segunda-feira, 7 de setembro de 2015

AS VEIAS ABERTAS DO ORIENTE MÉDIO (atualizado)

Naufrágio da humanidade – (REUTERS/Nilüfer Demir/DHA), 2/9/2015

 “Naquele momento, a única coisa que eu poderia fazer era tornar seu clamor ouvido. Pensei que poderia fazer isso ao acionar a minha câmera e fazer a sua foto...”.

Nilüfer Demir
Fotógrafa turca 



 “Se essa imagem extraordinariamente poderosa de uma criança síria morta em uma praia não mudar a atitude da Europa com os refugiados, o que irá?”.

The Independent (3/9/2015)


Na manhã da quarta-feira, 2, de plantão na praia turca de Ali Hoca Burnu, a fotógrafa Nilüfer Demir, da agência DHA, depara-se com uma cena perturbadora: um garoto jaz de bruços à beira-mar... Num primeiro momento, por tratar-se de uma criança, a fotógrafa, em choque, hesita, mas logo recompõe-se, fazendo aquelas que, não demoraria muito, iriam transformar-se numas das mais emblemáticas imagens dos últimos tempos e que, viralizadas no universo aparentemente sem fronteiras da internet, assumiriam o papel de porta-vozes de um drama que, por suas avarias, já ceifou a vida de milhares de migrantes. E foi assim que, da noite para o dia, após naufragar durante uma travessia em águas mediterrâneas, da Turquia para a Grécia, um belo menininho curdo-sírio, o refugiado Alan Kurdi, de apenas três anos de idade, tornou-se ícone mundial da crise migratória na Europa – quiçá, um divisor de águas...


Êxodo



  
 “Eu gostaria realmente que ela (a fotografia que ilustra a abertura desta postagem) pudesse ajudar a mudar o curso dos acontecimentos...”.

Nilüfer Demir


2011. Os Kurdi moravam em Damasco quando do início dos conflitos na Síria. Com o agravamento da violência, a família muda-se para Makharij, o seu vilarejo-natal, a 25 quilômetros de Kobane, cidade portuária curdo-síria na fronteira com a Turquia, país que é escala praticamente obrigatória de migrantes sírios para a Europa – a cidade de Izmir, por exemplo, na costa mediterrânea da Turquia, vem sendo chamada de ‘cidade do colete salva-vidas’. Então... Quando, em 2014, Kobane transforma-se em foco dos confrontos entre as milícias curdas e o grupo jihadista Estado islâmico (EI), que, oportunamente, se aproveita da guerra civil no país, os Kurdi fogem para a Turquia, que, embora não ofereça cidadania aos refugiados sírios, lhes garante abrigo temporário. Ocorre que, sem passaportes, os Kurdi ficam impossibilitados de obter visto de residência por um ano e a liberdade de ir e vir no país, devendo, no caso, registrarem-se em um campo de refugiados, nele permanecendo – coisa que não o fazem. “Irregulares”, não podem obter visto de saída da Turquia nem pedir asilo noutro país porque não têm visto de saída da Síria – um novelo que só se emaranha cada vez mais.


Em tempo: durante anos, a Síria negou cidadania à população de origem curda, considerada apátrida pelas autoridades. Em 2011, um decreto autorizou que alguns deles entrassem com pedidos de cidadania, mas outros permaneceram sem o direito e terceiros foram forçados a fugir do país antes mesmo que pudessem dar entrada no processo – caso da família de Alan...


De qualquer modo, em Istambul, eles não viam a hora de deixar a Turquia e, no caso, após outra escala na Grécia, porta de entrada da União Europeia, seguir rumo ao Canadá, já que uma tia paterna de Alan, a cabelereira Tima, vive em Vancouver há 20 anos – era ela, inclusive, quem pagava o aluguel da casa do irmão Abdullah e da sua família na Turquia. Então... Desde que pisaram em solo turco, essa já era a quarta das tentativas de migração – na primeira, foram interceptados pela guarda costeira grega, ordenando que dessem meia-volta. E eles deram. Desta vez, apesar do não cumprimento do acordo por parte dos responsáveis pela travessia de Bodrum a Kos, já que não compareceram com o barco prometido – haja tráfico e calote! –, a família de Alan e demais refugiados sírios não se intimidaram e providenciaram dois botes. Porém, embora relativamente curta (cerca de 22 quilômetros), a rota Bodrum-Kos não deixa de ser arriscada – exemplo disso é que, quando estavam distante apenas 500 metros da costa, foram surpreendidos por ondas tempestuosas, com o pânico aumentando à medida em que subia o nível da água dentro dos botes, pondo fim, definitivamente, à travessia.


