Naufrágio da humanidade – (REUTERS/Nilüfer
Demir/DHA), 2/9/2015
“Naquele momento, a única coisa que eu poderia
fazer era tornar seu clamor ouvido. Pensei que poderia fazer isso ao acionar a
minha câmera e fazer a sua foto...”.
Nilüfer
Demir
Fotógrafa turca
“Se essa imagem
extraordinariamente poderosa de uma criança síria morta em uma praia não mudar
a atitude da Europa com os refugiados, o que irá?”.
The Independent (3/9/2015)
Na manhã da quarta-feira,
2, de plantão na praia turca de Ali Hoca Burnu, a fotógrafa Nilüfer Demir, da
agência DHA, depara-se com uma cena perturbadora: um garoto jaz de bruços à
beira-mar... Num primeiro momento, por tratar-se de uma criança, a fotógrafa,
em choque, hesita, mas logo recompõe-se, fazendo aquelas que, não demoraria
muito, iriam transformar-se numas das mais emblemáticas imagens dos últimos
tempos e que, viralizadas no universo aparentemente sem fronteiras da internet,
assumiriam o papel de porta-vozes de um drama que, por suas avarias, já ceifou
a vida de milhares de migrantes. E foi assim que, da noite para o dia, após
naufragar durante uma travessia em águas mediterrâneas, da Turquia para a
Grécia, um belo menininho curdo-sírio, o refugiado Alan Kurdi, de apenas três
anos de idade, tornou-se ícone mundial da crise migratória na Europa – quiçá,
um divisor de águas...
Êxodo
“Eu gostaria realmente que ela (a fotografia que ilustra a abertura
desta postagem) pudesse ajudar a mudar o curso dos acontecimentos...”.
Nilüfer Demir
2011. Os Kurdi moravam em
Damasco quando do início dos conflitos na Síria. Com o agravamento da
violência, a família muda-se para Makharij, o seu vilarejo-natal, a 25
quilômetros de Kobane, cidade portuária curdo-síria na fronteira com a Turquia,
país que é escala praticamente obrigatória de migrantes sírios para a Europa –
a cidade de Izmir, por exemplo, na costa mediterrânea da Turquia, vem sendo
chamada de ‘cidade do colete salva-vidas’. Então... Quando, em 2014, Kobane
transforma-se em foco dos confrontos entre as milícias curdas e o grupo jihadista Estado islâmico
(EI), que, oportunamente, se aproveita da guerra civil no país, os Kurdi fogem
para a Turquia, que, embora não ofereça cidadania aos refugiados sírios, lhes
garante abrigo temporário. Ocorre que, sem passaportes, os Kurdi ficam
impossibilitados de obter visto de residência por um ano e a liberdade de ir e
vir no país, devendo, no caso, registrarem-se em um campo de refugiados, nele
permanecendo – coisa que não o fazem. “Irregulares”, não podem obter visto de
saída da Turquia nem pedir asilo noutro país porque não têm visto de saída da
Síria – um novelo que só se emaranha cada vez mais.
Em tempo: durante
anos, a Síria negou cidadania à população de origem curda, considerada apátrida
pelas autoridades. Em 2011, um decreto
autorizou que alguns deles entrassem com pedidos de cidadania, mas outros
permaneceram sem o direito e terceiros foram forçados a fugir do país antes
mesmo que pudessem dar entrada no processo – caso da família de Alan...
De qualquer modo, em Istambul, eles
não viam a hora de deixar a Turquia e, no caso, após outra escala na Grécia, porta de entrada da
União Europeia, seguir rumo ao Canadá, já que uma
tia paterna de Alan, a cabelereira Tima, vive em Vancouver há 20 anos – era
ela, inclusive, quem
pagava o aluguel da casa do irmão Abdullah e da sua família na Turquia. Então... Desde que pisaram em solo turco, essa já era
a quarta das tentativas de migração – na primeira, foram interceptados pela
guarda costeira grega, ordenando que dessem meia-volta. E eles deram. Desta vez, apesar do não
cumprimento do acordo por parte dos responsáveis pela travessia de Bodrum a Kos,
já que não compareceram com o barco prometido – haja tráfico e calote! –, a
família de Alan e demais refugiados sírios não se intimidaram e providenciaram dois
botes. Porém, embora relativamente curta (cerca de 22
quilômetros), a rota
Bodrum-Kos não deixa de ser arriscada –
exemplo disso é que, quando estavam distante apenas 500 metros da costa, foram
surpreendidos por ondas tempestuosas, com o pânico aumentando à medida em que
subia o nível da água dentro dos botes, pondo fim, definitivamente, à
travessia.
