sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Do baú...(Criado em 2007 e revisado em 2009)



UMA FORMOSA BAÍA DESGOSTOSA

Fazendo fronteira com o Estado da Paraíba, o município de Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, tem vivido um dos seus maiores dramas: a iminente construção de um resort, numa área de 2.500 hectares, à beira-mar, por obra e graça do empresário Stuart Swycher, presidente do grupo inglês Béltico Empreendimentos Turísticos S.A. – que já investe no Estado –, em parceria com o grupo português Espírito Santo – de há anos atuando no Brasil. O projeto, ambicioso, recebeu o apoio da governadora Wilma de Faria, que, no dia 25 de janeiro de 2007, se reuniu com o referido empresário no Parque das Nações, em Lisboa, Portugal.

Na oportunidade, segundo nota divulgada pela Assessoria de Comunicação do Governo do Estado do Rio Grande do Norte, a Governadora ressaltou a importância do turismo sustentável – preocupação louvável que, aparentemente, parece ter encontrado eco no empresário: "Não se convence turista europeu a visitar um solo degradado", teria dito Stuart Swycher, ainda segundo a nota, lembrando que, em geral, o grupo que preside constrói em apenas 7% da área total dos terrenos que adquire. Infelizmente, no caso de Baía Formosa, a degradação do solo já começou. E antes mesmo da construção do resort!

Ocorre que em uma parte da área destinada ao empreendimento encontra-se um secular e bucólico cemitério, um dos cartões postais da cidade, sobretudo por estar localizado sobre uma duna, defronte ao mar, às margens da formosa baía que dá nome ao Município, repleto de bromélias, cactos e cajueiros. No entanto, quando, em 2004, o ex-prefeito Samuel Monteiro da Cruz, amparado pelo voto de sete dos nove vereadores locais, vendeu as terras em questão, a população reagiu, recorrendo à Justiça, que embargou a obra, embora esta mal tivesse sido iniciada. O cemitério, então, tornou-se um "empecilho" para a construção do resort... Quem diria!

Para tentar resolver o imbróglio, uma ordem judicial obrigou o prefeito José Galdino Alves, em sua recente administração (2005-2008), a enviar um projeto de lei à Câmara de Vereadores para que os restos mortais enterrados no cemitério fossem removidos e transferidos para o novo cemitério, na entrada da cidade, aumentando o descontentamento da população. Afinal, a decisão do ex-prefeito Samuel Monteiro da Cruz e dos vereadores que aprovaram a venda do cemitério foi considerada um desrespeito à memória da cidade e à dos seus moradores. Aqui, um parêntese... Gostaria de dizer que decidi escrever este artigo pelo fato de Baía Formosa ser uma antiga conhecida.

Sim, costumo freqüentá-la, desde criança, sendo que, há mais de vinte anos, a minha família possui uma casa na cidade, onde, aliás, há mais de quinze anos, a minha mãe desenvolve um belíssimo trabalho com o artesanato local. Sem contar que foi o meu pai, advogado, quem elaborou a Lei Orgânica do Município, em 1990, bem como os meus irmãos e eu já demos, também, algumas contribuições à cultura local. Além disso, ou seja, afora a minha relação afetiva com o lugar, tenho, ainda, e felizmente, uma consciência patrimonial, adotando, como costume, defender, sempre que possível, a preservação da memória de um povo, qualquer que seja ele.

Desse modo, diante da irreversível construção do resort – apesar do embargo, que, infelizmente, não tenho dúvidas, não vai dar em nada –, é natural e compreensível que eu sinta certo pesar, a exemplo de praticamente toda uma população, sentida e inconformada com a perda de parte da História da cidade e da sua própria. Afinal, a situação é complicada, pois, desde sempre, o cemitério compõe o cenário ao qual estamos tão acostumados, sobretudo quando contemplamos o pôr-do-sol na baía. Agora, com a construção do resort, o que teremos é uma intrusão visual, entre outras, corrompendo a paisagem, bem como a sonegação de um bem natural.

Convenhamos... A venda das terras onde está o antigo cemitério foi de uma insensibilidade tamanha do ex-prefeito Samuel Monteiro da Cruz. E nada justifica o seu gesto. Nem mesmo o fato do cemitério estar, e de há muito, inativo, mal resistindo ao tempo e ao vento, além da erosão, que, também, de há muito, está minando a duna sobre a qual ele foi construído, atingindo muitas das ossadas dos mortos e das suas sepulturas, fazendo-as deslizarem areia abaixo, à espera das ondas que as levem para o fundo do mar. Foi o que, tempos atrás, por exemplo, aconteceu com uma enorme cruz de madeira, feita com duas toras de pau-brasil da mata, que tinha no lugar – a erosão a fez tombar e o mar a levou.

