“Numa sociedade primária, o preconceito ganha
cores bastante fortes. Tudo que se faz numa obra como essa [Babilônia] é
apresentar problemas de ordem humana e esperar que tenha repercussão nesses
espíritos ainda tão limitados...”.
Fernanda
Montenegro
Atriz brasileira
Um
beijo na boca. O gesto teria passado despercebido se, apesar de o amor
homoafetivo já ter sido abordado em folhetins brasileiros, não tivesse sido o
primeiro na história da teledramaturgia nacional entre duas mulheres
setuagenárias, causando frisson entre os telespectadores, e ido ao ar tão logo teve
início, em 16/03, o capítulo de estréia de BABILÔNIA, nova novela das 21h da Rede Globo, dos autores Gilberto Braga,
Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, dando um sutil “tapa na cara” no
conservadorismo. Na trama, situada inicialmente em 2005, o casal é formado por
Teresa, uma advogada bem sucedida, e Estela, proprietária de um antiquário, interpretadas
por Fernanda Montenegro, 85, e Nathalia Timberg, 85, respectivamente.
Companheiras de décadas, amadas e respeitadas pela família e amigos, elas criam
um neto biológico de Estela, que, por chamá-las de “mães”, sofre bullying na infância. No passado, discriminadas
por sua opção sexual – Estela separou-se do marido para viver com Teresa –, vivem, no
presente, uma relação estável e bem resolvida, quebrando tabus, como, por
exemplo, o do sexo na terceira idade – no caso, um duplo preconceito,
encontrando resistência, mas também aceitação. Em 2015
– a novela dá um salto de dez anos já no segundo capítulo –, as personagens
finalmente oficializam a sua união civil, cuja cena, segundo os autores do
folhetim, está prevista para ir ao ar no capítulo 35.
No
desenrolar, ainda, do primeiro capítulo, “uma verdadeira aula de roteiro”, aliás,
segundo o jornalista e pesquisador Nilson Xavier, o telespectador deparou-se
com situações que, normalmente, levam toda uma novela para acontecer: além do polêmico
beijo gay, cenas outras, ousadas, de forte carga dramática, entreteram os
noveleiros de plantão e/ou os eventuais, além de tirar o sono de muita gente. Na
verdade, antes mesmo de estrear, BABILÔNIA despertou repulsa e aplausos, intensificados
no primeiro capítulo e ao longo da semana, repercutindo na mídia e dentro e
fora das redes sociais, com comentários positivos e outros nada elogiosos, a
ponto de ter quem compare a novela com o Apocalipse,
livro bíblico citado, inclusive, nenhuma novidade, pelo deputado federal e
pastor Marco Feliciano (PSC-SP) numa dada postagem, publicada em 16/03, logo
após a estréia da novela – no mesmo dia, o parlamentar manifestou a sua
solidariedade ao candidato derrotado do PRTB à presidência da República Levy
Fidelix, condenado a pagar uma indenização de R$ 1 milhão por declarações
homofóbicas durante um debate televisivo quando das eleições de 2014; noutra
postagem, dizendo sentir-se preocupada por considerar a novela uma influência
negativa para as famílias brasileiras, uma internauta classificou-a de
“maligna”, ignorando que certas manifestações artísticas são reflexos da vida real
e, ao mesmo tempo, entretenimento.
Ora,
preocupadas devem ficar as mentes sãs, não dispostas ao obscurantismo de
fundamentalistas religiosos que se querem arautos da moralidade, apesar de,
paradoxalmente, serem forjados pela hipocrisia, e de seus discursos recalcados
e fascistas sobre moral – nada mais antipático e fora do contexto. O mais
insano, contudo, é que, poluindo os anseios de avanços da sociedade, no caso,
os dos direitos fundamentais e civis, e julgando, levianamente, as escolhas das
pessoas, seja na realidade ou na ficção, muitos fazem drama quando nem drama existe
ou, quando existe, fazem mais drama do que o drama em si. Na quinta-feira (19),
por exemplo...