Ser ou não ser refugiado

Armandinho, por Alexandre Becker

 A guerra na Síria já gerou mais de três milhões de refugiados e é a “maior crise humana da nossa era”, com quase metade da população forçada a deixar suas casas...

Organização das Nações Unidas (ONU) – agosto/2014


De repente, engolidos pelo mar, à deriva... O clamor das vítimas, adentrando no breu da noite e chamando a atenção da guarda costeira turca, que conseguiu resgatar com vida nove dos 23 passageiros que iniciaram a fatídica travessia: dois do bote que levavam a família Kurdi e sete do segundo bote, que, embora com capacidade para dez passageiros, haviam transportado dezessete   entre os mortos, 7 adultos e 7 crianças: uma bebê de nove meses; dois gêmeos de um ano e meio de idade e mais dois irmãos, um de nove e outro de dez anos, além do pequeno Alan e do seu irmão Ghalib, de cinco anos. Entre os adultos, Rehanna, de 35, mãe dos filhos do desafortunado Abdullah, o único sobrevivente da malograda diáspora familiar dos Kurdi, cujo desfecho, protagonizado por Alan nas impactantes fotografias feitas por Nilüfer Demir, repercutiu mundo afora, expondo, sem mesurar, o insustentável drama dos refugiados.

Curiosamente, diante da repercussão das fotografias, ainda mais se considerarmos a sua influência sobre a opinião pública mundial, o governo canadense ofereceu asilo a Abdullah, que recusou a oferta, optando por retornar a Kobani para enterrar a sua família e onde 16 dos seus parentes já morreram nos conflitos sírios. Em declaração à imprensa, o pai de Alan fez um apelo: Como pai que perdeu os seus filhos, a única coisa que quero é que acabe essa dor e a guerra na Síria.

Uma guerra que, diferentemente do que muitos pensam, não induz os sírios ao acalento de um suposto sonho europeu ou a uma “terra prometida”, mas, simplesmente, à fuga, que, diga-se de passagem, não é uma opção nem um pedido de misericórdia à Europa, mas, pela proximidade, a única saída – só que sem seguro de vida. Em um vídeo de apenas 45 segundos, um dia após a tragédia que se abateu na costa turca e logo viralizado nas redes sociais mundiais, o adolescente sírio Kinan Masalemeh, de 13 anos de idade, entrevistado pela televisão árabe Al Jazeera na estação de comboios de Budapeste, dá um recado direto: Parem simplesmente com a guerra. Nós não queremos ir para a Europa. Parem a guerra na Síria, apenas isso.

Uma guerra que já dura quatro anos e contabiliza mais de 250.000 óbitos e cerca de 23 milhões de deslocados, sendo um dos seus desdobramentos o fortalecimento dos (des) governantes e do EI, que, aliás, não faz outra coisa senão impor o medo, espalhando terror e caos por onde passa. Daí que, não parando a guerra, a fuga continuará sendo a alternativa de milhares, embora milhares também já tenham naufragado – destino do qual escapou o sírio Sinan Nabir, 51, que, há dois anos, chegou a nado na Grécia. Em Kos, no dia em que o corpo de Alan Kurdi foi encontrado numa praia turca, ele desabafou a BBC Brasil: Que diferença faz morrer lá (na Síria ou no Egito) ou no mar?

