quarta-feira, 20 de maio de 2015

Agrotóxicos e transgênicos: a difícil arte de tentar negar o óbvio



20 Maio 2015

Está em curso um debate que poderia ser chamado de "o último grito de desespero". Importantes "cientistas" da linha de frente de defesa do agronegócio jogaram a toalha e desistiram de tentar defender os agrotóxicos. Mas continuam se agarrando à sua última tábua de salvação: os transgênicos. Para isso, vem tentando agora desvincular agrotóxicos e transgênicos, numa tentativa desesperada de justificar o injustificável. Abusam de argumentos de autoridade, duplicam a área plantada do Brasil, reduzem pela metade a área de transgênicos e quadruplicam a produtividade da agricultura brasileira. Quando falta o argumento, sobra a criatividade.

O artigo a seguir, publicado no Brasil de Fato, sintetiza o debate:

12/05/2015

Por Leonardo Melgarejo, Rubens Nodari, Paulo Kkageyama, José Maria Ferraz, Marijane Lisboa, Suzi Cavalli e Antonio Andrioli*

Walter Colli, Helena Nader e Jacob Palis Junior – pesquisadores ligados à organizações científicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – publicaram na Folha de S. Paulo, em 8 de abril, o artigo “Ciência, Sociedade e a Invasão da CTNBio” (http://naofo.de/4e0h), elogioso à uma suposta excelência dos trabalhos da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), e aprovação de organismos geneticamente modificados, embora sem a devida consulta à comunidade científica.

Hugh Lacey, José Corrêa Leite, Marcos Barbosa de Oliveira e Pablo Rubén Mariconda – membros do Grupo de Pesquisa em Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Instituto de Estudos Avançados da USP – publicaram, no Jornal da Ciência, o texto “Transgênicos: malefícios, invasões e diálogo”, crítico àqueles posicionamentos (http://migre.me/pPmWZ).

Posteriormente, Paulo Paes de Andrade, Francisco G. Nóbrega, Flávio Finardi Filho, Walter Colli e Zander Navarro – este último um sociólogo e os demais ex-membros da CTNBio –, buscaram reforçar o artigo original, na nota “Transgênicos: benefícios e diálogo” (http://migre.me/pPnjv), utilizado, para tanto, argumentos que merecem reparos.

Desconsiderando observações cabíveis em termos das associações e interesses dos autores deste último artigo, cabem os seguintes comentários:

1 – Os presidentes da SBPC, Helena Nader, e da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Jacob Palis Junior, criticados pelo fato de, no artigo original, associarem suas percepções individuais às organizações cientificas que dirigem, não mais figuram entre os envolvidos no debate. Em seu lugar, surgem ex-membros da CTNBio notabilizados pelo empenho exercido em favor da aprovação dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), e um sociólogo que desde algum tempo vem ocupando espaços na mídia para enaltecer os benefícios das modernas biotecnologias e do agronegócio.

2 – Os autores negam relação entre o uso de agrotóxicos e transgênicos quando, bem sabem, a quase totalidade destas plantas incorporam transgenes que só servem para protegê-las da aplicação de herbicidas, ou requerem aplicação de inseticidas, já que não apresentam resistência plena às pragas alvo, nem tampouco às demais pragas.
Desprezam também o fato de que nos anos mais recentes a CTNBio só tem aprovado liberações de plantas "piramidadas", ou seja, que permitem aplicações de diferentes tipos de venenos num só transgênico.

Fingem ignorar, ainda, que o surgimento de plantas resistentes a herbicidas está levando os agricultores a "ampliar a dose" ou "aumentar o número de aplicações", expandindo o uso daqueles produtos. É no mínimo alarmante que pesquisadores com acesso facilitado a meios de comunicação de massa distorçam fatos de seu conhecimento, saber este acessível a qualquer cidadão que lide minimamente com a realidade agrícola brasileira.

3 – Os mesmos autores exaltam o fato de que a quase totalidade da soja, do milho e do algodão cultivados no país adotem esta tecnologia, mas esquecem que justamente elas são as principais consumidoras de agrotóxicos.

4 – Além disso, os autores "expandem" a área cultivada no país e alteram a proporção ocupada com transgênicos (que afirmam ser 30%, quando infelizmente já alcança 54%) e idealizam os ganhos de produtividade da agricultura (que apontam em 200% quando na realidade são de 43%). E, para finalizar, comparam o crescimento da área cultivada com transgênicos (partindo do zero) com o crescimento do volume de agrotóxicos na agricultura como um todo (como se não houvesse utilização de venenos em períodos anteriores a 2003).

Alunos que cursam estatística básica não ousariam tanto; revistas com conselho editorial não permitiram publicação tão fantasiosa (para detalhes ver crítica de Alan Tygel em http://migre.me/pWopV).

Sugere-se aos leitores, que possivelmente não acompanhem estes temas, forte questionamento com base no conhecimento científico disponível. Interpretações que se confundem com campanhas de marketing e malabarismos numéricos aportadas ao Jornal da Ciência (Publicação da SBPC) sempre estiveram e devem estar sob o crivo dos pares no âmbito da SBPC.

5 – Os autores dão especial atenção à tecnologia Bt, e às características das proteínas inseticidas (na verdade toxinas) embutidas em todas as células vegetais daquelas Plantas Geneticamente Modificadas (PGMs). Comparam estas lavouras com aplicações de lagartas pulverizadas, tratamento biológico usado com êxito há mais de 50 anos no país.

Entretanto, deixam de informar o seguinte: o uso massivo das toxinas presentes nas lavouras Bt está (i) determinando o aumento da frequência ou o surgimento de insetos resistentes, (ii) afetando predadores naturais, (iii) provocando a emergência de pragas secundárias, (iv) obrigando a aplicação de novos inseticidas, e (v) estimulando o uso intensivo daqueles agrotóxicos usados no passado, e que hoje pouco ajudam.

Mais do que isso, a lavoura transgênica está inviabilizando o uso de tecnologia sustentável, praticada pelos agricultores, que controlavam pragas pulverizando inseticidas biológicos como Dipel, mas fazendo isso apenas nos focos de infestação e diante de sérias ameaças de danos econômicos. Nas lavouras Bt isso não ocorre. Elas correspondem a produção e secreção de 5 mil a 15 mil vezes mais toxinas que as naturalmente produzidas no solo, durante o tempo todo de cultivo e por todas as células das plantas Bt, afetando a todos os demais organismos, notadamente os benéficos, em sua volta, independente de presença de lagartas e dispensando avaliações de implicações econômicas.

Obviamente isso afeta comunidades de seres que não são alvo da tecnologia, presentes no solo e na água, com implicações ambientais ainda desconhecidas. Além disso, deve ser considerado que, em menos de uma década estas PGMs do tipo Bt já estão inviabilizando uma tecnologia amigável ao ambiente, que vinha sendo usada com sucesso, ao longo dos últimos 50 anos.

Contradição
É, no mínimo, enganosa a afirmativa de que agricultores que cultivam milho, soja e algodão Bt não precisam usar ou não usem inseticidas. Os fatos, documentados inclusive por distintos órgãos de comunicação indicam que usam sim, porque precisam. E cada vez mais. E também usam herbicidas, porque hoje até estes transgênicos do tipo Bt incorporam transgenes de tolerância a glifosato, glufosinato, 2,4-D, e haloxifope, entre outros.

Portanto, não há qualquer fundamentação científica para a afirmativa de que "as plantas transgênicas no mercado não prejudicam o ambiente ou a saúde humana e animal".