... Num impressionante ato de delírio, a bancada evangélica no Congresso Nacional divulgou uma nota de repúdio à cena do beijo protagonizado pelas personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, convocando todos aqueles que se sentem “violentados” pelos “constantes estupros morais impostos pela mídia liberal” a não mais assistirem a novela, visto que ela pretende difundir “o modismo denominado por eles ‘de outra forma de amar’, contrariando nossos costumes, usos e tradições” – nossa, é patético, parece até que não tem o que fazer. Enfim! Integrante da Frente Parlamentar Mista Permanente em Defesa da Família, o senador Magno Malta (PR-ES) recorreu a uma dada rede social para postar que BABILÔNIA foi produzida para destruir famílias, sendo, portanto, uma apologia ao mal: ─ Não dê espaço para esta ameaça com cara de diversão.
Charge
do Lute, publicada no jornal Hoje em Dia
(21/03/2015).
... Num impressionante ato de delírio, a bancada evangélica no Congresso Nacional divulgou uma nota de repúdio à cena do beijo protagonizado pelas personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, convocando todos aqueles que se sentem “violentados” pelos “constantes estupros morais impostos pela mídia liberal” a não mais assistirem a novela, visto que ela pretende difundir “o modismo denominado por eles ‘de outra forma de amar’, contrariando nossos costumes, usos e tradições” – nossa, é patético, parece até que não tem o que fazer. Enfim! Integrante da Frente Parlamentar Mista Permanente em Defesa da Família, o senador Magno Malta (PR-ES) recorreu a uma dada rede social para postar que BABILÔNIA foi produzida para destruir famílias, sendo, portanto, uma apologia ao mal: ─ Não dê espaço para esta ameaça com cara de diversão.
Imagem
publicada no Facebook pelo senador Magno Malta (PR-ES).
Não deu outra!
Nas redes sociais, internautas adotaram a hashtag #BabilôniaEuApoio. Dentre
muitas postagens nas redes sociais, apoiando ou não a novela, pode-se dizer que
deu de tudo! Ocorre que, não é de hoje, sempre existiu todo tipo de família – a
diferença é que, de uns tempos para cá, esse leque de variações ganhou mais
visibilidade. O conceito de família, por sua vez, não mais restrito ao formato
“clássico”, que, vale ressaltar, de há muito deixou de ser maioria, passou a
contemplar infinitas possibilidades de núcleos familiares – dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) a respeito numa reportagem transcrita
ainda nesta postagem. Sobre os comentários dos internautas, há quem questione,
com pertinência e sensatez, o estardalhaço feito apenas por causa de um simples
beijo – quer dizer, então, que afeto não pode, mas corrupção (caso do prefeito
corrupto, interpretado por Marcos Palmeira), lugar-comum, aliás, na polpuda política
brasileira, e homicídio podem (no folhetim, a arquiteta Beatriz, papel de
Glória Pires, é chantageada por um amante, motorista do marido, e, a sangue-frio,
atira para matar, sem culpa, sem nada, embora não seja por isso que falsos
moralistas de carteirinha também estejam atirando-lhes pedras, rotulando-a de
“ninfomaníaca”: eles o fazem apenas porque, quando está disposta, ela é quem
faz a cama, ditando a sua própria conduta, sem culpa, sem nada.
