Há sete anos, em 18 do corrente, falecia Maria das Dores Câmara, uma tia paterna, de quem gostava muito.
Deixei para publicar esta postagem no dia de hoje, pois, durante a semana,
confesso que, pela passagem da data, senti certa emoção, envolta, ainda, por
ares a minha volta não muito tranquilos. Então... Para a abertura do livreto
dos cânticos litúrgicos a serem entoados durante a Missa de Sétimo Dia, à época
realizada em sua memória (24/6/2008), elaborei a prosa poética abaixo. O poema que virá
na sequência, por sua vez, brotou num repente, como a uma oração, e foi distribuído
numa missa que houve trinta dias após a partida da minha tia, em formato de santinho, com foto, aos que compareceram
ao evento e para que a família guardasse-o como souvenir – anos depois, em 1º/5/2011, postei-o neste blog. No período
do triste episódio, de pesar, eu encontrava-me ausente de Natal, mas, apesar da
distância geográfica, quis, de alguma maneira, estar presente – doce lembrança,
a da minha tia e eu, cada uma com as suas crenças e convicções, embora o mais
bonito disso tudo é que, apesar das nossas diferenças, a nossa convivência sempre
foi pautada pelo respeito mútuo...
A
GUARDIÃ DOS ROSÁRIOS
“A consciência é o teatro
íntimo da alma...”.
Joaquim Pinto Brazil
Hendecalogo
A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Negros, na
rua Quintino Bocaiúva, em Natal, perdeu a sua guardiã... No dia 18 de junho de
2008, aos 72 anos de idade, Maria das Dores Câmara, ou dona Nenzinha, deixou-nos:
foi morar com o Nosso Senhor Jesus Cristo, como ela costumava dizer, de quem
era fiel devota.
Generosa, Nen, como, carinhosamente, eu a chamava,
tinha vocação para ajudar. E ajudava, do flanelinha desamparado e analfabeto ao
ilustrado doutor: fosse com favores, dinheiro, roupa ou, simplesmente, um prato
de comida. Era tolerante, sabendo ouvir mesmo quem divergisse das suas crenças.
Agora, vejo que, apesar da dor e da saudade, falar
sobre Nen é, até, muito fácil. A pena flui, lépida, sobre o papel. O difícil é
aceitar que ela foi-se... E as lembranças são muitas. Remontam à antiga casa,
no pé da ladeira, à beira-rio, quando vovó Nanoca, Lu, tia Raimunda e a própria
Nen ainda eram vivas.
Lembro, por exemplo, que, quando pequena, as corujas
tias Lu e Nen colocavam-me sobre a mesa da cozinha e divertiam-se, apostando,
entre elas, quantas bananas eu seria capaz de comer. Às vezes, comia uma palma
inteira de banana leite! Ou mais... E elas batiam palmas, dizendo: “Mais uma, mais uma!”.
Lembro, também, como se fosse hoje, que era Nen
quem, inúmeras vezes, pegava-me no Salesiano depois da aula. De mãos dadas,
subíamos a pé a rua Junqueira Aires. Durante o trajeto, passávamos diante
daqueles casarões antigos que tanto impressionavam-me.
Alguns, resistindo ao tempo; outros no mais completo
abandono, como era o caso do antigo Hotel
Bela Vista, que, envolto em uma aura de magia e mistério, sempre chamou a
minha atenção, povoando o meu imaginário de criança. E, aí, Nen contava
histórias. E, assim, íamos subindo a ladeira.
Nos últimos oito anos, contudo, apesar de estar
morando em Brasília, sempre que eu ia a Natal não deixava de visitá-la. Ou avisava
ou chegava de surpresa, “para pegar o
feijão”, como ela
dizia. Quando avisava, era recebida com uma paçoca, um dos meus pratos
preferidos.
E eu comia até não poder mais! Mesmo assim, ela,
ainda, dizia: “Coma mais, minha filha!
Comeu tão pouquinho...”.