Também é distorcida a afirmativa de que "bilhões de animais e pessoas se alimentam com produtos formulados a partir de milho, soja, canola e outras plantas transgênicas e nenhum, absolutamente nenhum, problema de saúde foi comprovado". Não existem estudos de longo prazo nesse sentido, além de que todos os testes são realizados examinando apenas riscos de intoxicação aguda. Nestes 20 anos de consumo de PGMs e seus derivados nenhum estudo relevante desenvolvido para constatar a inocuidade tem base cientifica não questionável.  E isto é reconhecido pelos autores do artigo, quando Paulo Paes de Andrade,Francisco G. Nóbrega, Flávio Finardi Filho, Walter Colli, e Zander Navarro afirmam que está em andamento grande teste em campo aberto, onde todos somos ‘cobaias’.

Concordamos com isso, e lamentamos o empenho de alguns, em aprovar o PL 4148/2008, que pretende, literalmente, esconder os transgênicos dos consumidores, impedindo o estabelecimento de relações de causa e efeito entre o que nós, as ‘cobaias’, compramos no supermercado e entre o que elas, as empresas detentoras da tecnologia defendida por aqueles autores, vendem aos agricultores. Com sua aprovação será negado aos brasileiros, com base naqueles falsos argumentos de “segurança comprovada ao consumo”, um direito básico constitucionalmente assegurado aos consumidores: o direito à informação.

Não é surpresa o que está expresso no referido artigo, pois os autores, quando membros da CTNBio sustentaram as mesmas afirmativas, e sempre votaram a favor da liberação comercial destes produtos, em muitos casos contrariando posicionamento de representantes dos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente, do Desenvolvimento Agrário e de outras representações, como a dos agricultores familiares e a da saúde do trabalhador, que pediam mais estudos e alertavam para os riscos envolvidos.

O exame de pareceres favoráveis a aprovação das PGMs apresentados por muitos dos membros da CTNBio, por si só já é suficiente para rejeitar o argumento de que "os membros da CTNBio empregam uma vasta literatura para apoiar seus pareceres e não apenas os dados trazidos pela empresa". Não é o que se verifica na prática, pelos menos até este momento! No entanto, a vasta literatura adicional está quase que exclusivamente presente naqueles outros pareceres que pedem a rejeição ou mais estudos, trazendo artigos e publicações científicas que contradizem assertivas dos proponentes da tecnologia.

Por estes e outros motivos, entendemos que, contrariamente ao que Navarro, Andrade, Colli, e Nobrega, apregoam, estão certos Lacey, Correa Leite, Oliveira e Mariconda, em sua preocupação com a incorporação de elementos de natureza ética, aos debates que envolvem a CTNBio, seus componentes e suas deliberações, bem como o estabelecimento de um diálogo no âmbito das sociedades cientificas.

Em outras palavras; somos de opinião que neste caso o preconceito contra a maioria dos membros da CTNBio se faz conceito, é sólido e se justifica, aplicando-se a quem fez e faz por merecer.

*Leonardo Melgarejo, Rubens Nodari, Paulo Kkageyama, José Maria Ferraz, Marijane Lisboa, Suzi Cavalli e Antonio Andrioli, todos os autores são ou foram membros da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio)


sábado, 16 de maio de 2015

150 ANOS DO CORDEL BRASILEIRO

Homenagem de Jô Oliveira ao “Pai do Cordel Brasileiro”

 

150 anos do Primeiro sem Segundo                 


Cordel Atemporal – Espaço dedicado à Literatura de Cordel e à Divulgação da Cultura Popular Brasileira

15 de maio de 2015



Alguém é capaz de explicar como autores incensados em seu tempo, aplaudidos por um exército de sabujos, detentores de muitas láureas, hoje estão completamente esquecidos? Se conseguir, também explique como Leandro Gomes de Barros, poeta e editor nordestino, que enveredou pelas trilhas da literatura de cordel ainda não completamente definidas, morto em 1918, ou seja, há quase cem anos, mereceu de um público sempre renovado a imortalidade literária. 

Nascido em 1865 no sítio Melancia, no município paraibano de Pombal, Leandro é, ao mesmo tempo, o grande desbravador da seara do cordel e sua melhor tradução. Não foi o primeiro a escrever e a publicar obras no gênero, mas, a partir dos temas explorados por ele e por seu conterrâneo Silvino Pirauá, dezessete anos mais velho, o cordel editado no Brasil achou o seu rumo. 






Sua obra abrangia desde os livros do povo, trazidos pelo colonizador luso, em versões fiéis ou recriações, a poemas que destacavam a gesta do gado, como a História do Boi Misterioso, ou relatos lendários, como o impressionante romance O Cachorro dos Mortos. Esta trajetória singular está bem esmiuçada na biografia do artista escrita pelo cordelista e admirador Arievado Viana, Leandro Gomes de Barros Vida e Obra (produção conjunta da editora Queima-Bucha e do Sintaf de Fortaleza).

Leandro inspirou grandes artistas, a exemplo de Ariano Suassuna, que, de duas obras suas inspiradas em contos tradicionais, O Dinheiro e O Cavalo que Defecava Dinheiro, além do poema de cunho religioso O Castigo da Soberba, de Silvino Pirauá, extraiu os motivos para a sua peça mais célebre, Auto da Compadecida. Inspirou outros cordelistas, apontando-lhes o caminho com suas obras consagradas por um público sempre ávido por histórias de temáticas variadas.

Leandro, no entanto, tem brilho próprio e basta a leitura de seus textos mais célebres para entender o porquê de ele ainda ser lido, imitado, mas nunca igualado, ao passo que muitos de seus contemporâneos mergulharam nas águas do Lete para delas não mais emergir. 

A professora Ione Severo, de Pombal, pesquisadora do cordel e admiradora do poeta, prepara uma homenagem à altura de seu talento. Poetas, estudiosos e ilustradores da literatura de cordel se reunirão no berço do autor de Os Sofrimentos de Alzira e Cancão de Fogo para celebrar a passagem dos 150 de nascimento daquele que, quando vivo e mesmo depois de seu encantamento, foi cognominado, com justiça, O Primeiro Sem Segundo.



sexta-feira, 15 de maio de 2015

O MANIFESTO COLHER DE PAU E SEU PORQUÊ

 Foto: Carolina Amorim

Normas “sanitárias” obtusas favorecem agroindústria, demonizam utensílios populares e tentam estigmatizar culturas alimentares brasileiras. Começou campanha para enfrentá-las

Por Juliana Dias

Outras Palavras – 14/5/2015

A colher de pau está impregnada de cultura, afetos, memória e sabor. É utensílio indispensável na cozinha brasileira, utilizada no dia a dia dos lares, seja no campo ou na cidade. Faz parte do ritual culinário, com seu acervo de gestuais e saberes. Segundo o sociólogo Gilberto Freyre, o artefato de madeira estava presente na culinária dos povos indígenas. Por ser um objeto emblemático e milenar, que mexe com múltiplas questões alimentares, a colher de pau foi escolhida como elemento simbólico da campanha Comida é Patrimônio, lançada pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). O ícone da colher na identidade visual da campanha representa nossa diversidade em produzir, preparar, servir e comer.

Como parte das ações estratégicas dessa mobilização, o Fórum lança com exclusividade o Manifesto Colher de Pau (leia, ao final, na íntegra), de autoria do antropólogo e museólogo Raul Lody, pesquisador na área de alimentação, com diversos livros publicados e idealizador do Museu de Gastronomia Baiana. “O Manifesto Colher de Pau é um sinal de cuidado, atenção e entendimento da diversidade, respeitando-se a longa experiência de sanidade e do consumo de alimentos”, destaca Lody. O documento sintetiza de forma clara e acessível as dificuldades enfrentadas na produção de alimentos tradicionais, artesanais e de base familiar.