Compreende-se,
portanto, porque, ouvido pelo portal UOL, o senador Magno Malta (PR-ES) tenha
dito que, além das personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, as
suas críticas também vão para a de Glória Pires, que lhe incomoda, tal qual o
nome da trama. Paradoxalmente, apesar de dizer que não tem intenção de censurar
a novela, a sua classificação indicativa do público para assisti-la deve ser
alterada, ou seja, de 14 para 16 anos de idade, adiantando que, na
segunda-feira (23), estará encaminhando um ofício ao ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, nesse sentido. Preocupada, a diretora do Observatório de
Comunicação, Liberdade de expressão e Censura (obcom) da Universidade de São
Paulo (USP), a professora Cristina Costa, alertou: ─ Isto é coerção. E, na essência, é
o mesmo que os militares faziam na ditadura. Eles tentam impedir previamente
que a população veja um conteúdo artístico, obstruindo assim o debate e a conscientização
sobre temas que ocorrem na sociedade. Eles obviamente não têm os mesmo meios
que a ditadura, mas certamente se utilizam dos mesmos critérios.
Para
a pesquisadora, esses
critérios são: “impedir a veiculação de
conteúdos que não atendam a uma falsa moralidade, ou a uma moralidade
religiosa, e uma ideia equivocada sobre o papel da arte”. Em sua opinião, “a
arte não deve estar a serviço de crenças, mas a serviço da crítica, propondo
discussões de temas que são tratados no mundo. Isso tudo faz parte de um
retrocesso político-ideológico muito forte na sociedade brasileira de hoje”.
E
haja retrocesso! – ainda mais diante dos absurdos de uma nota de autoria do
líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), pastor Silas Malafaia, publicado
no portal Verdade Gospel, em 17/03, no
dia seguinte a exibição do primeiro capítulo da novela, tipo: “... a Rede Globo
é a maior patrocinadora da imoralidade e do homossexualismo no Brasil...”. Considerando,
portanto, a badalada homofobia do autor da nota e tirando por essa frase...
Não
foi à toa que, comentando sobre BABILÔNIA, antes mesmo da sua estréia, Fernando
Montenegro, prevendo críticas, não deixou por menos: ─
Os conservadores vão ter que nos aturar.
Provavelmente.
E ainda mais se atentarmos para uma fala de Teresa numa cena da novela: ─
Tenho certeza de que pessoas como Estela e eu ainda vamos mudar a sociedade.
Tanto
que, segundo declaração de Nathalia Timberg ao jornal Extra, a cena do beijo, que só seria gravada bem depois, foi
antecipada por sugestão da própria Fernanda Montenegro, indo ao ar já no
primeiro capítulo, desmitificando, de cara, sem criar expectativas, a relação
que as suas personagens mantêm na novela. Para Timberg: ─ Essa realidade já
está mais do que na hora de ser absorvida pela sociedade. O que importa de fato
é a integridade das pessoas.
E
aceitação. Que o novo folhetim, então, seja bem-vindo, selado que foi pelo
beijo de duas das damas da dramaturgia brasileira, embora eu fique a pensar
qual seria a repercussão que o gesto e o relacionamento em questão estariam
tendo caso as suas protagonistas fossem mulheres negras, pobres e moradoras do fictício
morro da Babilônia, que dá nome à novela... Enfim! Logo após o beijo gay, independentemente
de eventuais especulações sobre estereótipos, o deputado federal Jean Wyllys
(PSOL-RJ) postou nas redes sociais: ─
O choro é livre, reacionários e fundamentalistas e fascistas e homofóbicos. Eu
vivi pra ver! Parabéns, Babilônia.
Não
deve ter sido à toa – imagino
– a escolha do
tema de abertura da novela, de autoria da cantora e compositora Mart’nália, ou seja, o
samba Pra que chorar.
Babel
brasileira, obscurantismo e pragas... de pardais
“Deixa-me molhar a pena em ácido corrosivo;
ferve-me o sangue ao pensar que devo escrever seu nome!”.
Willian Hornoday (1854 - 1937)
Zoologista, conservacionista, taxidermista e
escritor naturalista norte-americano, referindo-se ao pardal.