Espero, portanto, que ninguém acuse os que são contra a derrocada do cemitério e a construção do resort de xenofobia. É porque é uma violência! Nada contra ingleses e portugueses. Mesmo porque, no que diz respeito aos portugueses, foram eles, inclusive, que, oficialmente, "acharam" Baía Formosa. A bem da verdade, a questão não é essa, já que, de há muito, muitos dos moradores do lugar se preocupam com a preservação do antigo cemitério. Eu mesma, ao longo dos anos, e por diversas vezes, propus às autoridades competentes construírem um muro de arrimo para protegê-lo das investidas do mar e do vento. Em vão! Infelizmente, nem todos têm consciência patrimonial nem ambiental.

Além disso, um outro aspecto que preocupa a população local e a todos que gostam de Baía Formosa é a construção de edificações sobre as falésias compradas pelos dois grupos empresariais. Ninguém parou para pensar no impacto ambiental que todo esse empreendimento vai provocar? E o Meio Ambiente? Ninguém duvide, ele vai gritar! Bom, o fato é que, quando caminhamos pela baía e chegamos ao cemitério, parece que estamos em uma trama do cineasta italiano Fellini (1920-1993). É surreal! Mas, de certa forma, igualmente benfazejo – quiçá, mágico. Ao mesmo tempo, todas essas sensações são inexprimíveis, inexplicáveis e remontam aos nossos tempos de crianças...

Um outro paradoxo é que, apesar de sanear o nosso olhar, ofertando-nos uma paisagem mais que peculiar, com os barcos – de longe, parecem de brincadeira – ancorados em suas águas, cujo movimento transforma o rumor das suas ondas em uma melodiosa e harmônica sinfonia, a baía – a única existente no Rio Grande do Norte – é a fiel depositária dos esgotos de Baía Formosa, que não dispõe de saneamento básico – uma triste ironia! – e vive um esgotamento sanitário, segundo a Confederação Nacional de Municípios. Falando nisso, será que os proprietários do futuro resort sabem disso? Sabem que todo o esgoto da cidade é depositado nas águas da baía?

Afinal, não são somente solos degradados que espantam turistas europeus, como disse o dublê de ambientalista Stuart Swycher à governadora Wilma de Faria, mas, igualmente – imagino –, as poluições, sobretudo as das águas. No caso, as da baía. O fato é que na área onde os empresários pretendem investir os seus euros – quiçá, dólares –, o banho de mar, em função da poluição da baía, é considerado um dos mais impróprios. E não somente pelos esgotos que deságuam na baía a céu aberto, aos olhos de todos, vergonhosamente, mas, também, pelo lixo – e que lixo! – que, aliás, os próprios moradores insistem em jogar nas areias e nas águas.

Isso sem contar que, por terminar de acabar com o cemitério, ou melhor, por sepultar, de vez, "o cemitério dos pescadores", como muitos ainda têm o costume de chamá-lo, os proprietários do mais polêmico empreendimento hoteleiro já feito em Baía Formosa, quiçá, no Rio Grande do Norte – e antes mesmo da sua construção – não se espantem se, um dia, hóspedes ou visitantes desavisados esbarrarem em almas penadas a vagar pelo lugar, portando bonés, placas e faixas com os dizeres: Aqui, jaz um cemitério! E, aí, o que deveria ser um charmoso, atraente e estrategicamente bem localizado empreendimento hoteleiro pode vir a se transformar num resort fantasma banhado por um esgoto a céu aberto...


UM POUCO DE HISTÓRIA...

"Com os papagaios aprende-se que muitos são os que falam,
mas poucos os que sabem o que dizem...".
José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta
Terra Papagalli

Os índios Potiguaras chamavam o lugar de Aratipicaba, que, em Tupy, significa Bebedouro dos Papagaios, ou, ainda, Tanque dos Papagaios. Segundo a tradição oral, tal batismo deu-se porque os papagaios costumavam beber a água doce dos olheiros das praias da região, sobretudo na praia de Bacopari. O curioso é que, nos dicionários de Tupy consultados, encontramos dois significados para o nome Bacopari: depósito de água – seria em função dos olheiros? – e fruto cercado de pontas e asperezas, já que, de fato, existe uma árvore e uma fruta com esse nome na Mata Atlântica. No caso de Baía Formosa, valem os dois significados.