O debate sobre normas sanitárias mais inclusivas e adequadas à lógica e dinâmicas da produção familiar e artesanal faz parte da pauta de lutas políticas de muitos movimentos sociais, organizações e redes, incluindo o FBSSAN. Um dos desdobramentos desse processo foi a publicação, em 2013, da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 49, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Esta RDC trata sobre Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária. É destinada à regulamentação da produção de alimentos pelos microempreendedores individuais (MEIs), empreendimentos familiares rurais e empreendimentos da Economia Solidária. Antes da publicação, a proposta passou por consulta pública, que contou com a contribuição de 150 pessoas e instituições, envolvendo mais de 6 mil participantes em seminários regionais, segundo dados da ANVISA.

A RDC busca dialogar com os princípios de Segurança Alimentar e Nutricional e com uma visão mais ampliada de saúde, propondo-se a preservar a característica artesanal dos alimentos e a priorizar uma fiscalização voltada mais para a orientação dos empreendedores. A Resolução busca ainda promover a integração e a articulação dos processos e dados do Sistema Nacional de Vigilância Sanitaria (SNVS) com os demais órgãos e entidades com o objetivo de evitar a duplicidade de exigências para os empreendimentos. A publicação da RDC, sem dúvida, foi uma importante conquista, mas agora o desafio é a sua efetiva implementação.

Por outro lado, a sociedade civil organizada avalia, em Carta Aberta elaborada em agosto de 2014 e subscrita por 72 organizações, que para a produção e processamento de produtos de origem animal e polpas de frutas, permanecem normas excludentes e inadequadas e a dificuldade de diálogo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

O documento apontou que apesar das mudanças, a legislação sanitária ainda mantém padrões de qualidade baseado na produção agroindustrial de larga escala, padronizados e com uso intensivo de insumos químicos. Com isso, acaba aproximando o modelo artesanal da industrialização e artificialização, aumentando custos e afastando-o de suas características socioculturais. “É urgente e necessário que se deem passos largos e concretos para avançar nessa questão por meio da criação de legislação e sistema de inspeção sanitários específicos para a produção familiar e artesanal. Devem ser fundamentados em conhecimentos, práticas, experiências e modos de vida dos agricultores e agricultoras, contemplando também a diversidade cultural e alimentar que caracteriza a produção desses alimentos”, informa o texto da carta.

A substituição da colher de pau pela de outros materiais, como a de polietileno é uma das modificações que mais chamaram atenção na resolução. Por isso, o utensílio é o emblema da campanha e do Manifesto. Entre as proposições expressas na carta está a “criação de espaços para discussão e formulação de conceitos/definições importantes que estão na Resolução 49/2013, tais como a classificação de risco; distinção entre in natura, semi-processado, processado e cultura alimentar”.

As complexas relações entre ingrediente e processos culinários constituem um rico acervo de significados, comportamentos, afirmações, identidades e sabedoria tradicional. Assim, a comida está associada ao pertencimento. “Creio que ouvir, entender, respeitar e agregar tantas descobertas é uma base sensível para organizar ‘regras’ e como empregá-las, respeitando-se diversidade, identidade, e o sentido verdadeiro da comida, que é muito além do ato de alimentar”, aponta Lody. A campanha, a Carta Aberta e o Manifesto fazem parte de um processo de comunicação popular que visa ampliar o debate a respeito dos graves problemas de saúde gerados por uma alimentação pautada no consumo de produtos alimentícios processados, com alto teor de conteúdo publicitário, sal, gordura e açúcar.

Essas iniciativas também podem colaborar para a construção e efetivação de políticas públicas, como a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Dessa forma, evidencia-se a necessidade de “valorizar, resgatar e disseminar práticas alimentares e da culinária que preservem a cultura, a biodiversidade e a autonomia das diversas regiões do Brasil”, conforme aponta a carta endereçada à ANVISA. O autor do Manifesto Colher de Pau sinaliza que “empregar regras sanitárias sem entender os motivos acumulados na história, na sabedoria tradicional de povos, de segmentos étnicos é apenas uma ação “burocrática” que distancia o verdadeiro sentimento de comida, de comensalidade e de outros valores agregados à mesa”.

Outro ponto de convergência é aquecer as discussões que serão postas à mesa durante a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, organizada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), cujo tema será “Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar”, prevista para acontecer em novembro em Brasília.

Ao fomentar propostas como o Manifesto, a campanha Comida é Patrimônio vem enriquecer o caldo dos debates que buscam aproximar as questões sanitárias pertinentes à segurança dos alimentos com a cultura alimentar. Digamos que é o ponto certo para “meter a colher”, como diz o ditado popular. Essa mobilização pretende provocar reflexões e atitudes em prol da comida de verdade, bem comum, patrimônio material e imaterial, usando arte, poesia, manifestações e reivindicações.

 


Manifesto da Colher de Pau




Pela salvaguarda das cozinhas regionais e tradicionais do Brasil, e com respeito aos acervos culinários que são também identificados nos conjuntos de objetos de madeira, metal, fibra natural trançada, cerâmica entre outros; conjuntos de objetos variados e fundamentais ao ofício de se fazer a comida e possibilitar a preservação das receitas, e ainda preservam a estética de cada prato e o seu serviço em diferentes espaços e ambientes sociais.

A comida servida à mesa, em banca, sobre esteira, sobre folha de bananeira, traz vivências das muitas experiências culturais de comensalidade nos cenários das casas, dos mercados, das feiras, dos restaurantes, dos templos, entre tantos outros.

Pela segurança alimentar e principalmente pela soberania alimentar o “Manifesto Colher de Pau” quer valorizar cada objeto, implemento de cozinha, e rituais sociais de oferecimento de comida e bebida como forma de preservação do exercício dos saberes tradicionais e indentitários de famílias, regiões, segmentos étnicos, religiões; e, em destaque, a compreensão plena da importância técnica e simbólica de cada objeto.

Assim, morfologia, material, função, trazem memórias ancestrais que são definidoras das peculiaridades das culturas e dos povos que são identificados em cada objeto. Objeto vinculado ao que se entende por “patrimônio integrado” no entendimento contemporâneo de patrimônio cultural imaterial.

Respeitar e manter estes acervos materiais nas cozinhas, e nos serviços, garantem os espaços de singularidade e de peculiaridade dos nossos sistemas alimentares de brasileiros, e os acervos significativos dos sabores, da construção dos paladares, ações que se dão no exercício das culturas.

Para participar da campanha, acesse www.facebook.com.br/fbssan

#comidaepatrimonio #pensamentopimenta


MONOCULTURAS E AGROTÓXICOS: SUMINDO COM AS ABELHAS



Monoculturas e agrotóxicos são as causas do sumiço das abelhas


Segundo pesquisadora, os impactos às abelhas são “diretos”, quando ocasionam a morte dos animais, e “indiretos”, quando causam “prejuízos no sistema imune, na comunicação ou na organização social.

Por Patricia Fachin

Da IHU-Online 12 de maio de 2015


Ainda é cedo para relacionar o sumiço das abelhas com o cultivo de espécies transgênicas, mas entre os fatores que explicam esse fenômeno mundial destacam-se o crescimento das monoculturas e o uso constante de agrotóxicos.

“Nesse caso, há perda de habitats, e, havendo perdas na paisagem, acabamos eliminando os locais onde as abelhas normalmente constroem seus ninhos. Muitas vezes elas constroem ninhos em ocos de árvores e abelhas sociais constroem também ninhos no solo. Assim, no momento em que há grandes plantios de eucalipto, ocorre a perda de áreas, que gera um impacto forte sobre a biodiversidade como um todo”, explica Betina Blochtein em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone. A professora pontua ainda que as monoculturas “acabam eliminando a dieta das abelhas ao longo do ano” e geram uma “dieta monofloral”, o que causa carência nutricional nos animais.