Ao
invés das pragas preconizadas pelo Apocalipse,
texto bíblico citado em postagens nas redes sociais pelo deputado federal e
pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para externar a sua opinião sobre BABILÔNIA,
atribuindo supostos “pecados” à trama da nova novela global, lembrei-me do
pardal (Passer domesticus L.), ave que,
aparentemente inocente, só nidifica em habitações humanas e que, por sua
capacidade reprodutiva, presente em quase todos os países, é uma das mais
populosas do mundo, sendo caracterizada como bioinvasora – no Brasil, existe
até uma portaria federal (nº 1, de 5/1/1957) que tipifica o pardal a mais
nociva das aves e que, devido a sua “onipresença”, está, atualmente, disseminado
por quase todo o país e que, devido o seu histórico de pragas, tipo uma
bomba-relógio ambulante, pode detonar uma quando menos se espera. Daí eu
costumar comparar os pardais aos neopentecostais, embora nem todos estejam
vulneráveis aos malefícios das suas pragas. E, dizendo isso, não estou sendo
preconceituosa nem discriminando as religiões (des) norteadas por pastores de
má fé, que, aliás, ignoram o que seja ética, seja nos púlpitos dos seus
templos, nas tribunas do Congresso Nacional e/ou através do fácil acesso que
têm à mídia, mas apenas exercendo o direito de emitir a minha opinião em
relação à violência das suas pregações, que, inclusive, chegam ao cúmulo de
afrontar os princípios de laicidade do Estado brasileiro. Querem tolerância
para tamanhas sandices? Respeitem, então, a liberdade de expressão e o fato de
nem todos estarem disponíveis para “rezar” na obscura cartilha de obtusos e
hostis pastores, beirando à patologia, nem de acreditar nas suas ladainhas,
alardeando dada moral surrealista por aí, aleatoriamente, como se a sua verdade
fosse a única, quando, na verdade, a sua própria vida é balizada pela
hipocrisia, sendo nefasta não a influência que BABILÔNIA, a de não importa demais
tramas televisivas ou, ainda, a de outras manifestações artísticas, possam porventura
exercer sobre a sociedade, mas, sim, a insana orientação religiosa que
transmitem aos seus rebanhos, manipulando a sua psique, bem como as agressões
gratuitas que votam contra os que não comungam com a quantidade de dejetos que
levianamente despejam não apenas em mentes vulneráveis, mas indiscriminadamente
– não é à toa a má fama dos pardais... Tanto que até o seu caráter duvidoso já
foi tema de marchinha de carnaval, com a ave limitando-se a uma alegoria
grotesca, tais quais certos fundamentalistas evangélicos, que, ao invés do
atrevimento de julgar as escolhas de outrem, desrespeitando a sua
individualidade, como se apenas a verdade que defendem fosse a única, deveriam
era olhar para os seus próprios umbigos, não negar, arrogantemente, algo que é
inerente à condição humana, ou seja, a diversidade, não importa em qual esfera
da vida, com o amor legitimando todos os laços.
Laços de família
“Babilônia reflete a diversidade das famílias na vida
real...”.
João Ximenes
Braga
Roteirista brasileiro
Abaixo,
transcrição de uma reportagem publicada pelo jornal O Globo em 22/03.
Nathalie
Bernardo da Câmara
As novas composições familiares estão em destaque
em 'Babilônia' e 'Sete vidas'
Novelas das
21h e das 18h da Globo retratam tipos de família cada vez mais presentes na
sociedade
POR NATALIA
CASTRO / ZEAN BRAVO
22/03/2015
RIO - Um
beijo, logo no primeiro capítulo de “Babilônia”, na segunda-feira, selou para
os espectadores da novela das 21h a relação de Teresa (Fernanda Montenegro) e
Estela (Nathalia Timberg). Juntas há décadas, as duas têm um filho, Rafael
(Chay Suede), neto biológico de Estela. Mais cedo, na trama das 18h, “Sete
vidas”, Regina Duarte é Esther, que recorreu, junto com a companheira (hoje já
morta), a um banco de sêmen para gerar seus dois filhos, Laila (Maria Eduarda
Carvalho) e Luis (Thiago Rodrigues).