Sim, da mesma forma que os olheiros de água doce existiam em abundância na tal praia, o formato da outrora floresta era o de uma estrela de cinco pontas. Assim, as extremidades da praia seriam duas das cinco pontas da estrela. Daí a floresta encontrada pelos seus primeiros habitantes brancos ter recebido o nome de Mata Estrela. – hoje, infelizmente, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, com apenas 2.039,93 hectares (1.888,78 de floresta; 81,64 de dunas e 69,73 de lagoas, em número de dezenove), cerca de insignificantes 3% do que ela já foi um dia.

Mesmo assim, a Mata Estrela é, ainda, a maior reserva de Mata Atlântica sobre dunas do Rio Grande do Norte. E isso só foi possível porque, em 1990, através de uma Portaria Estadual, a floresta foi tombada e, em 2000, transformada, por Decreto Federal, em Reserva Particular do Patrimônio Natural - RPPN, já que não deixa de ser uma propriedade privada, pertencente à Destilaria Baía Formosa S/A, responsável pela atividade econômica mais rentável do Município, que é a monocultura da cana-de-açúcar, seguida da pesca e da produção agrícola.

No séc. XVI, contudo, o lugar já recebia a visita de naus portuguesas e francesas, sendo apenas em 1612 que os colonizadores lusitanos denominaram mais um dos seus "achados" de Bahia Formosa, que, pouco mais de dois séculos depois, quando deram por encerrada a extração da mais cobiçada árvore da época, o Pau-Brasil, transformou-se em zona de pesca. Em 1892, tornou-se Distrito de Canguaretama; em 1953, Vila. Porém, a data mais comemorada pelos formosenses é 31 de dezembro, já que, nesse mesmo dia, no ano de 1958, Baía Formosa foi elevada à condição de município.

E como fazer para chegar nesse cantinho aparentemente esquecido do Rio Grande do Norte, antes da chegada, obviamente, de novos portugueses – historicamente, sempre aliados dos ingleses –, que insistem no mesmo erro dos seus antepassados, que se achavam os "donos" da Terra dos Papagaios, primeiro nome dado ao, hoje, Brasil? Vindo pelo asfalto, de Natal ou de João Pessoa, pela BR 101, seguindo, depois, pela RN 062; pela praia, vindo de Barra de Cunhaú, no Rio Grande do Norte, ou de Mataraca, na Paraíba, de buggy ou de jipe; pelo mar, de barco ou de navio. E que mar!

Um mar que encanta moradores do Município – cerca de 8.000 habitantes, segundo os cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, realizados em 2001, mas, também, todos aqueles que visitam o lugar, fazendo a delícia dos surfistas, que consideram o Pontal um dos melhores "picos" do Nordeste, lembrando que um dos atrativos de Baía Formosa é o povoado de Sagi. O fato é que somente conhecemos as belezas de Baía Formosa se a visitarmos. Enfim, Baía Formosa, pelo menos, para mim, é a dona das praias mais charmosas do Rio Grande do Norte. Tenho dito.


Nathalie Bernardo da Câmara
nathaliebernardo@hotmail.com

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

MOMO E NOËL


"Gula pode ser fuga do sexo e da vida...".
Rosemeire Zago
Sete pecados capitais


O carnaval, enfim, chega ao fim! Não nego que, em tempos remotos, já gostei do evento: pulava, brincava e até arriscava alguns passos de frevo – quem diria! Porém, por motivos diversos, aos poucos fui desgostando. Um desses motivos foi a intolerância que, ao longo do tempo, adquiri a ruídos e aglomerações. Três, para mim, por exemplo, já é uma assembléia.

Anda-me cansando, inclusive, apesar da familiaridade, o rumor do mar. As suas ondas, então, apesar de exemplo dialético, tornaram-se estressante em seu vai e vem constante! Afinal, não sou canguru para viver de pulo em pulo. É preferível o balanço tranqüilo de uma rede, contemplando, de longe, o horizonte... Mas, como eu estava dizendo, o carnaval, enfim, chega ao fim.

Acho estranha a rigidez de certas pessoas durante todo o ano e, de repente, é só falar em carnaval que essas pessoas se transformam e, aí, o excesso entorna, a exemplo do que disse Freud (1856-1939), neurologista austríaco, fundador da psicanálise: "Uma festa é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição". Eu até entendo, mas, deixem-me de fora desse excesso.