Segundo ela, os estudos que avaliam os impactos dos agrotóxicos nas colmeias têm apontado para a ação dos neonicotinoides, uma classe de inseticidas sistêmicos derivados da nicotina, “que se espalham na planta, porque são usados na semente e permanecem na planta depois, quando ela cresce e quando as flores se desenvolvem. Esses produtos são detectados até no néctar e no pólen que as abelhas irão coletar, e acabam trazendo prejuízos”. Ela frisa que os impactos às abelhas são “diretos”, quando ocasionam a morte dos animais, e “indiretos”, quando causam “prejuízos no sistema imune, na comunicação ou na organização social das abelhas”.

Entre os novos fatores que têm afetado as mais de 20 mil espécies nominadas, Betina chama atenção para as mudanças climáticas. “À medida que as mudanças vão ocorrendo, a vegetação desses ambientes vai mudando e a fauna associada também”, destaca.

Betina Blochtein é graduada em Ciências Biológicas, mestre em Zoologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutora em Biologia pela Universidade de Tübingen, na Alemanha. É diretora do Instituto do Meio Ambiente e professora na Faculdade de Biociências da PUCRS, com atuação na graduação em Ciências Biológicas e no Programa de Pós-Graduação em Zoologia.

Confira a entrevista.

Quais são os impactos do eucalipto e do eucalipto transgênico sobre o desenvolvimento de abelhas nativas brasileiras? O que os estudos demonstram sobre a relação de eucalipto e abelha?

A pergunta é muito adequada porque o eucalipto em si é uma planta altamente procurada pelas abelhas. Se examinarmos amostras, por exemplo, de mel, pólen no mel ou pólen em colmeias de abelhas, verificamos que geralmente existe um alto percentual de pólen de eucalipto quando existem árvores da espécie nas áreas de acesso às abelhas.
Uma orientanda minha demonstrou o uso de pólen de eucaliptos por abelhas nativas da espécie melipona – popularmente conhecida como manduri – e também o uso de pólen de apis mellifera, abelhas domésticas. A pesquisa demonstrou que em dois locais, em Riozinho e Rolante, no Rio Grande do Sul, onde existem áreas com maior e menor impacto antrópico, onde o eucalipto das duas áreas é em torno de 3% a 4% da cobertura, a representatividade desse pólen nas colmeias é muito elevada.
Esse é um evento local que podemos utilizar para ilustrar como os eucaliptos são importantes para as abelhas mesmo em áreas conservadas. Riozinho é um dos hotspots da mata atlântica brasileira, é uma das áreas mais bem conservadas e, no entanto, as pequenas manchas de eucaliptos que existem na paisagem, que representam, por exemplo, de 3% a 4% da cobertura do solo, se repercutem em uma entrada de pólen bastante elevada. Isso demonstra o quanto os eucaliptos podem ser importantes para as abelhas. Além disso, são plantas que fornecem pólen e néctar, que são os principais alimentos das abelhas e, portanto, podem ser importantes principalmente em épocas de escassez de outras floradas.

Impactos da monocultura

Agora, quando falamos em impactos de eucaliptos nas paisagens, tudo depende da escala da qual estamos falando. Se pensarmos em plantio de eucaliptos de larga escala, verificaremos, por exemplo, que se há agricultura em larga escala, existem perdas de ecossistemas. Nesse caso, há perda de habitats, e, havendo perdas na paisagem, acabamos eliminando os locais onde as abelhas normalmente constroem seus ninhos.
Muitas vezes elas constroem ninhos em ocos de árvores e abelhas sociais constroem também ninhos no solo. Assim, no momento em que há grandes plantios de eucalipto, ocorre a perda de áreas, que gera um impacto forte sobre a biodiversidade como um todo, não só nas abelhas. Da mesma forma, se existe uma área muito grande de eucaliptos, as abelhas remanescentes dessa área, por exemplo, que precisam de alimento ao longo de todo ano, enfrentam problemas de carência de alimentos no momento em que os eucaliptos não estão florescidos.
Além do mais, uma dieta monofloral é uma dieta pobre. Assim como nós, os animais precisam de dietas bem diversificadas para se nutrirem adequadamente. Então, uma dieta monofloral para abelhas de modo geral não é positiva. Tanto que os apicultores que colocam, principalmente no Uruguai e na Argentina, as colmeias de abelhas melíferas para produzir mel de eucaliptos em locais onde temos grandes plantios de eucaliptos e silvicultura em larga escala, geralmente precisam fazer uma complementação nutricional para que as abelhas não sofram por causa de carências nutricionais.

O que os estudos demonstram sobre o impacto dos eucaliptos e dos eucaliptos transgênicos em relação à qualidade do mel? Há diferenças?

Os nossos estudos sobre esse eucalipto transgênico que está em questão abrange três espécies: a apis mellifera, que é abelha doméstica, e duas espécies de abelhas sociais nativas, a Scaptotrigona bipunctata, conhecida popularmente como tubuna, e uma segunda, que também é muito conhecida pela população em geral, que é a tetragonisca angustula, popularmente chamada de jataí, e que produz um mel bem saboroso, assim como a tubuna.
Fizemos experimentos relacionados ao desenvolvimento dos indivíduos, a padrões de postura da rainha e também experimentos relacionados à longevidade dessas abelhas. Em todos os experimentos, sem diferença nenhuma, sempre usamos o eucalipto transgênico comparado com a isolínea não transgênica, para comparar um eucalipto com a forma da isolínea não-GM. Quando fizemos testes de laboratório, não vimos diferença nenhuma nas respostas dos diferentes testes realizados.
O que acontece é o seguinte: o mel é composto, na sua maior parte, de açúcares de vários tipos, predominantemente glicose e frutose, e a parte do mel que é integrada por pólen é bem pequena. Na verdade, a parte do mel que poderíamos chamar de transgênica seria a parte relativa ao pólen, porque os transgênicos se manifestam e aparecem através das proteínas. Nessa condição, considerando que o mel é predominantemente açúcar, a parte que teria eventualmente substâncias transgênicas seriam as proteínas relacionadas ao pólen, que está em pequena parte. A via de exposição dos transgênicos seria através de proteínas transgênicas que estão relacionadas ao pólen, não ao néctar, não aos açúcares.
Mas nesse transgênico não conseguimos detectar proteínas transgênicas. É tão ínfima a quantidade de proteínas transgênicas, que elas não são possíveis de detecção. Conseguimos detectar que elas estão presentes, mas a quantificação é muito baixa e, considerando ainda que o mel tem menos de 1% de proteínas, não podemos precisar mais informações sobre os transgênicos no mel, porque isso varia de amostra para amostra, mas certamente a quantidade de transgênico no mel é bem baixa.

Então o eucalipto transgênico não é prejudicial às abelhas? O impacto se dá somente por conta da plantação em grande escala?