Com três das
maiores atrizes brasileiras, esses núcleos dos dois folhetins, que estrearam há
pouco, refletem uma mudança em curso na sociedade brasileira: a formação
clássica de família, com pai, mãe e filhos, já não é maioria no país.
O último censo
do IBGE, em 2010, mostrou que as novas configurações familiares estão em 50,1%
dos lares, ou seja, somam 28,647 milhões, 28.737 domicílios a mais que a
formação clássica. São casais sem filhos, pais ou mães solteiros, netos criados
por avós, irmãos e irmãs, casais gays, amigos convivendo, pessoas morando
sozinhas, famílias “mosaico” (as dos “meus, os seus e os nossos filhos”)...
Alguns desses
modelos vêm sendo representados na teledramaturgia. E nas duas novas tramas a
diversidade chama a atenção. Em “Sete vidas”, a tal família “mosaico”, por
exemplo, foi atualizada. Lígia (Débora Bloch) é a mãe do bebê Joaquim, fruto de
seu relacionamento com Miguel (Domingos Montagner), e se casa com Vicente
(Ângelo Antônio), pai de Pedro (Jayme Matarazzo), gerado com o esperma de um
doador, que vem a ser Miguel.
Estranhamento
do público? Só num primeiro olhar, crê a autora de “Sete vidas”, Lícia Manzo:
— Em
princípio, qualquer mudança pressupõe medo e certa resistência, mas acredito
que o afeto é capaz de nos conduzir por onde quer que seja. Onde falta
tradição, é o afeto que irá legitimar todos os laços. Por conta da novela,
assisti a documentários, reportagens e realities sobre filhos de doadores
anônimos. Por trás de cada história, sempre uma nova família: mãe solteira com
filho, duas mães, grupos de meio-irmãos de até 30 pessoas – diz Lícia, que se
amparou em pesquisas para criar sua novela, cuja trama principal é a ligação de
sete meio-irmãos gerados por um doador anônimo: — Em um trabalho que aborda um
tema real e contemporâneo, a pesquisa para mim é imprescindível. De acordo com
dados, a formação clássica deixou de ser maioria nos lares. E me pareceu
oportuno dar voz a esses personagens.
O PAPEL DA
NOVELA É ENTRETER
As múltiplas
famílias também estão retratadas em “Babilônia”. Autor da trama ao lado de
Gilberto Braga e João Ximenex Braga, Ricardo Linhares cita os exemplos
presentes na trama das 21h: além de Rafael e suas duas mães, Teresa e Estela,
há mulheres provedoras, como Regina (Camila Pitanga), mãe solteira de Julia
(Sabrina Nonata), que ajuda a mãe, Dora (Virginia Rosa), e o irmão, Diogo
(Thiago Martins), e Karen (Maria Clara Gueiros), que sustenta o lar junto com a
mãe, Zélia (Rosi Campos), já que o marido, Luis Fernando (Gabriel Braga Nunes)
vive desempregado. Há, ainda, Tadeu (Cesar Mello), responsável pelos irmãos
Wolnei (Peter Brandão) e Carlinhos (Cauê Campos) depois da morte dos pais; e
Fred (Filipe Ribeiro), que, após a separação dos pais, opta por morar com
Carlos Alberto (Marcos Pasquim), entre outros.
— Os novos
arranjos familiares não são modismo. São a realidade do dia a dia brasileiro.
Quem não vê essa mudança não olha ao redor – observa Linhares.
Em
“Babilônia”, os autores contam não ter se apoiado em pesquisas (“Somos 100% intuitivos”,
afirma Ximenes), mas nem por isso estão afastados do que acontece no seu
entorno.
— O papel da
novela é entreter. Acontece que o escritor busca, na vida real, matéria-prima
para conflito. “Babilônia" reflete a diversidade das famílias na vida real
– destaca Ximenes.