Ser ou não ser refugiado
Armandinho, por Alexandre Becker
A guerra na Síria já gerou mais de três milhões de refugiados e é a “maior
crise humana da nossa era”, com quase metade da população forçada a deixar suas
casas...
Organização das Nações Unidas (ONU) – agosto/2014
De repente, engolidos
pelo mar, à deriva... O clamor das vítimas, adentrando no breu da noite e chamando a atenção da guarda costeira turca, que conseguiu resgatar com vida nove dos 23 passageiros que iniciaram a fatídica travessia: dois do bote que levavam a família Kurdi e sete do segundo bote, que, embora com capacidade para dez passageiros, haviam transportado dezessete – entre os mortos,
7 adultos e 7 crianças: uma bebê de nove meses; dois gêmeos de um ano e meio de
idade e mais dois irmãos, um de nove e outro de dez anos, além do pequeno Alan
e do seu irmão Ghalib, de cinco anos. Entre os adultos, Rehanna, de 35, mãe dos
filhos do desafortunado Abdullah, o único sobrevivente da malograda diáspora
familiar dos Kurdi, cujo desfecho, protagonizado por Alan nas impactantes fotografias feitas por Nilüfer Demir, repercutiu mundo afora, expondo, sem mesurar, o insustentável drama dos refugiados.
Curiosamente, diante da
repercussão das fotografias, ainda mais se considerarmos a sua influência sobre
a opinião pública
mundial, o governo canadense ofereceu asilo
a Abdullah, que recusou a oferta, optando por retornar a Kobani para enterrar a
sua família e onde 16 dos seus parentes já morreram nos conflitos sírios. Em
declaração à imprensa, o pai de Alan fez um apelo: ― Como pai que perdeu os seus
filhos, a única coisa que quero é que acabe essa dor e a guerra na Síria.
Uma guerra que, diferentemente do
que muitos pensam, não induz os sírios ao acalento de um suposto sonho europeu
ou a uma “terra prometida”, mas, simplesmente, à fuga, que, diga-se de
passagem, não é uma opção nem um pedido de misericórdia à Europa, mas, pela
proximidade, a única saída – só que sem seguro de vida. Em um vídeo de apenas
45 segundos, um dia após a tragédia que se abateu na costa turca e logo
viralizado nas redes sociais mundiais, o adolescente sírio Kinan Masalemeh, de
13 anos de idade, entrevistado pela televisão árabe Al Jazeera na estação de comboios de Budapeste, dá um recado direto:
― Parem simplesmente com a guerra. Nós não queremos ir para a Europa.
Parem a guerra na Síria, apenas isso.
Uma guerra que já dura quatro anos
e contabiliza mais de 250.000 óbitos e cerca de 23 milhões de deslocados, sendo
um dos seus desdobramentos o fortalecimento dos (des) governantes e do EI, que,
aliás, não faz outra coisa senão impor o medo, espalhando terror e caos por
onde passa. Daí que, não parando a guerra, a fuga continuará sendo a
alternativa de milhares, embora milhares também já tenham naufragado – destino
do qual escapou o sírio Sinan Nabir, 51, que, há dois anos, chegou a nado na Grécia.
Em Kos, no dia em que o corpo de Alan Kurdi foi encontrado numa praia turca, ele
desabafou a BBC Brasil: ― Que diferença faz morrer lá (na Síria ou no Egito) ou
no mar?