O impacto em relação a plantações de grande escala, seja na agricultura, seja na silvicultura, existe independentemente de as culturas serem transgênicas ou não. Se usar um milho crioulo em larga escala, o impacto para as abelhas será igual ao plantio de eucalipto não transgênico em larga escala ou de eucalipto transgênico. No caso do eucalipto, porque ele fornece pólen e néctar para as abelhas, talvez o impacto seja até menor se comparado com outras culturas, como a soja.
O impacto está muito mais relacionado à questão da escala de agricultura, porque ela é claramente mais danosa para as abelhas do que o fato de a cultura ser transgênica ou não. Ainda é difícil dizer se os transgênicos podem ou não trazer algum impacto à fauna. Talvez daqui a alguns anos possamos ter alguma resposta mais evidente. Por enquanto, questões que favorecem a perda de habitat e causam impacto sobre a biodiversidade são infinitamente mais danosos para as abelhas.
Nos testes que realizamos, ainda não conseguimos detectar efeito negativo. Agora, se você for para uma área onde existe agricultura em larga escala, seja qual for a cultura, praticamente toda a biodiversidade que havia naquela área foi perdida. A agricultura de larga escala acaba eliminando a dieta das abelhas ao longo do ano. O ideal, nesses casos, como não vivemos mais sem a agricultura, dada a população mundial e a distribuição das pessoas no mundo, é pensar em agricultura sustentável, pensando, por exemplo, em várias práticas amigáveis, como a proteção de Áreas de Preservação Permanente - APP, o respeito de áreas de reserva legal e margens de rios. Se tomarmos os cuidados para essas medidas ambientais que a lei já indica e aponta, só isso já seria bastante favorável.
Eu temo que às vezes nos apegamos a discutir pontos delicados, que são questionados e certamente não podem ser ignorados, como a questão dos transgênicos, que obviamente devem ser muito estudados e discutidos pela sociedade antes de uma liberação, mas há fatos que ocorrem diariamente e que causam um impacto enorme, como o desmatamento da Amazônia e a falta de cuidados com as áreas que são legalmente protegidas. Esses, sim, são impactos que estamos vendo no dia a dia e que talvez sejam mais graves que os transgênicos, embora não devemos misturar as coisas, porque esses são assuntos diferentes.

Hoje, há uma preocupação mundial com a diminuição das abelhas em várias partes do mundo. Quais são as evidências de que as colmeias são menores hoje e de que a quantidade de abelhas tem diminuído? É possível saber as razões da diminuição das abelhas?

A perda, a diminuição e o desaparecimento de polinizadores, em especial das abelhas, de fato, é uma notícia global. Quando falamos de abelha, temos de lembrar que estamos falando de um universo de não menos que 20 mil espécies nominadas. Embora sejam poucas as espécies de importância comercial mundial, temos de lembrar que o maior serviço das abelhas é o da polinização, muito mais do que a produção de mel.
No mundo inteiro existem muitas situações em que as abelhas estão diminuindo ou desaparecendo e são várias as situações que podemos citar. Por exemplo, se formos olhar na lista vermelha das espécies em extinção da fauna brasileira, vamos encontrar abelhas na lista, se formos à lista do Rio Grande do Sul, também vamos encontrar espécies de abelha na lista.
São diferentes fatores que levam à extinção desses grupos que são citados nas listas vermelhas. Essas são espécies sociais que estão relacionadas à coleta predatória de abelhas, porque no passado, por exemplo, as pessoas retiravam as abelhas das árvores para coletar o mel ou para tentar criá-las, e acabavam exterminando com as colônias. Mais recentemente, nas últimas décadas, os problemas maiores estão relacionados a perdas ou alteração de habitat.
Então, se as abelhas têm seus ninhos instalados em árvores e ocorre um desmatamento, elas vão morrer e ponto. As populações são formadas de um determinado número de colônias, e na medida em que temos perda de habitat, perda de conectividade de uma população com a outra, perda de fluxo gênico, as populações vão ficando isoladas e se enfraquecendo. Nesse sentido, perda ou alteração grave de habitat é o fator número um para a perda de abelhas.

Impactos dos agrotóxicos

Depois, os demais fatores estão relacionados à agricultura de forma mais direta. Hoje se fala, no mundo inteiro, na questão dos inseticidas de modo geral e percebe-se que muitos agrotóxicos causam prejuízos às abelhas, alguns causam mais, outros menos, e outros não têm tanto impacto aparente. Há numerosos trabalhos que falam da ação dos neonicotinoides, que é um grupo de inseticida sistêmico que se espalha na planta, porque são usados na semente e permanecem na planta depois, quando ela cresce e quando as flores se desenvolvem. Esses produtos são detectados até no néctar e no pólen que as abelhas irão coletar, e acabam trazendo prejuízos.
Às vezes os prejuízos podem ser diretos, ocasionando a morte dos indivíduos, e outras vezes podem resultar em efeitos que nós chamamos de subletais, ou seja, não chegam a matar diretamente, mas podem causar outro tipo de prejuízo, como, por exemplo, alguns prejuízos no sistema imune das abelhas, na comunicação ou na organização social das abelhas e assim por diante.
Outro ponto que precisamos citar é a questão de um fenômeno conhecido como “desordem de colapso da colônia” - CCD (sigla em inglês para colony collapse disorder), que há alguns anos foi detectado nos Estados Unidos e em várias partes do mundo. Trata-se de uma síndrome do desaparecimento das abelhas, a qual está atribuída a um fenômeno considerado multifatorial, ou seja, podem existir vários fatores contribuindo conjuntamente para o desaparecimento das abelhas, como doenças, ectoparasitas, como é o caso do Varroa, que é um ácaro parasita de abelhas, que pode ter vários tipos de vírus associados e outros microrganismos junto com esse fenômeno.

Impactos das mudanças climáticas

Fatores novos também são observados nos trabalhos dos últimos anos, relacionados às mudanças climáticas. À medida que as mudanças vão ocorrendo – áreas mais frias vão se tornando mais secas, áreas mais secas vão se tornando mais úmidas e assim por diante –, a vegetação desses ambientes vai mudando e a fauna associada também. Essas mudanças climáticas que já estamos assistindo acontecer também repercute no mundo das abelhas. Assim, temos vários estudos e trabalhos que mostram uma mudança na distribuição de determinadas espécies de abelhas, as quais provavelmente vão reduzindo a área das populações. Hoje ainda existem vários estudos com modelagens e simulações para tentarmos entender o que irá acontecer com as populações de abelhas nos próximos 80 anos, a partir dos acompanhamentos e previsões de mudanças climáticas que seguem as plataformas do IPCC.

Como o uso dos agrotóxicos que afetam as abelhas é discutido no Brasil?

Existem vários trabalhos sobre isso em nível mundial e também no Brasil. O que verificamos é que esses inseticidas de modo geral têm uma ação direta sobre as abelhas, seja na mortalidade ou nos efeitos subletais. Em relação aos inseticidas, da mesma forma como não podemos mais viver sem agricultura ou silvicultura, há muitas culturas que são praticamente inviáveis sem o uso de agrotóxicos e inseticida. Então, nesse sentido, temos que ter cuidado para tentar ter políticas públicas muito claras, fiscalização e controle para, por exemplo, fazermos uso de produtos que sejam menos tóxicos às abelhas e aplicar uma série de medidas, as quais chamamos de “medidas de boas práticas relacionadas aos polinizadores”.
Por exemplo, horários de aplicação de produtos são fundamentais: se aplicarmos os produtos no final do dia, teremos uma ação de impacto direto sobre as abelhas muito menor do que se fizermos isso pela manhã. Outro ponto, também bem importante, é realmente uma avaliação detalhada sobre a real necessidade de uso de produtos. Hoje existe ainda uma cultura muito presente, que é a cultura da prevenção, isto é, de usar um inseticida para evitar que aconteça um problema relacionado à presença desses organismos indesejáveis.
Cada dia em que temos uma aplicação de inseticidas, por exemplo, há produtos que repercutem na presença das abelhas por dois ou três dias, ou até mais tempo. Por isso, temos de tentar, ao máximo, reduzir e diminuir o uso desses produtos que têm um impacto tão grande sobre as abelhas. Existem milhares de espécies de abelhas, que muitas vezes não conhecemos nem sabemos o nome, e quando aplicamos esses produtos e temos impacto por perda ou alteração de habitat ou qualquer outro fenômeno, estamos olhando só para abelhas sociais, que são criadas em colmeias, que têm foco na criação de mel ou mais recentemente na polinização.
Não estamos olhando para as abelhas nativas da fauna silvestre, que estão prestando um serviço de polinização para manutenção dos ecossistemas ou mesmo contribuindo para o aumento de produção agrícola. Temos essa perda e nem calculamos isso. Tenho a impressão de que temos que reavaliar alguns procedimentos da agricultura e tentar otimizar o uso dos recursos naturais. No momento em que estamos trazendo prejuízo às abelhas, estamos diminuindo a biodiversidade, diminuindo os serviços ambientais e, sem dúvida, a polinização.