Coincidentemente,
já que os personagens das duas novelas foram criados há bastante tempo, o
debate sobre novas formações familiares está em voga no país. No último mês, as
hashtags #emdefesadetodasasfamílias, #somostodosfamília e #nossafamíliaexiste
marcaram presença nas redes sociais em resposta ao desarquivamento do Projeto
de Lei 6.583/2013, mais conhecido como o Estatuto da Família, pelo presidente
da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que restringe família ao núcleo
formado por um homem, uma mulher e seus descendentes. E que também proíbe a
adoção de crianças por casais homoafetivos.
— O Estatuto
da Família não é excludente apenas com famílias homoafetivas, mas também com as
diversas formações familiares contemporâneas – comenta Linhares: — O estatuto é
inconstitucional e anacrônico, poderia ter sido inventado por Aderbal Pimenta
(Marcos Palmeira), o político corrupto e hipócrita da novela. A Constituição é
clara: o Brasil é um país laico. Os fundamentalistas religiosos, portanto, não
têm respaldo jurídico para tentar impor seu gosto pessoal.
Lícia tem
opinião similar: — Me causa espanto a tentativa de criar um “manual de
normalidade” a esta altura, quando o modelo de família tradicional deixou de
ser maioria nos lares brasileiros, me parece defasada e ingênua.
ÍCONES DA
TELEDRAMATURGIA
Advogada
especializada em adoção, Silvana Monte foi uma das que iniciaram a reação ao
desarquivamento do projeto do Estatuto da Família. Ela comemora a presença de
lares formados por múltiplas combinações nas novelas e acredita que isso ajuda
sim a derrubar preconceitos: — Quando se coloca dois ícones da teledramaturgia
como Fernanda e Nathalia numa relação homoafetiva que perdura, como qualquer
casamento, até a terceira idade, você mostra para a sociedade que o amor supera
o preconceito e a homofobia. A gente precisa realmente desmistificar essa
questão – avalia Silvana, que gostaria de ver Estela e Teresa engajadas na luta
contra o estatuto usando as hashtags do movimento no Twitter.
Silvana
explica que o estatuto não marginaliza apenas as famílias homoafetivas, mas
todas as em que não há descendência biológica. Ela diz que os diferentes tipos
de família são tirados de “invisibilidade” ao aparecer na TV: — Em “Império”,
por exemplo, foi mostrada uma família poliafetiva, a de Xana (Aílton Graça),
Naná (Viviane Araújo) e Antônio (Lucci Ferreira), que adota o menino Luciano
(Yago Machado). Quando falamos de poliafetividade, não se trata de
polissexualidade, isso não parecia haver nesse núcleo. A família hoje em dia se
baseia no afeto e no carinho.
Representar na
TV com naturalidade os novos arranjos familiares é o propósito de autores e
atores. E, mesmo sem militância, as obras mostram que ainda existe preconceito.
Em uma cena de “Babilônia”, Teresa é chamada à escola do filho para ouvir que o
menino ter duas mães não é bem aceito e seria melhor que ela fosse chamada de
“tia”. Em “Sete vidas”, Esther vê o filho se tornar um conservador.
— Estamos
mostrando um casal que tem uma vida comum. O preconceito está diminuindo, mas
ainda está aí. A sociedade já caminhou bastante – afirma Fernanda Montenegro.
— Estela e
Teresa vivem uma relação sólida, de muito amor. Estão juntas há mais de 40 anos
e passaram juntas por todo tipo de situação. Elas são parceiras da vida e criam
o neto de Estela como um filho. Uma relação linda, uma família feliz! – define
Nathalia Timberg.
Chay Suede
completa: — Meu personagem não conhece outras mães que não sejam as dele, é
cabeça-feita e tem uma família como qualquer outra pessoa. Toda família é
única.
