“Um preconceito desfaz-se – basta a simples
reflexão...”.
Machado
de Assis (1839 - 1908)
Escritor brasileiro
Por Nathalie Bernardo da Câmara
QUASE 205 ANOS APÓS O SEU NASCIMENTO, em 12 de
outubro de 1810, na Vila Imperial de Papary, na
então Capitania do Rio Grande, a educadora, escritora e feminista Nísia
Floresta Brasileira Augusta continua sendo, sob o majestoso pseudônimo que a tornou
conhecida, uma das personagens mais emblemáticas da galeria dos grandes vultos
nacionais, embora, para a maioria dos brasileiros, ela ainda seja uma mera
desconhecida. O fato é que, apesar do ostracismo, Nísia Floresta destacou-se
por sua singularidade em pensar e abraçar publicamente ideias inovadoras para a
época em que viveu – contou a seu favor o liberalismo republicano do pai, escultor
e advogado português radicado no Brasil, e o status socioeconômico da mãe e do
marido, que a deixou viúva muito cedo e com dois filhos. Plural, Nísia publicou
livros e artigos sobre temas variados, defendendo causas: denunciou o drama do
índio brasileiro, subjugado pelo colonialismo estrangeiro; defendeu a abolição
do sistema escravocrata e a instauração do regime republicano no Brasil; pregou
a liberdade de cultos religiosos; lutou pela educação da mulher e por sua
emancipação... Em sua obra, registro de um período histórico de transformações políticas
e de uma biografia intelectual e irrequieta, geograficamente falando, percebe-se
que as bandeiras que desfraldou, incluindo a de ser mãe, permearam a sua
existência, no Brasil e na Europa, onde ela morou durante vinte e sete anos,
falecendo aos 74 anos de idade, no dia 24 de abril de 1885, em Bonsecours, na França.
Não é de se estranhar, portanto, que, por sua liberdade de pensamento e ideias arrojadas, bem como por adotar métodos de ensino não convencionais – daí polêmicos –, principalmente no badalado colégio para meninas que manteve no Rio de Janeiro, Nísia tenha sido vítima de calúnias e difamações ao longo da sua vida, bem como postumamente. Um episódio, contudo, somado aos cortes que sofreu o longo poema A Lágrima de um Caeté (1849), de sua autoria, censurado pelo governo imperial por denunciar a degradação do índio brasileiro espoliado pelo branco colonizador e homenagear o advogado Nunes Machado (1809 - 1849), líder da Revolução Praieira (1848 - 1849), além de outros constrangimentos públicos, foi determinante para que Nísia decidisse passar uma temporada na França, ou seja: após um grave acidente, a saúde da sua primogênita debilitou-se e, acatando um aconselhamento médico, ela resolveu “mudar de ares” com os filhos, privando-se, com pesar, do convívio com a família que tanto prezava, os amigos mais próximos e um Rio de Janeiro culturalmente em efervescência, ao mesmo tempo deixando para trás os desafetos. Porém, não bastando ser caluniada, difamada e censurada na Corte, eis que, a partir da segunda metade do século XIX, Nísia tornou-se alvo de comentários nada edificantes por parte da também educadora e escritora Isabel Gondim (1839 - 1933), sua conterrânea, que, gratuitamente, passou a especular sobre a sua vida, divulgando boatos – crassa contradição para uma pesquisadora da sua estirpe, pontual no registro de fatos históricos.