Polinização

Temos, no Rio Grande do Sul e no Brasil, várias culturas que têm uma dependência alta e média de polinização por abelhas. Então, por exemplo, sabemos que a maçã – que é uma das culturas que estudamos em nosso grupo de pesquisas – depende em 90% da polinização por abelhas; sem abelhas praticamente não tem maçã. A maçã só vai se desenvolver, ficar com um formato regular, ter um desenvolvimento adequado de peso, tamanho e sabor, se tiver a visita de abelhas. No entanto, a fruticultura no Rio Grande do Sul é ancorada no uso de inseticidas. Por isso precisamos tentar fazer arranjos melhores para tentar proteger as abelhas e tentar ter mais serviços ambientais e menos custos com o uso de inseticidas.
Acredito que esses temas são muito importantes e já temos suficientes informações e subsídios científicos, os quais mostram que temos de ir nessa direção, que temos de olhar para a proteção dos polinizadores e, sem dúvida nenhuma, nesse aspecto, temos que voltar talvez ao eucalipto e falar em análise de risco. No meu entender, temos que fazer uma avaliação do impacto do eucalipto transgênico para as abelhas.

Impactos da canola

Hoje existem várias publicações relacionados à canola, e publicamos um livro destinado aos agricultores e técnicos agrícolas, exatamente alertando sobre o papel das abelhas na agricultura com foco na canola, que é um caso local no Rio Grande do Sul. O estudo nos alerta sobre vários pontos que colocam as abelhas em risco e sobre boas práticas que podemos adotar para proteger os polinizadores. Da mesma forma que o eucalipto, a canola é uma cultura que é bastante atrativa às abelhas, que traz néctar e pólen de modo semelhante ao eucalipto, mas as abelhas não podem viver só de uma cultura. Aí a história começa a se repetir independentemente da cultura.
Essa questão de perda de habitat da agricultura em larga escala, junto com o uso de inseticidas, é numerosas vezes de maior impacto às abelhas, à biodiversidade como um todo, do que uma proteína transgênica que nem conseguimos detectar e que está em baixa escala. Usamos protocolos internacionais e fizemos testes, fizemos todos nossos trabalhos com “cego e duplo cego”, ou seja, nem sabemos com qual amostra estamos trabalhando na hora de desenvolver os testes. Todo o nosso material é codificado para evitar que tenhamos tendências.
Quando comecei a trabalhar com esse projeto dos eucaliptos transgênicos, alguém me perguntou: “Você é a favor ou contra os transgênicos?” Eu rapidamente respondi: “Estou do lado das abelhas”. Creio que é por aí.


quinta-feira, 14 de maio de 2015

O SILÊNCIO OPRESSIVO DO AGRONEGÓCIO



Dossiê Abrasco: o grito contra o silêncio opressivo do agronegócio. Entrevista especial com Fernando Carneiro

Instituto Humanitas Unisinos – 6/5/2015

Por Ricardo Machado e Leslie Chave


“A ciência deveria servir a quem,  ao mercado ou a população brasileira?, afirma o pesquisador.

Associação de Saúde Coletiva – Abrasco lançou no dia 28-04-2015, no Rio de Janeiro, a versão atualizada do Dossiê Abrasco, livro com mais de 600 páginas que reúne uma série de informações sobre os riscos dos agrotóxicos à saúde humana.
A nova edição conta com o capítulo A crise do paradigma do agronegócio e as lutas pela agroecologia.

“As grandes novidades estão ligadas a dois pontos: à forma e ao conteúdo. Então, o livro passou por um processo de diagramação, de organização das ideias, de inovações na facilitação gráfica, onde se pode visualizar melhor. Outra novidade é que fizemos uma grande parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia - ANA e com a Associação Brasileira de Agroecologia - ABA nessa perspectiva de dialogar com outros conhecimentos e saberes”, explica Fernando Carneiro, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Ao analisar a atual conjuntura brasileira, o professor é duro nas críticas a retrocessos importantes como, por exemplo, a retirada da indicação dos produtos transgênicos nos rótulos. “Nega-se um princípio básico, que é o direito à informação. Por que se quer negar esse direito? Se não há o que temer, por que negar que as pessoas saibam o que estão comendo? Isso é uma violência que o Congresso Nacional está fazendo contra a população brasileira”, critica. Além disso, alerta que o paradigma do agronegócio é suicida. “O paradigma do agronegócio não sustenta um projeto de agricultura para o futuro do Brasil. Não é sustentável nos tornarmos um grande exportador de commodities, exportando água, solo, muitas vezes exportando vidas humanas e a nossa natureza”, avalia.

O resultado de um contexto político onde existe um parlamento conservador e a chefe da pasta da Agricultura sendo uma das representantes do agronegócio no Brasil é o que Fernando chama de silêncio opressivo do Estado. “Muitos dos pesquisadores que representam a Associação Brasileira de Ciência - ABC e a SBPC na CTNBio têm as pesquisas financiadas pelas empresas que se beneficiam do agronegócio, e sabemos que na CTNBio não há espaço para discutir conflitos de interesse, mas temos que discutir isso. A ciência está para quem, para o mercado ou para a população brasileira?”, pondera. “Isso é o que ocorre e daí a importância do debate acontecer, porque ele grita frente ao silencio opressivo dos interesses que os grandes grupos querem impor sobre nós”, complementa.

Fernando Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde –— área de Concentração de Saúde Ambiental pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG. Atualmente é pós-doutor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como orientador o Prof. Boaventura de Sousa Santos. Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. É pesquisador da Fiocruz Ceará e doNESP UnB. Atualmente também coordena o GT Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas (OBTEIA).

Confira a entrevista...



IHU On-Line - Quais são as novidades do dossiê da Abrasco em relação aos relatórios anteriores?
Fernando Carneiro - As grandes novidades estão ligadas a dois pontos: à forma e ao conteúdo. Lançamos um livro que parte de toda uma concepção da ciência, principalmente de uma ciência que quer dialogar com a sociedade, como um alicerce de sua função social. Então, o livro passou por um processo de diagramação, de organização das ideias, de inovações na facilitação gráfica, onde se pode visualizar melhor. Tudo isso para ser uma publicação boa de ler, de interagir; para que as pessoas encontrem o que buscam com mais facilidade, cada capítulo, cada parte tem uma cor e um símbolo diferente, tudo com o objetivo de criar novos recursos gráficos para facilitar processos de compreensão e uso. Essa é a primeira novidade em termos da forma.
A outra novidade é que fizemos uma grande parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia – ANA e com a Associação Brasileira de Agroecologia - ABA nessa perspectiva de dialogar com outros conhecimentos e saberes. Na quarta parte, focada na crise do paradigma do agronegócio e das alternativas, nós colocamos uma questão que, por exemplo, a Abrasco não tem total expertise, que é a agroecologia. Nós somos uma associação científica do campo da saúde coletiva em articulação com outros campos do saber, como o da própria questão agrícola, questão ecológica, questão da ecologia política, etc. A quarta parte também atualiza o que aconteceu de 2012 até 2014.