Naná (Viviane
Araújo) e Xana (Aílton Graça), da recém-terminada “Império”, também são citados
pela antropóloga Mirian Goldenberg: — É exemplo de família completamente fora
do padrão, mas que convence por ter um lado humano. Afinal, quem disse que não
existe vida sem sexo? A sociedade tem que passar a reconhecer os arranjos como
legítimos, porque mesmo quando os comportamentos mudam, acho que os valores
tradicionais ainda resistem – defende ela, que, no entanto, enfatiza que
“novela é obra de ficção”: — Não acho que a novela tem que ser vanguarda de
comportamento, é um produto para as pessoas se divertirem. Se isso virar uma
obrigação, tira grande parte do encanto que é ser fantasia. “Meu pedacinho de
chão” foi uma novela linda, que não abordou nenhuma dessas questões. Acho
bacana quando a novela liberta não por obrigação.
O autor
Aguinaldo Silva ressalta que, apesar de ficcionais, as novelas sempre procuram
refletir o que acontece na vida real: “Para o bem ou para o mal”: — Seria
hipocrisia fingir que isso não existe na ficção, não mostrar casais formados
por pessoas gays, por exemplo. É um pouco obrigação do novelista tratar desse
assunto de maneira positiva. A trama da Xana foi bastante avançada porque foram
dois homens, uma mulher e uma criança juntos no final. Mas procurei criar
personagens positivos. O público adorava a Xana e a Naná. Quando você tem a
simpatia do telespectador, a torcida pelo personagem acontece.
Foi o que
houve em “Amor à vida” (2013), quando Walcyr Carrasco juntou Niko (Thiago
Fragoso) e o malvado redimido Félix (Mateus Solano). O casal se beijou no
último capitulo – cena que entrou para a história das telenovelas – e terminou
com dois filhos, um biológico de Niko, gerado por inseminação, e o outro
adotado: — O importante ao mostrar as diversas formações familiares atuais é
promover a aceitação. Eu tenho um livro infantil, “Meus dois pais”, sobre um
menino que descobre que o pai vive com outro homem e percorre uma jornada de
aceitação. Acho que o autor, em todos os seus trabalhos, tem que mostrar no que
acredita, e eu acredito que a realidade é múltipla, com famílias tradicionais,
conservadoras, liberais, inovadoras. Tudo faz parte de nosso mundo atual.
Outro ponto
que Walcyr destaca é Niko ter adotado Jayminho (Kaiky Gonzaga), um menino negro
e já mais crescido: — Acho importante promover a adoção interracial. Crianças
negras costumam ser rejeitadas na hora da adoção. Crianças mais velhas também.
Quis quebrar esse paradigma.
Já em 2007, Aguinaldo
explica ter apostado em uma formação familiar “inédita”: — Em “Duas caras”, fiz
um triângulo formado pela Dália (Leona Cavalli), Bernardinho (Thiago Mendonça)
e Heraldo (Alexandre Slaviero). Quando Dália fica grávida, eles optam por não
saber quem é o pai. E a filha de Dália é registrada por dois pais – recorda o
autor.
MATERNIDADE EM
QUESTÃO
Para Mírian,
alguns tipos, no entanto, ainda não são muito retratados na ficção. Por
exemplo, as mulheres que vivem sozinhas, que já somam 3,4 milhões em todo país.
Isso, para a antropóloga, merece reflexão: — O legal é que as novelas estão
mostrando que não existe um tipo de família, uma normalidade, uma obrigação. Só
que eu acho que a novela ainda reforça a ideia de que para uma mulher ser
normal, ela tem que se casar e ter filhos no último capítulo. Talvez seja um
avanço mostrar que a felicidade é subjetiva, mas ao mesmo tempo acho que todo
mundo se sente obrigado a cumprir um padrão que ainda continua forte como
modelo. Na Alemanha, por exemplo, as mulheres escolhem não se casar. E quem
disse que o homem tem que ser o provedor, que elas não podem se envolver com
homem mais novo? Por que as mulheres sempre têm que ser o menos na relação?