Ao mesmo tempo, em sua tese Festa à brasileira – Sentidos do festejar no país que "não é sério", a antropóloga pernambucana Rita Amaral diz que "divertimento é coisa séria e pode ser entendido até mesmo como a segunda finalidade do trabalho, vindo logo após a necessidade de sobrevivência...". Tudo bem! Só que sem excessos, já que, convenhamos, destempero causa indigestão.

Indigestão causa, também, ter de praticamente todos os dias ouvir os excessos de determinados jornalistas noticiando fatos banais, que eles conferem uma importância ilusória, transformando-os em algo sensacionalista. Nem meus olhos nem ouvidos são pinicos! O pior é que, quando a gente não faz parte da média – daí a mediocridade –, é segregada; se não pensa igual, é estranha.

Bom! Vejamos... O pai do carnaval é o rei Momo; o do Natal é o dito bom velhinho Noël. Semelhanças? O universo de ambos, em seu paganismo, não é muito diferente. São fantasias, tons os mais diversos. Um universo multicor, eu diria. Enquanto Momo tem as suas passistas e mestres-sala, Noël tem duendes e congêneres; enquanto Momo tem carros alegóricos, Noël tem um trenó puxado por renas.

E não pára por aí! Enquanto Momo preza por figurinos suntuosos, lantejoulas e demais acessórios luminosos, Noël e seus ajudantes têm figurinos para lá de excêntricos. Usam até sininhos! Apreciam bolinhas reluzentes em pinheiros e lâmpadas que piscam. Queiram me perdoar, mas acho tudo tão brega, kitsch, démodé...

Além disso, uma outra semelhança que identifico entre Momo e Noël é a obesidade. São sedentários e glutões – isso a gente não pode negar. O primeiro, adora uma farra! Comidas pesadas e muita bebida alcoólica; o segundo, coitado, fruto da coca-cola, cada ano mais inchado, garoto-propaganda que sempre foi do refrigerante norte-americano. Gente! O movimento barroco já passou. Pior!

Em um tempo onde os médicos alertam contra os perigos da obesidade, Momo e Noël bem que poderiam passar um tempo em um spa. Não que eles se tornem anoxéricos – é doentio –, mas que percam alguns quilinhos, dando um bom exemplo, sobretudo as crianças. É deprimente vê-los tão gordos, criações de um mundo de fantasia, que sempre passa, ao contrário da realidade...


Nathalie Bernardo da Câmara
nathaliebernardo@hotmail.com
Brasília (DF) - Brasil, 25 de fevereiro de 2009.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Do baú...
(Criado em 2006 e revisado em 2009)
AS BRUXAS DE SALEM

“A liberdade não é a tentação do homem,
mas a sua maior distinção”.
Eugen DrewermannO Testamento de um herético
ou a última prece de Giordano Bruno



De qual moral se reveste o papa Bento XVI para condenar as guerras santas, desencadeadas pelo islamismo – como ele o fez, no dia 12 de setembro, em aula magna realizada na Universidade de Regensburg, na Alemanha – se, ainda na Idade Média, no séc. XI, em 1095, o papa Urbano II idealizou e instituiu as Cruzadas, expedições de caráter militar, organizadas pela Igreja Católica, que, aliás, duraram mais de dois séculos, cujo objetivo era o de, supostamente, libertar a Terra Santa – Jerusalém – dos mulçumanos?

De qual moral, eu perguntaria, ainda, se reveste o papa Bento XVI para condenar as guerras santas, desencadeadas pelo islamismo – segunda religião do mundo em número de adeptos – se, no ano de 1184, em Verona, na Itália, o papa Lúcio III deu início à chamada Santa Inquisição, embora a sua criação oficial e regulamentação, com o nome de Tribunal do Santo Ofício, tenha ocorrido, apenas, em 1231. E pela suma proteção do então papa Gregório IX (1170-1241), prolongando-se, diga-se de passagem, até 1859, com o único objetivo de investigar e punir atos – a tal da heresia – considerados crimes contra a fé católica?

Segundo o Dicionário Histórico de Religiões, de Antonio Carlos do Amaral Azevedo, em co-autoria com Paulo Geiger, publicado pela Editora Nova Fronteira, em 2002, heresia é um substantivo feminino – hairesis – originário do grego, que significa escolha, opção. Para o Dictionnaire Encyclopédique Le Petit Larousse, publicado em 1994, o herege é aquele que é contrário à fé católica e que, por isso, é condenado. Mas, será que por pensar ou agir diferente de uma dada doutrina, alguém não tem o direito de viver? Parece que não... Vai ver, o pecado, para a Igreja Católica, residiria, então, no simples fato de alguém não ser católico.

