domingo, 18 de julho de 2021

E LÁ SE FOI O PASSARINHO QUE SÓ QUERIA SER LIVRE...


 










“Quem tem alma de pássaro não se aquieta em terra firme”

– título de uma crônica da jornalista Karen Curi, Revista Bula (24/01/2015)


Por Nathalie Bernardo da Câmara

Estação das Chuvas


Há um mês, dei por ensaiadas algumas linhas para tecer uma prosa tocada pelo pesar da fatídica notícia do falecimento do jornalista potiguar Jailton Augusto Guedes da Fonseca, primo paterno por quem eu sentia um enorme bem-querer, que, de mala e cuia, “bateu as asas” e partiu, dando por encerrada a sua jornada cá por estas bandas – partida essa que nos privou nem que fosse de uma derradeira troca de ideias, quiçá sobre a pandemia, que, neste início de século, surpreendeu o mundo, ou sobre qualquer outro tema, apenas acentuando a minha sensação de que o tempo também “voa”...

 

Fruto do enlace do comerciário José Guedes da Fonseca (1918 - 1982) e da professora Joanita Costa da Fonseca (1915 - 1988), Jailton foi o primogênito de uma prole de oito filhos, desabrochando num já acalorado fim de primavera, que lhe abria a cortina da vida no dia 02 de dezembro de 1942. Profissionalmente, ao longo da sua carreira, ele atuou como redator, pesquisador, planejador visual e foi responsável por reformas gráficas de muitos periódicos – jornais e revistas – locais, nacionais e, até mesmo, fora do Brasil.

 

Quanto ao nosso convívio... Evidentemente que Jailton já sabia da minha existência desde o meu nascimento, mas foi apenas depois que me tornei “gente grande”, já formada em jornalismo e provavelmente “esbarrando-nos” na casa da minha avó paterna, a inesquecível dona Nanoca (1910 - 2003), que morava na secular Quintino Bocaíuva, às margens do Potengi, de onde ela emanava poesia para toda cidade, e era tia dele por parte de pai, que ficamos amigos. Revolvendo, portanto, as malhas do tempo e já versando sobre a notícia que, em junho, me surpreendera, recordo-me que, vez por outra, encontrava o meu primo num pequeno hotel onde ele residia, nas imediações da Igreja do Galo, em Natal (RN).

 

Embalados por temas os mais diversos após deixarmos a sua morada, como diriam os portugueses, flanávamos pelas históricas ruas e ruelas da Cidade Alta, muitas vezes rindo à beça quando um dos dois falava algo hilário – uma singularidade à parte, as gargalhadas de Jailton eram vibrantes, calorosas, marcantes. É, dava-nos bem, compartilhando certa cumplicidade. Bom de papo e piadista, quando a “pauta”, então, era um conhecido, alguém da nossa entourage ou algum parente nosso, ele, com o seu costumeiro boné, tinha o hábito de iniciar as suas falas dizendo: — Porque fulano...

 

No intuito de interrompê-lo, pois só aprecio o fuxico artesanal, eu enunciava: — Jailton...

 

Dependendo de quem se tratava, o repórter “de plantão” interrompia-me e, bem-humorado, ignorando o tom crítico da minha chamada, prosseguia com a sua resenha. E aí, ai do tal fulano! Obviamente que eu ouvia com particular curiosidade o que o meu interlocutor tinha a narrar, ou seja, o “fato”, e ele era bom nisso, a ponto de, algumas vezes, instigar-me, comentando sobre a “informação” que me fora passada, às vezes concluindo a “matéria” ali mesmo, mas não sem antes vislumbrar um sorriso traquina em seu semblante.

 

Uma característica que lhe era intrínseca, o gozo em viver tornou-o, na juventude, um dos baluartes do bloco ‘Cacareco’, cuja extinção não apagou a chama do carnavalesco nato, que, ao longo do tempo, continuou a brincar noutros carnavais, deleitando-se ao “bater as suas asas”. E sempre em harmonia. Tanto que, certa vez – não me recordo o ano –, ele praticamente “intimou-me” para um esquenta na casa da então companheira antes de sairmos para a folia na banda ‘Antigos Carnavais’, que, à época, estava em sua 5ª “edição” (guardo a camiseta até hoje) e que, segundo o historiador e folclorista potiguar Gutemberg Costa, surgiu de um movimento cultural homônimo, criado em 2002.

 

Então, apesar de pensar em declinar do convite, posto que o meu “espírito” carnavalesco de há muito esvaíra-se, findei por aceitá-lo, mas apenas por apreciar a companhia festiva do anfitrião, indo, assim, ao esquenta. De lá, seguimos para o Beco da Lama, onde reinava o clima alegre dos foliões com as suas fantasias e magia, tal qual a natureza do meu primo, embora, no seu caso, eu acrescentaria uma pitada de nostalgia – quem, em algum momento, não é por ela afetado? –, deixando-o, a seu modo, acabrunhado, às voltas ora com as suas reminiscências, ora com episódios recentes, presentes.

 

Nesse ínterim, um encontro aqui, outro acolá – a vida seguindo o seu curso, o tempo a passar... Voilà ele aí novamente, o tempo! Ora lento, ora veloz; ora querido, ora temido...

 

E eis que irrompe o dia 18 de junho de 2021. Na madrugada fria e solerte de uma sexta-feira de outono – estação na qual as folhas têm o “péssimo” hábito de caírem e após meses “engaiolado” num leito de hospital –, o já alquebrado passarinho não resistiu às complicações cardiológicas, pulmonares e renais que lhe fecharam a cortina da vida: ele, então, sem confete e serpentina, alçou um mudo, solitário e terminal voo, embora legando um cadinho seu em cada ato dos autos que “interpretou” ao longo da sua existência, mas deixando órfãos os seus quatro filhotes e todos os que, lamentando a sua partida, o amavam, inclusive eu, que, agora, lhe presto esta saudosa e afetuosa homenagem.


Link para o jornal Tribuna do Norte, onde a prosa também foi publicada (sem ilustração): 

http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/e-la-se-foi-o-passarinho-que-sa-queria-ser-livre/515823?s=08