À época, em consequência da repercussão internacional alcançada pela divulgação do resgate de Sinan Nabir, que nadou da Turquia para a Grécia, um documento conjunto, pedindo a revisão das atuais normas da União Europeia sobre garantia de asilo e uma “justa” distribuição de imigrantes no bloco, foi assinado pela Itália, França e Alemanha. Não são, portanto, apenas os mares a perder de vista, mas também a quantidade de artes, sobretudo cartuns, e de nacionalidades diversas, produzidas a partir das imagens do pequeno Alan feitas por Nilüfer Demir – a divulgação das fotografias fez a hashtag #KiyiyaVuranInsanlik (humanidadelevadapelaságuas) ir para o topo dos trending topics no Twitter. Enquanto isso, agências humanitárias estimam que, ao longo do mês de agosto, pelo menos duas mil pessoas tentaram cruzar a Turquia rumo à Grécia pela rota por mar Bodrum-Kos, a mesma na qual o pequeno Alan perdeu a vida.


Era uma vez...

“A Europa não pode lavar as mãos diante da montanha de cadáveres que estão se acumulando. E também não tem condições – nem políticas nem morais – de sair afundando embarcações e matando emigrantes para impedir que eles acostem. Também não pode devolvê-los aos países de origem, muitas vezes difícil de ser estabelecida e onde não existem mais governos ou autoridades dignas deste nome...”.

Alfredo Valladão
Cientista político brasileiro


Uma vida ora perseguida por covardes e belicosos insanos encapuzados, ora rejeitada por arrogantes de canetas à mão e empoeiradas cartolas, agora – será? – em busca da redenção – não dá mais para só lavar as mãos ou assistir de camarote, a exemplo da hipocrisia dos países árabes-islâmicos ricos: Qatar, Arábia Saudita e Emirados; uma vida tragada pelas ondas – todos os mataram, todos mataram Alan, apesar de não terem puxado o gatilho, pois, tecnicamente, e sem aviso prévio, ele foi morto pelo mar. O mesmo mar que o devolveu à terra e que, na praia, em meio a flocos de espuma, passou a embalá-lo e a afagá-lo até que resgatassem o seu corpo, gélido como a maresia e o orvalho da manhã, compondo, com feições de uma desbotada aquarela, o epílogo de uma breve e triste história, embora quiçá um instrumento para a abertura de novas portas. Portos. Iluminados por uma estrela do mar...


Artes & tal 











O grito de um sobrevivente



Na linha do tempo




In memoriam

Alan Kurdi, 3, e o irmão, Ghalib, 5 (Foto: Cortesia de Tima Kurdi/The Canadian Press via AP)

“É tarde demais para salvar a família de Abdullah, mas, por favor, vamos usar a nossa voz coletiva para mudar e exigir que os líderes do mundo tomem decisões para aprovar medidas de emergência para refugiados. Vamos pôr fim a esse sofrimento. Os nossos corações estão partidos...”.

Tima Kurdi 


* Durante alguns dias, a maioria dos veículos internacionais de comunicação publicaram os prenomes dos protagonistas dessa história com a grafia turca, mas, após uma informação dada por Tima Kurid, a correção foi feita pela BBC Brasil, que passou a escrever à maneira síria.


Nathalie Bernardo da Câmara


Atualização: Le Monde/AFP, 8/9/2015
Tensões na ilha grega de Lesbos, a Europa mobiliza-se


Na noite da segunda-feira, 7, diante do iminente anúncio que a Europa fará na quarta, 9, expondo ao mundo a sua solidariedade frente ao fluxo de refugiados sírios, que só aumenta, mais de 15.000 pessoas reuniram-se publicamente em Lesbos. Para as autoridades de Atenas, a situação na maior terceira ilha da Grécia está à beira da explosão. Na quarta, portanto, será anunciada pela Comissão Europeia a repartição de cotas de migrante entre os Estados membros da EU – repartição essa que não é uma unanimidade. De qualquer modo, os países que mais acolherão os refugiados são: Alemanha, França e Espanha. Enquanto isso, além das fronteiras europeias, o aceno acolhedor do Quebec, Chile e Brasil – na sexta, 4, uma corveta da marinha brasileira resgatou 220 refugiados sírios que seguiam para a Itália nas águas do Mediterrâneo. 


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