O importante, contudo, é ressaltar que, ao longo dos séculos, a Inquisição teve vários nomes e, apesar do seu objetivo permanecer o mesmo, os métodos de tortura dos inquisidores se tornaram, ainda, mais requintados e sádicos. Foi Inquisição Medieval, a de Gregório IX; Inquisição Espanhola, inaugurada por Sisto IV (1414-1484), em 1478... Em 1542, sob o foco da Reforma (séc. XVI), liderada por Martinho Lutero (1483-1546), o papa Paulo III foi forçado a apresentar um inquérito oficial do Vaticano sobre os excessos cometidos pelas duas últimas, criando, contraditoriamente, a Congregação de Inquisição.

Mais um nome e, como se não bastasse, o papa Pio X (1835-1914), no séc. XX, em 1908, “inovou”: reorganizou a Inquisição, criando a Congregação do Santo Ofício. O papa Paulo VI (1897-1978), por sua vez, mascarando as intenções do Vaticano, instituiu, em 1965, a Congregação para a Doutrina da Fé, considerada o quarto e atual estágio da Inquisição. E quem foi – eu perguntaria – o prefeito desta Congregação, de 1981 a 2004, durante vinte e três anos? Ninguém menos que o cardeal Joseph Ratzinger, arcebispo de Munique, na Alemanha, que teve a sua indicação para o cargo aprovada por João Paulo II (1920-2005), hoje, papa Bento XVI...

Falando em cargos, Joseph Ratzinger, ao longo de mais de vinte anos, chegou, inclusive, a acumular alguns. Ou seja, ainda em 1981, João Paulo II nomeou-o presidente da Comissão Teológica Internacional, cujo objetivo continua sendo o de subjugar o mundo à autoridade papal, além de presidente da Pontifícia Comissão Bíblica – durante o seu mandato, Joseph Ratzinger foi o encarregado de elaborar o atual Catecismo da Igreja Católica. Em 2000, sempre protegido por João Paulo II, foi eleito decano do Colégio Cardinalício, ao qual pertencem os cardeais da Ordem dos Bispos.

Eleito Papa – o oitavo de origem alemã e o 265º da História – no dia 19 de abril de 2005, Joseph Ratzinger dividiu o mundo, que, desde então, continua dividido, já que, por toda parte, o curriculum vitae do papa Bento XVI causa polêmicas e divergências de opiniões. Vejamos... Nascido no dia 16 de abril de 1927 – o jovem é ariano –, em Marktl am Inn, na Alemanha, Joseph Ratzinger entrou para o seminário de Traunstein aos doze anos de idade, em 1939. Durante a Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945), sendo o alistamento militar compulsório na Alemanha, ele foi parar nas fileiras da milícia de Hitler (1889-1945).

Segundo alguns historiadores – outros questionam –, por não simpatizar com as idéias nazistas do Fürer, Joseph Ratzinger teria desertado, mas, mesmo assim, com a ocupação da Alemanha, cuja data oficial é a do dia 8 de maio de 1945, terminou preso pelo exército norte-americano. Liberto, voltou para a Alemanha e retornou ao seminário de Traunstein, sendo ordenado padre em 1951. Dois anos depois, já professor, doutorou-se em teologia e, de 1962 a 1965, foi o consultor teológico do cardeal Joseph Frings, arcebispo de Colônia, na Alemanha.

A partir de 1968, Ratzinger passou a combater o marxismo e o ateísmo. Pudera! Quem mandou Karl Marx (1818-1883) dizer que a religião é o ópio do povo? Até então, Ratzinger era reconhecido como um católico progressista... O fato é que, em 1977, com o prestígio em alta no Vaticano, por seus ataques ostensivos ao comunismo, ele foi nomeado arcebispo de München e Freising pelo papa Paulo VI (1897-1978). Em seguida, nomeado cardeal. O resto? O resto a gente já sabe. Porém, embora autor de vários livros, tendo recebido vários doutoramentos honoris causa, o quê dizer das posturas conservadoras do atual sumo pontífice?