Bancada ruralista
Infelizmente, apesar de ter novidades boas, as principais novidades não são boas. Houve uma piora do quadro político, houve uma maior hegemonia da bancada ruralista, que conseguiu vitórias importantes, como a alteração no código florestal, com o objetivo de maximizar lucros em detrimento da preservação ambiental, uma coisa que vai na contramão de tudo que acontece hoje no mundo. Quando o Brasil está vivendo a crise da água, a relação com a preservação das florestas é direta e nós acabamos de aprovar uma lei que perdoa esses empreendedores do agronegócio, que, inclusive, não cumpriram a lei florestal brasileira, a qual garante que eles explorem mais áreas antes preservadas.
Essa foi uma grande perda, e o setor, que sempre teve o domínio do Ministério da Agricultura, tem a Kátia Abreu à frente, ela que é um ícone desse setor, uma pessoa que sempre trabalhou pela flexibilização do registro e maximização do uso de agrotóxicos no Brasil.
Sabemos que no Congresso aumentou a bancada ruralista e a onda conservadora. Agora, com a Kátia junto ao Executivo, temos grande preocupação por conta dos compromissos dela de garantir que tais setores sejam beneficiados. Isso se estende a propostas de desregulamentação total, tirando o papel da Anvisa, do Ministério do Meio Ambiente, concentrando na pasta da Agricultura, que é uma espécie de “Comissão Técnica Nacional do Agronegócio - CTNAgro”, aos moldes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio. É um tema que ganha cada dia mais espaço no governo.
Por outro lado, houve o lançamento do Plano Nacional de Agroecologia, o Plano Nacional de Redução de Agrotóxico e essas foram as luzes no fim do túnel, onde, na quarta parte do relatório, exploramos a possibilidade de que isso seja hegemônico e que não fique sem recursos e sem apoio.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a aprovação do projeto de lei que autoriza a retirada do T, de transgênicos, dos rótulos?
Fernando Carneiro – Para nós, como cientistas preocupados com a saúde da população e críticos com relação à tecnologia, não a percebendo com algo “sagrado” cujos prós e contras devem ser avaliados — sabemos que há ideologias por trás dos transgênicos —, recebemos esta notícia como uma grande derrota. Isso porque nega-se um princípio básico, que é o direito à informação. Por que se quer negar esse direito? Se não há o que temer, por que negar que as pessoas saibam o que estão comendo? Isso é uma violência que o Congresso Nacional está fazendo contra a população brasileira.

IHU On-Line - Como são abordadas as contradições entre os perigos causados pelos agrotóxicos e a política do agronegócio no Brasil neste capítulo inédito do dossiê?
Fernando Carneiro – As três primeiras partes do dossiê colocam de forma muito detalhada os principais produtos que têm sido utilizados no Brasil e os danos que eles causam. O que se coloca no quarto capítulo é uma discussão de paradigma. Ou seja, o paradigma do agronegócio não sustenta um projeto de agricultura para o futuro do Brasil. Não é sustentável nos tornarmos um grande exportador de commodities, exportando água, solo, muitas vezes exportando vidas humanas e a nossa natureza. Esse modelo precisa de insumos externos o tempo todo (se sobe o dólar já tem gente batendo na porta do governo pedindo mais subsídios), porque boa parte do que se gasta com agrotóxicos é de princípios ativos que são importados à base de moeda estrangeira, sem contar na alta do custo da produção. Estamos falando de um modelo que, apesar de todo o discurso moderno e dinâmico, vive às custas do Estado brasileiro.

Contraposição
A contraposição que é colocada no capítulo da agroecologia apresenta um outro paradigma que respeita os conhecimentos tradicionais, a preservação à vida, um projeto soberano de país em que nossas sementes estejam sob a nossa guarda, não sob a tutela de multinacionais que só pensam no lucro. Neste capítulo, caracterizamos para onde estamos indo e para onde deveríamos ir na perspectiva de uma sociedade mais justa e sustentável.

IHU On-Line - Quais são as próximas etapas da pesquisa?
Fernando Carneiro – Fizemos, no final da última semana, uma reunião com a equipe de trabalho e a perspectiva é, neste momento, organizarmos o lançamento do dossiê cujo foco é trabalhar na divulgação, debater com a sociedade e lançar em todo o país. Esse é nosso compromisso antes de nos arvorarmos em uma quinta etapa. Não há qualquer tipo de direito autoral, está tudo disponibilizado na Internet e tentamos cumprir o papel social da ciência.
Porém o que devemos fazer nas próximas etapas é trabalhar dois eixos: os agrotóxicos urbanos, desde a nossa casa até as campanhas de saúde pública, e a guerra química que foi travada desde os tempos da ditadura até a atualidade contra populações vulnerabilizadas; ou seja, o uso de agrotóxicos contra populações indígenas, sem terras ou grupos que estejam incomodando grandes empreendimentos. Há registros disso e o trabalho da Comissão da Verdade e da Reforma Sanitária está investigando casos onde isso aconteceu. Em princípio, são dois desdobramentos em que trabalharemos.

IHU On-Line - O país ainda se mantém na posição de maior consumidor de agrotóxico do mundo? Quais são as dificuldades de sair dessa posição?
Fernando Carneiro – A dificuldade é que não se tem um plano político de implantar o Plano Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos. Até mesmo do ponto de vista capitalista seria mais inteligente não utilizar agrotóxico, pois a redução maximizaria o lucro. Mas o que acontece é que a grande dificuldade do desenvolvimento do uso tecnológico dos transgênicos é de estar voltado para “casar” semente com agrotóxico. Há toda uma cadeia de lucro que depende desse modelo de monocultura, que faz emergir, inclusive, o uso da palavra “praga”, em que uma espécie vegetal é cultivada em um ambiente artificial, favorecendo a proliferação de uma ou outra espécie de insetos que acabam dando o nome de “praga”. Mas isso é uma característica do agronegócio e a manutenção desses grandes sistemas artificiais vai exigir sempre o uso de muito agrotóxico e “tratamentos” com agroquímicos de toda a ordem, pois não há sustentabilidade. Esse preço está no DNA do agronegócio, que talvez possa diminuir, racionalizando um pouco com técnicas que deem margem para isso, mas há um limite. É por isso que defendemos a transição agroecológica.
Não se trata de acabar, do dia para a noite, com o uso de agrotóxicos no Brasil, mas conceber um plano que envolverá investimentos da Embrapa, que, ao invés de aportar 90% no agronegócio, deveria aplicar a metade; de fortalecer pesquisas agroecológicas que garantam produtividade e qualidade dos alimentos; de problematizar a formação de engenheiros agrônomos majoritariamente voltada para que eles se tornem, na prática, preceptores de veneno, ao invés de se tornarem profissionais que olhem para a saúde dos ecossistemas, não ficando focados somente na destruição da praga. É toda uma mudança que passa pela formação universitária, pelo investimento em pesquisa, pela valorização de cadeias de produção agroecológica, que até pouco tempo atrás não podia produzir sem veneno.
Na ditadura essa aliança atingiu o nível máximo, tanto que os generais ocuparam cargos de diretoria nestas empresas. Houve, à época, um acordo tal que só se podia conseguir o crédito caso houvesse a garantia da compra do veneno. Existe muito compromisso do Estado com toda essa prática, e o Estado brasileiro é muito grande para apoiar o agronegócio, mas muito pequeno para apoiar a agroecologia. Nosso grande desafio é começar essa transição em nome de nossa sobrevivência e das futuras gerações.

IHU On-Line - Nesse contexto, como o senhor avalia o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica? Como ele tem sido uma alternativa ao uso de agrotóxicos?
Fernando Carneiro – Ele é uma grande esperança e uma grande aposta dos movimentos sociais, então deveria ser priorizado politicamente pelo Estado. O dossiê dá toda a base científica e política para que isso seja adotado pelo governo como sua prioridade.