Ganhar menos, ser menos alta, menos velha – argumenta.
Filha da
personagem de Regina Duarte em “Sete vidas”, a atriz Maria Eduarda crê que a
novela ajuda a tornar situações como essas mais “palpáveis” aos olhos do
espectador. Ela conta que, antes da trama, conversou com uma mulher que tinha
dois filhos, um menino e uma menina, com sua companheira. Cada criança gerada
por uma das mães por meio de inseminação: — Na escola, minha filha de 4 anos
tem uma amiguinha com duas mães, outra que foi adotada por uma mãe solteira. Eu
mesma não estou mais casada com o pai dela. Se antes esses arranjos eram vistos
como fora do padrão, hoje configuram as infinitas possibilidades de família. O
preconceito ainda está muito arraigado, falar e mostrar isso é mais um jeito de
ir contra ele – analisa a atriz.
Doutor em
teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana na USP, e integrante da Academia
Internacional de Artes e Ciências da Televisão de Nova York (Emmy), Mauro
Alencar também acredita que entretenimento e reflexão andam juntos na
teledramaturgia: — Afinal, a telenovela conseguiu extrair do cotidiano a
matéria-prima para a sua ficção. Portanto, segue com seu propósito de mediadora
social. Tudo o que a novela apresenta já está na sociedade. Sua maior virtude é
apresentar, explicar, levar a uma compreensão e, com isso, transformar a dor, o
conflito proposto, em manifestação artística – explica.
Pioneira ao
inserir em suas tramas avanços tecnológicos para criar dramas e conflitos nas
histórias, como em “Barriga de aluguel” (1990), Gloria Perez acredita que Lícia
Manzo está se aprofundando no tema em “Sete vidas”: — Em “Barriga de aluguel”,
eu quis discutir a configuração de uma nova família a partir de uma criança com
duas mães. A maternidade, até então, era inquestionável, e sempre foi uma
evidência. A paternidade, sim, era questionada. Mas e quando você separa óvulo
do útero? Muita gente associa a gravidez ao parto. Quis discutir a ética disso.
Hoje esse tema já figura no código. A genética sempre foi um assunto que me
interessou. Tudo isso cria núcleos familiares novos – observa Gloria.
Em “Sete
vidas”, por exemplo, Marlene (Cyria Coentro) é uma mulher que se separa já
madura e precisa do banco de esperma para gerar seu filho, Bernardo (Ghilherme
Lobo), sozinha.
As formas
contemporâneas de fertilização podem até se transformar em comédia. Na série
“Pé na cova”, por exemplo, Odete Roitman (Luma Costa) e Tamanco (Mart’nália)
decidem ter um filho por meio de inseminação artificial, usando como doador
Marcão (Maurício Xavier), irmão de Tamanco. Mas as amostras são trocadas na
clínica do Dr. Zóltan (Diogo Vilela), e nasce uma criança oriental para fazer
parte da família, que já conta com o menino Sermancino (Gabriel Lima), adotado
pelo casal. Na nova temporada da atração escrita por Miguel Falabella, prevista
para o segundo semestre, veremos como está essa família: — Desde o início, eu
sabia que queria escrever uma comédia sobre a tolerância. A minha ideia
principal era uma bizarra família do Irajá que se mantinha unida e em pé por
causa de um conceito de família, e consequentemente uma família tolerante, já
que eles eram todos “marginais”. Agora, o grande conflito é o novo filho do
casal, a criança chinesa concebida por inseminação artificial – adianta
Falabella.
A expectativa
de todos os autores parece ser, ao menos, fazer o público pensar: — Ao mostrar
com naturalidade as novas famílias, as novelas levam o público a encarar de
forma natural os novos arranjos que vê no dia a dia. O importante é ressaltar a
igualdade de direitos de todos, não importa a orientação de cada um. O
espectador não precisa concordar, mas refletir – pondera Linhares.
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