O quê dizer do seu reacionarismo se, apesar de ser considerado o maior teólogo católico vivo, culto, poliglota – fala dez línguas –, exímio pianista e admirador de Beethoven (1770-1827), Joseph Ratzinger foi uma espécie de braço direito, ou melhor, mentor intelectual do conservador João Paulo II, combatendo, inclusive, às idéias da Teologia da Libertação e de setores progressistas da Igreja Católica no mundo inteiro? Falando nisso, alguém sabe que foi Joseph Ratzinger que, em 1985, condenou o frade franciscano e teólogo brasileiro Leonardo Boff ao silêncio obsequioso?
Sim! E apenas porque um dos livros de Boff, Igreja: carisma e poder, que ele escreveu em 1982 e publicou em 1984, denunciava a opressão da mulher e a concentração do poder nas mãos do clero, além de defender os direitos humanos. Só que, por isso, Boff desagradou o Vaticano e recebeu um processo judicial junto à Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo então cardeal Joseph Ratzinger. No Palácio do Santo Ofício, onde, em tempos remotos, se praticavam torturas – autorizadas pelo papa Inocêncio IV (?-1254), o teólogo brasileiro foi interrogado durante horas pelo atual soberano do Vaticano.

O curioso é que Boff sentou-se na mesma cadeira onde, em outras circunstâncias, sentaram-se os italianos Galileu Galilei (1564-1642), aquele que, matemático e astrônomo, inventou de dizer que a Terra não é o centro do Universo – pagou pela língua! –, e o filósofo Giordano Bruno (1548-1600), queimado vivo na fogueira da Inquisição... Segundo Boff, os métodos adotados pela atual Inquisição mudaram. Hoje, se tortura apenas a psique do acusado, não mais o seu corpo... Bom! O fato é que, depois do interrogatório, Boff foi condenado ao silêncio obsequioso.

Segundo ele, “uma espécie de silêncio penitencial”, sendo, por isso, deposto da cátedra de teologia sistemática e ecumênica, que ocupava no Brasil, e proibido de escrever e publicar... O início da via-crúcis de Boff, contudo, remonta ao ano de 1972, quando ele publicou o livro Jesus Cristo Libertador. Desde então, cada livro seu era objeto de análise dos inquisidores da Congregação para a Doutrina da Fé. Outra curiosidade é que, fins dos anos sessenta, quando fazia doutorado, em uma universidade alemã, Leonardo Boff foi aluno de..., de? Joseph Ratzinger. Quanta coincidência!

A verdade é que, empolgando-se com a tese de Boff, Ratzinger chegou, inclusive, a contatar uma editora para publicá-la, além de ajudar o brasileiro com dinheiro para que o brasileiro pudesse sobreviver. À época, ainda segundo Boff, Ratzinger “fazia críticas ao centralismo romano e pedia mais liberdade para a teologia poder dialogar, sem constrangimentos, com as tendências da cultura contemporânea”... Enfim! O que se sabe é que, pressionado pela opinião pública mundial, o Vaticano logo suspendeu a sentença imputada a Boff e, em 1986, o teólogo já havia retomado algumas das suas atividades religiosas.

Porém, durante a Eco-92, no Rio de Janeiro, Boff foi novamente repreendido, devendo, mais uma vez, se submeter ao silêncio obsequioso, além de ter de deixar o Brasil e a América Latina e escolher um convento, nas Filipinas ou na Coréia, onde deveria ficar encerrado, sem nem mesmo pensar! Desta vez, contudo, visto ser irredutível a posição do Vaticano, o teólogo brasileiro reagiu. Renunciou ao ministério sacerdotal e à Ordem Franciscana, se auto promovendo a leigo. Foi isso o que aconteceu... A conclusão de Leonardo Boff sobre a Igreja Católica? “A Igreja mente, é corrupta, cruel e sem piedade!”.

E a História é realmente curiosa! O mundo, por sua vez, dá voltas... Afinal, para quem já disse – Joseph Ratzinger –, que, “em uma sociedade, quando o respeito vem violado, algo de essencial se perde”, soa extremamente estranho, agora, na condição de papa, ele, publicamente, querer condenar as guerras considerada santas dos muçulmanos, alegando que elas não atendem a vontade de Deus. Quer dizer, então, que as Cruzadas e a Inquisição, em todas as suas malditas e desprezíveis versões, atenderam a vontade de quem? Sim, porque os mulçumanos também cultuam Deus!

Ou existiria mais de um Deus? Se não, se o Deus é só um, será que apenas as guerras ditas santas da Igreja Católica são as únicas legítimas e dignas do seu reconhecimento? A bem da verdade, imagino que, para quem tem fé e acredita em um ser superior, o Deus ao qual o papa Bento XVI se referiu, na Universidade de Regensburg, na Alemanha, deve ser o mesmo cultuado por todas as religiões, seja para o catolicismo, islamismo, protestantismo, judaísmo, hinduísmo, espiritismo e, por aí, vai... Sinceramente, o atual príncipe dos apóstolos não mede a arrogância nem a pretensão dos seus atos e palavras!

