O perdão. Perdão é um sentimento exclusivamente cristão. O vocábulo é cristão. Como não sou cristã, não costumo senti-lo. E esse meu entendimento remonta à infância. Tive a oportunidade de presenciar certas coisas e a de ter o discernimento necessário para tal entendimento já tão cedo, fazendo cair as máscaras – na verdade, algo corriqueiro na vida de todo mundo, mas nem todos percebem. Pois, o perdão pode viciar as relações. Uma criatura chega, faz uma merda e já pensa: “Fulaninho (a) vai me perdoar.” Ora, se teve a capacidade de prever o desenrolar dos fatos, deveria saber que o que cometerá será, em tese, algo imperdoável. Só que quem faz uma, faz duas, três... E, aí, rola um rosário de perdões. Um atrás do outro, numa hipocrisia sem fim. E camuflagem de emoções, sentimentos. Sofrimentos. Na maioria dos casos, chega a ser leviano alguém pedir perdão para outrem. Sim, as pessoas deveriam era tomar vergonha na cara e não fazer as besteiras que fazem, acreditando na redenção. Fez e pronto. Assumam as consequências, não já prever que serão perdoadas, esperar por perdão. Tudo premeditado.

E a tolerância anda no mesmo caminho do perdão, numa apologia sem fim à hipocrisia – a palavra, em si, já é feia. “Tolerância”... Isso é chegar ao limite de alguma coisa, quando, na verdade, o correto seria usar o vocábulo compreensão, acrescentando respeito. Sim, compreensão e respeito ao diferente de nós, não tolerância. E mesmo a compreensão e o respeito têm limite. Que as pessoas fossem sinceras e dissessem: “Não suporto!”. “Não quero isso para mim!”. E, aí, que se afastassem do objeto da sua náusea. Sim, porque, afinal, ninguém é obrigado a suportar certas coisas que vão de encontro ao que quer que acredite. Sim, sei que a gente vive em sociedade, somos um coletivo, mas, nem por isso, somos obrigados a ser conivente com a hipocrisia que outrem quer nos impor, conivente com a mediocridade.

Uma cena do filme ‘Pagu’, de Norma Bengell, que retrata momentos da vida da maravilhosa Patrícia Galvão, revolucionária comunista e intelectual de estirpe, que muito admiro, nunca sai do meu pensamento. Foi real, a situação, aliás, muito bem narrada no filme. A cena é o seguinte: numa das vezes em que foi presa, Pagu, que foi casada com Oswald de Andrade, é encarcerada num dado presídio de São Paulo. Isso durante a revolta comunista de 35, quando, mais uma vez, presa e torturada, ela recusou-se a cumprimentar o interventor federal Adhemar de Barros, um crápula, mais bandido não podia, numa “visita” que o meliante fez ao presídio onde a jovem estava enquadrada por “subversão”, ou seja, alguém que só quer liberdade.

Então... Enfileiradas, as presas, por ORDEM do responsável pelo presídio, teriam de cumprimentar o interventor, passando para sabe-se lá qual revista. Quase todas as mulheres, temerosas, estenderam a mão para o interventor, com exceção de Pagu, que, ciente do seu bom senso, se recusou ao gesto agressivo. Ou seja, ela não era obrigada a apertar a mão do cara que a colocou naquela situação. É demais, isso! Só que, resultado: por sua lucidez, acrescentaram mais cinco anos e seis meses a sua “pena”. Só tem covarde!

Muito louco, isso. Sim, porque quem tem argumento não recorre à violência, à opressão etc etc etc.

Será que respondi a duas das suas perguntas?

Nathalie



2 comentários:

  1. Belíssimo texto! O perdão cai como uma chuva suave do céu na terra. É duas vezes bendito: bendito ao que dá e bendito ao que recebe.
    (Shakespeare)

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  2. Leia a autobiografia de Pagu. O livro se chama Paixão Pagu. Você vai ver lá que ela conta que foi obrigada pelo partido a seduzir Ademar de Barros, para conseguir um passaporte para um membro do partido a quem ela só se refere como CM11. Sentiu nojo de si mesma, mas fez o que mandaram. E depois disso nunca mais se falaram, só "se apertavam as mãos", quando se encontravam. Ela conta muita coisa da prisão, mas não fala de visita de Ademar à prisão. Aparentemente, Norma Bengell inventou essa passagem para o filme. É mera ficção.

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