À época, em consequência da
repercussão internacional alcançada pela divulgação do resgate de Sinan Nabir, que nadou da Turquia para a Grécia, um
documento conjunto, pedindo a revisão das atuais normas da União Europeia sobre
garantia de asilo e uma “justa” distribuição de imigrantes no bloco, foi
assinado pela Itália, França e Alemanha. Não
são, portanto, apenas os mares a perder de vista, mas também a quantidade de artes, sobretudo
cartuns, e de nacionalidades diversas, produzidas a partir das imagens do
pequeno Alan feitas por Nilüfer Demir – a divulgação
das fotografias fez a hashtag #KiyiyaVuranInsanlik
(humanidadelevadapelaságuas) ir para o topo dos trending topics no Twitter. Enquanto
isso, agências humanitárias estimam que,
ao longo do mês de agosto, pelo menos duas mil pessoas tentaram cruzar a
Turquia rumo à Grécia pela rota por mar Bodrum-Kos,
a mesma na qual o pequeno Alan perdeu a vida.
Era uma vez...
“A Europa não pode lavar as mãos diante da montanha
de cadáveres que estão se acumulando. E também não tem condições – nem
políticas nem morais – de sair afundando embarcações e matando emigrantes para
impedir que eles acostem. Também não pode devolvê-los aos países de origem,
muitas vezes difícil de ser estabelecida e onde não existem mais governos ou
autoridades dignas deste nome...”.
Alfredo Valladão
Cientista político brasileiro
Uma vida ora perseguida
por covardes e belicosos insanos encapuzados, ora rejeitada por arrogantes de
canetas à mão e empoeiradas cartolas, agora – será? – em busca da redenção –
não dá mais para só lavar as mãos ou assistir de camarote, a exemplo da
hipocrisia dos países árabes-islâmicos ricos: Qatar, Arábia Saudita e Emirados;
uma vida tragada pelas ondas – todos os mataram, todos mataram Alan, apesar de
não terem puxado o gatilho, pois, tecnicamente, e sem aviso prévio, ele foi morto
pelo mar. O mesmo mar que o devolveu à terra e que, na praia, em meio a flocos
de espuma, passou a embalá-lo e a afagá-lo até que resgatassem o seu corpo, gélido
como a maresia e o orvalho da manhã, compondo, com feições de uma desbotada aquarela,
o epílogo
de uma breve e triste história, embora quiçá um instrumento para a abertura de
novas portas. Portos. Iluminados por uma estrela do mar...
Artes & tal
O grito de um
sobrevivente
Na linha do tempo…
In memoriam
Alan Kurdi, 3, e o irmão, Ghalib, 5 (Foto: Cortesia
de Tima Kurdi/The Canadian Press via
AP)
“É tarde demais para
salvar a família de Abdullah, mas, por favor, vamos usar a nossa voz coletiva
para mudar e exigir que os líderes do mundo tomem decisões para aprovar medidas
de emergência para refugiados. Vamos pôr fim a esse sofrimento. Os nossos
corações estão partidos...”.
Tima Kurdi
*
Durante alguns dias, a maioria dos veículos internacionais de comunicação
publicaram os prenomes dos protagonistas dessa história com a grafia turca,
mas, após uma informação dada por Tima Kurid, a correção foi feita pela BBC
Brasil, que passou a escrever à maneira síria.
Nathalie Bernardo
da Câmara
Atualização:
Le Monde/AFP, 8/9/2015
Tensões
na ilha grega de Lesbos, a Europa mobiliza-se
Na
noite da segunda-feira, 7, diante do iminente anúncio que a Europa fará na
quarta, 9, expondo ao mundo a sua solidariedade frente ao fluxo de refugiados
sírios, que só aumenta, mais de 15.000 pessoas reuniram-se publicamente em
Lesbos. Para as autoridades de Atenas, a situação na maior terceira ilha da
Grécia está à beira da explosão. Na quarta, portanto, será anunciada pela
Comissão Europeia a repartição de cotas de migrante entre os Estados membros da
EU – repartição essa que não é uma unanimidade. De qualquer modo, os países que
mais acolherão os refugiados são: Alemanha, França e Espanha. Enquanto isso,
além das fronteiras europeias, o aceno acolhedor do Quebec, Chile e Brasil – na
sexta, 4, uma corveta da marinha brasileira resgatou 220 refugiados sírios que
seguiam para a Itália nas águas do Mediterrâneo.
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