Sem falar na imoralidade de uma suposta superioridade que ele confere ao catolicismo, em detrimento, no caso, do islamismo, mas que pode, também, pelo visto, estender-se as demais religiões. É como se a verdade da Igreja Católica fosse única e as outras espúrias. Enfim! Não acredito que nenhuma guerra santa seja, de fato, santa. Até mesmo porque, no frigir dos ovos, santidade não existe. Nem para os seres humanos nem para as suas ações. Não acredito, igualmente, que o leitmotiv de uma guerra dita santa seja, de fato, a fé, mas, sim, a disputa de poder.

No caso, a busca de um poder que garanta a uma dada religião a supremacia perante as demais, nem que, para isso, sejam utilizados recursos ilícitos, criminosos e, quando necessário, coercitivos, coagindo autoridades políticas do Estado, a fim de obterem algum tipo de vantagem, a favor de interesses escusos. Os dogmas da Igreja Católica, por exemplo! Todos criados não por uma vontade dita divina, mas por vontades humanas que, através desses dogmas, impostos ao povo como verdades incontestáveis, pretendiam apenas subjugá-lo e dominá-lo.

Um desses dogmas, quiçá o mais eficiente já instituído pela Igreja Católica, é o da Santíssima Trindade, desmistificado, aliás, por historiadores do mundo inteiro, como é o caso do escocês Laurence Gardner, em seu polêmico livro A Linhagem do Santo Graal – A Verdadeira história do casamento de Maria Madalena e Jesus Cristo, publicado pela Madras Editora, em 2004. Para Gardner, quando dos debates para a criação do dogma da Santíssima Trindade, em 325 d.C., alguns bispos reagiram. “O porta-voz líder dessa facção era um idoso sacerdote líbio de Alexandria, chamado Ário”.

Só que quando Ário se levantou para contestar a falta de fundamentação do dogma, “Nicolas de Mira desferiu-lhe um soco no rosto, acabando com a oposição” ao credo niceno da suposta Trindade de Deus, “estabelecido como base para a nova, reformada, fé cristã ortodoxa”, enquanto os seguidores de Ário foram banidos... Ou seja, a criação do dogma da Santíssima Trindade foi, simplesmente, um ato de má fé de Nicolas de Mira e dos seus pares. Sei não, mas como pode ser possível uma ou mais fraudes serem os eixos de sustentação de uma religião ou de não importa qual crença?

Infelizmente, tanto pode que, até hoje, a galopes de tempos remotos, a presunção e o descaramento permanecem como verdades absolutas? Sem falar na dimensão exacerbada que os eclesiásticos sempre deram ao maniqueísmo, distorcendo tudo o que se refere ao que consideram bem e mal. Para Giordano Bruno, padre excomungado por suas idéias, “a diferença entre o bem e o mal se tornou caduca”, sendo, o bem e o mal, “categorias, como o calor e o frio, o doce e o amargo. Cada uma delas tem o seu justo lugar em justas proporções”.

Mas, o mais interessante é o questionamento feito por Giordano Bruno, de maneira lúcida, pertinente e, sobretudo, lógica, ao dogma da Santíssima Trindade. Não tendo mais nada a perder, a não ser a sua própria vida, encerrado que estava em uma cela, à espera do fim do seu martírio, o autor do clássico Heróicos furores, uma elegia ao amor, questionou: “Como compreender que um filho possa ser concebido sem mulher, unicamente pelo pai, e como o pai penetra o seu filho para produzir com ele um espírito por vivificação?”. Não é de se estranhar que ele tenha sido queimado vivo...

Em outra passagem do seu suposto testamento, Giordano Bruno teria dito que “a ignorância é a mais bela ciência do mundo” e que a Igreja, “uma instituição fúnebre, brutaliza o mundo para melhor controlá-lo”... Ora, os inquisidores só podiam, mesmo, viver desesperados, com receio de que a sua Igreja perdesse influência e poder, já que eles chegaram ao extremo de considerar crime contra a fé o fato, em um exemplo bem simplista, de uma mulher fazer chás com folhas de plantas aromáticas ou mesmo com folhas de alguma erva com poder terapêutico, acusando-a, por esse bucólico gesto, de bruxaria.