IHU On-Line - O livro está sendo lançado no mês em que a “Campanha Nacional Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida” completa quatro anos de luta. Como o senhor avalia a trajetória dessa iniciativa? Quais são os desafios a enfrentar?
Fernando Carneiro – É importante dizer que esse livro, ao longo do processo, envolveu a própria campanha, quando percebemos que havia outros conhecimentos com relação à luta contra os agrotóxicos que deveriam ser envolvidos; não se tratava tão somente do conhecimento científico. Em um determinado momento, que foi ao final da parte três — A Ecologia dos Saberes —, nós envolvemos a campanha também como autora do dossiê, o que continua nesta quarta etapa. O dossiê vai ajudar muito a potencializar as ações da campanha, porque foi construído com esse objetivo, pois pode subsidiar cartilhas para serem trabalhadas com a população. Já recebemos três convites de lançamento do dossiê das Assembleias Legislativas dos Estados da Bahia, do Rio Grande do Sul e do Ceará, e isso potencializará muito a campanha.

IHU On-Line - Como poderiam ser formuladas campanhas efetivas direcionadas a consumidores e produtores sobre os riscos dos agrotóxicos?
Fernando Carneiro – O Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, que participou do lançamento do dossiê, tem um mapa de mais de 400 feiras agroecológicas, disponibilizado em um aplicativo que ajuda as pessoas a encontrarem feiras e, inclusive, cadastrar as que não estejam neste mapa. Esse é só um exemplo de estratégias da sociedade civil que têm colaborado para esta questão. É muito importante para o consumidor ter opção.

Relação direta
Se pensarmos somente nas grandes cadeias de supermercado, eles têm lidado com a questão da agricultura orgânica ou agroecológica como “Nicho de mercado”. Se vamos em uma dessas redes e compramos uma alface orgânica por R$ 5 ou R$ 6, rompemos com aquilo que defendemos na agroecologia, isto é, a alimentação saudável acessível à população brasileira. Não enxergamos estas redes como nicho de mercado; queremos acreditar que agroecologia seja algo acessível a todo brasileiro. A Abrasco recomenda que a população busque as feiras agroecológicas também, porque, se elimina o atravessador, temos uma relação direta com o produtor e isso fortalece movimento social de luta pela Reforma Agrária e por um país mais justo.
Após o lançamento do livro, na última semana de abril, houve um coquetel agroecológico com uma cooperativa de produtores camponeses, que serviram sucos naturais e também culinária a partir de elementos produzidos no dia a dia e sem agrotóxicos. Não passou Coca-Cola, não passou sucos artificiais, foram só produtos saudáveis. É por isso que devemos ser coerentes e continuar fiscalizando e, sobretudo, dar o exemplo.

IHU On-Line - Como o senhor avalia a atuação do Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos?
Fernando Carneiro – É muito incipiente. É um programa que ainda não foi oficializado pelo governo e é importante que se assuma isso formalmente. É preciso que o Estado destine recursos para este programa para que ele não seja somente uma carta de intenções, pois não se trata de um programa com recursos definidos claramente. Então é muito importante que o governo faça, pois não se trata de um programa com recursos definidos claramente. Havia uma expectativa de melhorar a vigilância da saúde com relação às populações no que diz respeito aos agrotóxicos, mas nenhum resultado disso vem sendo apresentado. O máximo que temos de informação é o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Vimos declarações da superintendência da Anvisa de que “os dados do PARA não são para se preocupar”, ou seja, a própria entidade tentando amenizar o que ela está mostrando com medo dos desdobramentos em relação ao agronegócio. O governo está com muito medo de encarar o agronegócio e fiscaliza-lo em termos de seu impacto na saúde e ambiente. Está na hora do governo criar mais coragem para defender a vida e a saúde.

IHU On-Line - Foram realizados novos estudos a respeito dos riscos do uso de agrotóxicos para a saúde? O que esses dados revelam? Quais são as principais doenças originadas da contaminação por agrotóxicos?
Fernando Carneiro – Para além do que já foi exposto exaustivamente pelo dossiê, há duas grandes novidades, divulgadas muito recentemente, em abril. Uma delas é o glifosato, que a International Agency for Research on Cancer – Iarc classificou como uma substância potencialmente cancerígena, inclusive com dados do Brasil, do Instituto Nacional do Câncer – Inca, e passou a classificá-lo como um provável carcinógeno humano. Isso é muito sério porque o glifosato é responsável pela venda de 40% dos agrotóxicos no Brasil e ele é o herbicida ligado à soja transgênica, uma das principais commodities exportada pelo Brasil. Isto é gravíssimo.
A outra questão é que na mesma reunião foi apresentado o Malathion, que é pulverizado com fumacê, em que se combate a dengue, mas pode gerar câncer segundo a IARC. Essas aplicações muitas vezes são feitas sem critério, com equipamentos descalibrados e resultam muito ineficientes. Está a epidemia de dengue que o Brasil vive novamente que reforça esses argumentos. Podemos imaginar essa aplicação em uma grande escala, com milhares de pessoas e os impactos que isso pode gerar caso, no futuro, seja comprovado que esse é um produto carcinogênico. Estamos falando de milhões de pessoas, o que torna tudo isso muito grave.

Ministério da Saúde
O próprio Ministério da Saúde tem se posicionado de uma forma muito reativa, realizando poucos diálogos com quem está querendo criticar esses modelos e que busca outras alternativas que respeitem mais os ecossistemas e a saúde da população. Há outras experiências exitosas no combate à dengue que não são focadas na solução química, mas, ao contrário, no investimento em saneamento ambiental, melhorias das condições de vida. Lembro-me quando o ministro Adib Jatene fez uma proposta de controle do Aedes, um dos maiores componentes era o programa de saneamento ambiental. O que aconteceu é que justamente foi cortado o recurso para o saneamento ambiental. No entanto, para a compra de veneno nunca faltou recurso. Não adianta enxugar gelo com relação à saúde da população brasileira.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Fernando Carneiro – Todo esse debate que estamos fazendo é totalmente contra-hegemônico na ciência brasileira. Mais de 90% dos pesquisadores ligados aos agrotóxicos e coisas do gênero estão voltados à maximização do seu uso, e pouca gente está estudando os impactos na saúde e no ambiente. Fizemos esse levantamento por meio da Plataforma Lattes do CNPq e disponibilizamos no Dossiê. Tanto que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC e a Academia Brasileira de Ciência – ABC, em uma carta recente, fizeram uma defesa às tecnologias transgênicas que nós repudiamos da forma que tem sido usada na agricultura, por exemplo. A postura da ABC e SBPC, a meu ver,  é anticientífica, porque coloca a tecnologia como algo sagrado e não abre margens ao contraditório. Eu pergunto: qual é o impacto na saúde do aumento do uso dessas tecnologias na agricultura brasileira? A SBPC e ABC tem tomado posicionamentos frente a imprensa e não há uma consulta ampla as Associações Científicas como a Abrasco e nem mesmo há abertura a questionamentos, nem mesmo para debater o princípio da precaução, o que é reforça o que tenho chamado de postura anticientífica.


O que está por trás disso? O que se pode adiantar, a partir das pesquisas que estão registradas no dossiê, é que há conflitos de interesses. Muitos dos pesquisadores que representam a ABC e a SBPC na CTNBio têm as pesquisas financiadas pelas empresas que se beneficiam do agronegócio, e sabemos todos que na CTNBio não há espaço para discutir conflitos de interesse, mas temos que discutir isso. A ciência deve servir a quem, ao mercado ou a população brasileira? Ou seja, o que o dossiê exibe é que “o Rei está nu” e descreve as relações entre entidades como a Embrapa, que fazem testes de agrotóxicos, com os serviços privados que lucram com o agronegócio, ao mesmo tempo que se disponibiliza uma estrutura pública para isso. O resultado disso tudo é um totalitarismo em que o Mercado dita as normas, o Estado se ausenta e o Congresso dá carta branca. Isso é o que ocorre e daí a importância de o debate acontecer, porque ele grita frente ao silêncio opressivo dos interesses que os grandes grupos querem impor sobre nós.