segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Recortes de uma saudade

 

Foto: Nathalie


A Salete Bernardo (23/04/1940-29/01/2023)

in memoriam

  

“Não tem azul, nem estrelas, a noite que enlutam os ventos”.

José de Alencar (1829-1877), escritor, jornalista e político brasileiro

 


Estéril é a contagem do tempo

a datar do termo da tua existência

– não retornarás...

 

Relógios para quem precisa de ponteiros!

Faço uso de tinteiros:

gerada numa manta de poesia

– o véu da minha placenta –

nasci em berço de afeto...

 

De criativa e fértil mente,

recordo-me da infância

– lúdica por excelência –

regada à ternura

e a extremados cuidados;

do bê-á-bá ensinado ainda em casa

e dos eventuais puxões de orelha...

 

Enquanto isso

– o calendário a passar –

entra em cena imatura fruta

latejando talentos a brotar,

amorosa e delicadamente

colhidos, acolhidos e degustados...

 

Pautada pela palavra,

ingrediente a temperar

a ciranda da minha vida,

e abraçando uma dada ideologia

– a minha “pitada de sal”[1]

fostes comigo,

a exemplo do teu próprio idealismo,

respeitosa e generosa...

 

Ah!, minha mãe, por onde andas?

São tantos os meus andores de barro

impregnados nas dores que escarro...

 

Hélas!, em lugar algum te encontro,

salvo na vívida lembrança do teu ser

e do quão sutil foi a nossa despedida,

como se de véspera antevisse a tua partida...

 

Envoltas no manto do orvalho

de uma cálida noite de verão

e após um meigo pedido teu,

aspiramos juntas o aroma que emanava

de uma das flores do teu jasmim,

cujo pé, quiçá também saudoso,

até hoje guardo para mim...

 

Desde então, busco em vão, sei,

uma plausível compreensão

– nunca a encontrarei –

para o teu adeus nada à francesa,

ficando eu assim tão dégradé,

mas igualmente um colosso

a tecer lacrimosos versos

por si só espalhados ao relento,

solitários, tristes e dispersos,

deixando-se levar pelo vento...

 

Sim, sempre a poesia,

neste caso – querendo ou não –

tábua de salvação que em seus meandros

dia após dia os meus passos encaminha...

 

Nathalie



[1] Nascido em Natal, Rio Grande do Norte, em 1921, mas morto e desaparecido nos porões da ditadura militar-civil no Brasil (1964-1985), em 1974, o advogado, jornalista e político comunista brasileiro Luiz Maranhão costumava dizer que enquanto houver um ser humano privado da sua “pitada de sal” não conquistaremos a tão decantada justiça social.

 

 Vou compatilhar um link de uma postagem que postei quando a minha mãe fez uma viagem sem volta: https://abagagemdonavegante.blogspot.com/2023/04/cronica-de-uma-morte-quica-anunciada.html


 

 

3 comentários:

  1. Lindo e sensível seu poema. Salete em espírito, certamente o apreciará.

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    1. O (a) anônimo (a) que não se revela, coloca máscara, como se estivesse num carnaval em Veneza. É doloroso admitir uma identidade?

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