Negavam-lhe, então, por isso, o direito à defesa, submetendo-a a torturas – não eram raros os casos de estupros – para, depois, enforcá-la, embora, na maioria das vezes, o costume era o de jogá-la viva à fogueira, queimando-a por inteiro... Eles só deviam, mesmo, ser muito doidos! E a Igreja Católica, como bem o disse Bruno, cujo poder era aparente e frágil, não hesitou em recorrer à brutalidade e ao derramamento do sangue de muitos inocentes para se manter no poder... Infelizmente, essa era a filosofia, ou melhor, o dia a dia da Inquisição, desde os tempos mais remotos.

Cultuar deuses pagãos? Nem pensar! Falar em Grande Deusa Mãe ou Mãe Terra? No mínimo valia uma acusação por heresia ou sabe-se lá o quê! A bem da verdade, a dita Santa Inquisição, que de santa não tinha nada, significava “questionar judicialmente aqueles que, de uma forma ou de outra, se opõem aos preceitos da Igreja Católica”. Nossa! Quanta estupidez! E eles, ainda, se diziam cristãos... Sei não, mas, diante do sadismo dos inquisidores – um bando de celerados ensandecidos (alguém duvida?) –, a psicopatia de Hitler pode até passar como uma discreta histeria.

E diante da carnificina promovida pela dupla Cruzada e Inquisição – centenas de milhões de mortos –, o triste legado do Nazismo, que foi o holocausto – cerca de seis milhões de óbitos – parece brincadeira de criança... Finalizo, portanto, o meu registro, baseado em textos historicamente comprovados, fazendo minhas as palavras de Giordano Bruno: “Na boca da Igreja, Deus nunca teve outro sentido que o da dominação e o do poder”. Enfim! Se “toda violência é um defeito do espírito”, como sentenciou o filósofo, quantos espíritos tortos teremos, ainda, de suportar?


Nathalie Bernardo da Câmaranathaliebernardo@hotmail.com
Brasília (DF) - Brasil, 22 de setembro de 2006
Brasília (DF) - Brasil, 20 de fevereiro de 2009
FELICIDADE...

“Até os urubus são belos
no largo círculo dos dias sossegados...”.
Cecília Meireles (1901-1964)
Os Dias felizes

Sou leitora da revista Vida Simples, publicada, mensalmente, pela Editora Abril. Outro dia, recebi um e-mail da redação do periódico, solicitando a minha participação em “uma grande reportagem sobre Felicidade, para a edição de abril”... Enviaram-me, portanto, uma espécie de questionário, com a seguinte pergunta: “O que faz você feliz atualmente?”.

E, aí, seguem-se as questões: Padrão de vida econômico; Saúde; Acesso à cultura; Educação; Bem-estar psicológico. Detalhe... Para cada questão, as mesmas alternativas de respostas, ou seja: Essencial ( ); importante ( ); Razoável ( ) ou indiferente ( ). Confesso que é praticamente impossível responder a um tema tão complexo de maneira, digamos, tão simplista.

Eu não ousaria. Podia parecer que estava marcando questões de um vestibular qualquer, que considero extremamente subjetivo, sobre um tema, decerto rico, como o é o da felicidade, que, aliás, já inspirou poetas e demais artistas do mundo inteiro. Além disso, de um tempo para cá, não me vejo como uma pessoa indicada para tratar desse assunto, porque não tenho tido sossego...

Engraçado que muitas pessoas costumam dizer que ter saúde é o que importa na vida; algumas, dizem que o que existem são momentos felizes; outras, por sua vez, defendem o sentimentalismo cristão de que o sofrimento engrandece a alma... Que alma? Só se for a das penadas! Para mim, contudo, já que nasci para ser feliz, toda a nossa existência deveria ser repleta de felicidade.

Em minha opinião, aliás, poucas coisas são necessárias para fazer alguém feliz: amar e ser correspondido, mantendo uma relação harmoniosa; comer e beber bem e exercer um ofício profissional satisfatório – a realização pessoal em todos os sentidos. Isso, sim, em meu entender, é a felicidade. Quanto à saúde, ela também é importante, mas é proporcional ao grau da nossa felicidade.

O difícil é ter essas poucas coisas ao mesmo tempo. Talvez, quem sabe, se não fôssemos tão arrogantes e mais pacientes, acho que poderíamos, sim, alcançá-las, alcançado, por extensão, a tão almejada felicidade. Sim, a ponto de, no regaço do sossego, como sentenciou a poetisa, vermos beleza não somente nos beija-flores, mas, também, nos urubus. Quem diria!

Nathalie Bernardo da Câmara
nathaliebernardo@hotmail.com
Brasília (DF) - Brasil, 22 de fevereiro de 2009.