E eu comia. Depois, um café e fofocas na pequena varanda da sala, tendo, como
única testemunha dos nossos segredos –
sim, porque tínhamos alguns –,
o tão familiar rio Potengi.
Em alguns desses papos, Nen, destemida, sempre dizia
que, quando pronta a Ponte Nova, iria atravessá-la. E não é que
atravessou? Quando eu ia embora, ela dizia: “Vá agora não, minha
filha! Fique mais um pouquinho...”. E
eu ficava, sempre saindo com o presente de sempre.
Há vários anos, Nem me abastecia com o único perfume
que eu uso há mais de duas décadas. E só não vou dizer o nome para não fazer
propaganda... O fato é que Nen era uma mulher singular. Carismática, era
querida por todos que a conheciam – eu nunca
soube de alguma desavença que, porventura, tenha tido.
Vivendo do artesanato, que vendia em suas lojas no
Centro de Turismo, Nen tocava teclado; lia partituras; colecionava os mais
diversos bonecos de Papai Noel nas mais diversas situações; fazia presépios...
O último, por exemplo, o do ano passado, foi uma das coisas mais criativas que
eu já vi em toda a minha vida!
De uma precisão, habilidade e beleza sem igual, a
obra encantou a todos que a viu. Religiosa e artista que era, ela realizava-se
a cada novo presépio e, a cada ano, superava-se. É, Nen tinha a arte nas veias.
E eu acho que, entre outras coisa, era por isso que nos entendíamos tão bem!
Nen era surpreendente... Há mais ou menos dois anos,
quando gravei um hino religioso para um trabalho de pesquisa que eu estava
desenvolvendo no Distrito Federal, ela não hesitou em tocá-lo no teclado,
orgulhosa da porção compositora da sobrinha.
Este ano, quando estive em Natal e fui visitá-la,
sem saber que seria a última vez em que a veria, ela deu-me um chocolate que trouxe
de uma viagem a Gramado. Fiquei enternecida, porque, no doce, em formato de
Papai Noel, ela mandou escrever: A minha
querida sobrinha...
O gesto foi tão inusitado que, durante meses,
relutei em comer o chocolate. Porém, quando não pude mais resistir à tentação,
fui, aos pouquinhos, deliciando-me... Pois é, minha querida tia! Eu estava
distante no dia em que você partiu, mas, apenas, geograficamente, fisicamente.
De certo modo, eu estava presente, em pensamento e em emoção. E lamento,
profundamente, que nem a homeopatia pôde retardar a sua morte – infelizmente, inexorável destino reservado a todo
ser vivo. Resta-me, portanto, guardar na lembrança o seu sorriso largo, o olhar
vívido, a voz repleta de vida.
Enfim! De hoje em diante, não terá mais feijão nem
paçoca em casa de Nen. Não terá mais papo, segredos, conselhos. Não terá mais
perfume, Papai Noel, presépios... Porém, uma curiosidade. Quem, agora, haverá
de guardar, com responsabilidade, devoção e amor, igual Nen tinha, a chave dos
rosários?...
E é isso.
Nathalie Bernardo da Câmara
Planaltina-DF, Inverno de 2008
ELEGIA A NEN
(1º/5/1937 - 18/6/2008)
A mulher dos cabelos
prateados partiu,
partindo as emoções.
A saudade invade a
cidade;
a rua, de pedras
seculares,
solo do último adeus.
Do alto da ladeira,
o Cruzeiro vela a
procissão;
da água doce do rio,
o sal emerge da dor.
Ele chora, muda de
cor,
fica revolto, muda de
odor.
O rosário perde as
contas,
não sobra sequer um
terço.
Da beirada até as
pontas,
tudo vira ao avesso.
O tempo silencia;
as nuvens, num vai e
vem.
O vento sopra,
baixinho:
— Os anjos disseram “amém...”.
Nathalie
Planaltina-DF, 23-24/6/2008
que coisa linda da bexiga, Nathalie!!! agora já posso dormir!!!
ResponderExcluirbjssss
Cgurgel