Arte: Scabini
“A religião é o ópio do
povo.”
Karl Marx (1818-1833), filósofo e teórico político alemão.
Do Ocidente ao Oriente, ouve-se
muitos discursos reivindicando mais tolerância, seja ela social, racial, sexual,
de credos, opiniões etc. Na verdade, parece até uma súplica, um mantra, reverberando
por toda parte, a fim de que manifestações de intolerância sejam combatidas, abrindo
alas para o respeito às diferenças – condição sine qua non para se viver em sociedade. Só que as diferenças
existem apenas e exatamente porque o humano em si possui uma espécie de marca
registrada, um carimbo, ou seja, a sua individualidade, com personalidade e
características intrínsecas, que o distingue dos demais, sendo, assim, um ser
único, original. E livre nem que seja para pensar e acreditar ou não no que bem
entender!
O problema é que, por
não aceitarem tal fato, muitos, em sua alienante intransigência, agem como quem dar murro em ponto de faca, numa cegueira que, de tão desbotada, se perde
de vista... Ocorre que essa tacanha postura, muitas vezes irredutível – bestial,
eu diria –, finda por promover um embate sem fim, como a milenar e insana luta
entre o bem e o mal, já que, afinal, querendo ou não, a intolerância é algo inerente
a todos os povos, estando culturalmente alojada em suas entranhas, transpirando
por todos os seus poros. Lamentavelmente, quando o assunto em pauta é a intolerância
religiosa, os confrontos acumulam-se feito bolas de neve – um retrato da cena são os conflitos existentes
entre os adeptos das mais variadas crenças.
Isso porque, apesar de
não haver verdade absoluta, cada um empenha-se o máximo que pode para fazer
prevalecer a sua, negando as outras. O curioso é que boa parte dos que “pregam”
a tolerância entre as religiões, que devem se respeitar mutuamente, esquecem de
“pregar” a tolerância em relação aos ditos descrentes por parte dos religiosos,
que, na maioria das vezes, apesar de “tolerarem” crenças diferentes das suas,
não “toleram” os que vivem sem fé alguma, sejam agnósticos ou simplesmente
ateus – entendimento esse, diga-se de passagem, totalmente desprovido de nexo, já
que, indivíduos, agnósticos e ateus também merecem respeito. Uma realidade,
aliás, que costuma ficar de fora das falas consideradas politicamente corretas.
Sim, porque, na prática,
funciona mais ou menos assim: o fulano crente na religião X deve ser tolerante
com o beltrano crente na religião Y e vice-versa, mas ambos não são tolerantes,
por exemplo, com o cicrano ateu, como se, para viver, todos tivéssemos de ter uma
religião ou, mesmo sem uma, acreditar num ser dito supremo, não importa o nome
que lhe é dado. E o que é pior: fulano e beltrano ainda “cobram” de cicrano que
ele tolere as suas respectivas religiões, mas, paradoxalmente, são incapazes de
respeitar o ateísmo alheio. Só que crer ou não crer é uma questão de foro
íntimo. E esse tipo de intolerância, vigente ao longo da história da humanidade
– o que dirá no Século XXI! –, é deveras entediante. E esdrúxulo.
Por isso ser necessário desmascarar
atitudes arrogantes, como, por exemplo, a de certos religiosos, que aparentam
ser relativamente tolerantes, mas que, na verdade, são essencialmente hipócritas,
o que favorece determinados pensamentos tortos que persistem em vagar a esmo
mundo afora, igual alma penada. Sem falar que não há fé na face da Terra que
mova montanhas! O que move uma montanha são os deslocamentos de placas
tectônicas, o que me faz lembrar de um adágio em latim, que remonta aos
escolásticos da Idade Média, “de gustibus et coloribus non disputandum”, embora,
após ser “incorporado” pelos franceses, se transformou em “des goûts et des couleurs, il ne faut pas discuter”. Na língua portuguesa, no popular, significa “gosto
não se discute”.
Daí que, nesse bojo e contexto de pluralidade das preferências pessoais de cada um, se torna até pertinente mencionar a importância da laicidade de um Estado, pressuposto para que uma população possa melhor coexistir em sociedade – conceito que anda de mãos dadas com a democracia e o respeito dos direitos fundamentais dos indivíduos. Infelizmente, muitos ainda ignoram tal conceito, inclusive, no caso do Brasil, cujo Estado é laico. Sim, ignoram e desdenham do que “reza” a Constituição Federal (1988) a respeito, a começar pelo próprio Executivo, que, a 3x4, se encarrega de dar o mau exemplo. Isso porque, na prática, esse “detalhe”, isto é, a laicidade do Estado brasileiro, é relevado, invariavelmente menosprezado, contrariando as leis do país.
O que não
deveria acontecer, posto que numa nação onde o Estado é laico ou secular (por oposição a eclesiástico), as religiões não podem interferir nos affaires
estatais nem exercer
influência em decisões políticas, ou seja, não podem meter o bedelho onde não são chamadas, ao mesmo tempo em que o Estado laico deve
ser oficialmente imparcial em relação às religiões e as suas questões, além de
não poder privilegiar uma religião específica em detrimento das demais. E em hipótese alguma! Porém, é seu
dever garantir e proteger a liberdade religiosa, bem como a descrença, já que um Estado laico deve tratar todos os
cidadãos de maneira igualitária e, sobretudo, com respeito – algo que todos os
indivíduos também deveriam prezar, tratando uns aos outros com dignidade.
Não à toa, quando presencio uma situação onde o preconceito desnuda-se, no
caso, contra um ateu, logo penso num texto que relata um dado momento da vida
do filósofo iluminista e escritor francês Voltaire (1694-1778), mas que, equivocadamente,
muitos consideram uma pilhéria. Não, a narrativa não é um motejo. Pelo
contrário! Sem falar que é brilhante ao resumir aspectos de eventos similares –
demais corriqueiros, eu diria, ainda mais porque também caracteriza uma invasão
de privacidade daquelas! Isto é, um baita desrespeito. Não obstante, se for
para encarar o referido enredo com gracejos, como se ele fosse uma piada, “confesso”,
então, que é a melhor que já ouvi em toda a minha vida, a mais criativa – sem
falar no aprazível gostinho de desforra...
Enfim, contam que, pouco
antes de morrer, Voltaire recebeu a visita de um padre ansioso por dar-lhe a
extrema-unção e redimir o ateu impenitente num ato de contrição. Por sua vez, o
irônico e cínico moribundo não teria hesitado em perguntar ao religioso: — Vens
da parte de quem?
— Sou um representante
de Deus... – respondeu o padre.
De maneira incisiva,
apesar dos seus últimos suspiros, Voltaire não se fez de rogado: — Mostre-me,
então, as vossas credenciais ou, senão, saia deste quarto!
Nathalie
Bernardo da Câmara
P.S. Considerando,
ainda, que o princípio de laicidade não permite pitacos de religiosos em assuntos estatais e que assuntos religiosos
devem limitar-se aos adros das suas igrejas, certas iniciativas em espaços
públicos, como, por exemplo, a edificação de monumentos para homenagear ícones de
não importa qual religião ou o assentamento, digamos, de um busto ou de uma
estátua de corpo inteiro para reverenciar um líder religioso qualquer, não
devem ser permitidas, salvo se a homenagem for num espaço privado. E se
ressalto esse detalhe é porque empreendimentos
dessa natureza de há muito poluem visualmente inúmeras paisagens do território
nacional, traduzindo-se, o que é mais grave, em arroubos de parlamentares religiosos inescrupulosamente amparados
por toda sorte de governo, seja ele federal, distrital, estadual ou municipal.
Práticas equivalentes são
a defesa do disparate que é o repasse de recursos públicos para instituições religiosas
de ensino e a esdrúxula possibilidade, mesmo facultativa, do ensino religioso
em escolas públicas – ambas, é sempre bom lembrar, são inconstitucionais. Sem
falar que, num Estado laico, feriado religioso nem pensar – hors de question! Porém, no caso do
Brasil, não é bem isso que se vê, já que o país tem até uma padroeira, cuja
epopeia, aliás, por seus tons surrealistas, dá uma crônica! Mas, essa é uma outra
história, apesar de servir de exemplo para ilustrar este post scriptum.
Isso porque, no quesito ‘feriado
religioso’, o general-de-exército João Batista Figueiredo (1918-1999), então
presidente de uma esfacelada nação (1979-1985), não deixou por menos: resguardado
por brechas legadas pela Constituição Federal de 1967/69, elaborada nos fétidos
porões da ditadura militar (1964-1985) por mãos encharcadas de sangue, suor e
lágrimas, ele sequer hesitou ao sancionar a Lei n° 6.802/1980, que, além de oficialmente
reconhecer Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil, declarou o dia da
sua festa litúrgica, ou seja, 12 de outubro, como feriado nacional.
Na verdade, essa coisa
de feriado, seja ele religioso ou não, é deveras curiosa – o da sexta-feira da
paixão, então, um feriado tido como móvel! Sem falar em Tiradentes (21/02), considerado
o mártir da independência... “Mártir”? E de qual independência, mesmo? Sim,
porque, afinal, basta conhecer a verdadeira história do Brasil, não a dita
oficial, que nos fazem “engolir” ainda na escola, descendo goela abaixo, sem
que seja preciso nem nos mostrar a famosa e tão decantada pintura Tiradentes esquartejado (1893), de Pedro
Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), cujo título, por si só, já aumenta o nosso
mal-estar diante da violência em questão, para saber que o alferes Joaquim José
da Silva Xavier (1746-1792) não passou de um mero bode expiatório de uma
frustrada conjuração que ganhou o nome de Inconfidência Mineira (1789). Mas, essa
também é uma outra história... E voilà!
Sugestão de leitura:
No meio do caminho tinha uma
Bíblia, tinha uma Bíblia no meio do caminho...
https://abagagemdonavegante.blogspot.com/2012/07/no-meio-do-caminho-tinha-uma-biblia.html
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