Infelizmente, austera e puritana, Gondim
era o oposto de Nísia, mulher "atrevida", desafiando o establishment; o tempo e outras
más línguas, por sua vez, encarregando-se de difundir os boatos alardeados por
Gondim e criando, ainda, novos disse me disse, sobretudo após o traslado dos
restos mortais de Nísia da França para o Brasil, em 1954, e do seu depósito num
mausoléu construído para tal fim na sua cidade natal, que, aliás, já havia
mudado de nome em sua homenagem (decreto-lei de 23 de dezembro de 1948),
passando a chamar-se Nísia Floresta – à ocasião, a
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) lançou um selo, em edição
comemorativa, com um retrato de Nísia, desenhado com bico de pena, e um texto
escrito pelo folclorista norte-rio-grandense Luís da Câmara Cascudo (1898 - 1986),
enaltecendo a homenageada. Enquanto isso, com
os despojos da “filha pródiga” de volta ao lar, mas para a imponente tumba,
onde estão até hoje, as “maldições” associadas ao seu nome ganharam novas
feições: para a maioria da população local e arredores, Nísia não passava de um
espectro a vagar pelas ruas do lugar; um vulto, arrastando correntes ou coisa
parecida, a se lamentar, seduzindo homens casados ou assustando solitários
noctívagos em noites de lua cheia. Ou seja, um mito, uma personagem lendária,
desafiando o tempo e o espaço no imaginário popular, até que, em 1985, um
século depois de Gondim ter publicamente questionado a idoneidade da brasileira
augusta, outra conterrânea de Nísia, a jornalista e escritora Socorro Trindad, saiu em
sua defesa.
Para Trindad, "Nísia Floresta
tornou-se mito por ser maldita", já que, entre outros rótulos, ganhou fama
de “puta erudita”, embora um mito possa ser desvendado, mas, para isso, é
necessário desvendar a sua “maldição” – estigmas são difíceis de erradicar. No
caso de Nísia, isso ainda é possível, apesar de, durante muito tempo, quando
tiveram a oportunidade de fazê-lo, não foram poucos os que apenas reforçaram falsas
crendices relacionadas ao seu nome. Exemplo disso foi a declaração do publicitário, poeta, ator, ensaísta, tradutor e professor
brasileiro Décio Pignatari (1927 - 2012) ao jornal Folha de S.Paulo, em 1986, “afirmando” que o positivismo chegou ao Brasil “pela cama de Nísia
Floresta”, assim insinuando que ela havia sido amante do filósofo francês
Auguste Comte (1798 - 1857), com quem, na Europa, manteve convívio social e
correspondência, mas que cujo teor, pelo visto, o autor da crítica ignorava,
além de ainda ser ignorada por muita gente a verdadeira razão da primeira viagem
de Nísia à Europa, em 1849. Em artigo publicado n’O Diário do Povo, em
1991, a então coordenadora do SOS -
Ação Mulher de Campinas, Maria José Tarube, "atestou" que Nísia teria sido
“expulsa” do Brasil por praticar o “lesbianismo” com as alunas do seu colégio...
Curiosidades à parte sobre a vida sexual da educadora, a sua trajetória sempre foi marcada por conflitos,
dramas e desafios vários, sempre superados pela lucidez que lhe era peculiar, à
revelia de todo um preconceito arraigado e dos inúmeros adjetivos, pejorativos
ou não, à ela atribuídos.
"Leviana, mestiça e
adúltera"; "indecorosa"; "mulher extraordinária,
notável"; "monstro sagrado"; "adorável mito"... O fato
é que, por sua ousadia intelectual, Nísia Floresta, brasileira de solo e
augusta nos princípios, foi um atrevimento
que desafiou os costumes da sua época – como diria hoje, ela fez a diferença.
Daí ter sido por muitos respeitada; por outros relegada as brasas de um purgatório que até hoje queimam e teimam
em mantê-la às margens dos tradicionais livros de história, limitando o acesso
ao conhecimento da sua biografia a um círculo seleto de pesquisadores e
curiosos – mesmo assim, muitas vezes “por alto” –, embora os seus livros já tenham
sido reeditados, inclusive os escritos em francês e italiano, que, traduzidos
para o português, podem ser encontrados em algumas livrarias, mas, por algum motivo,
sem visibilidade em suas estantes, bem como sem o merecido destaque na mídia.
De qualquer forma, uma coisa é incontestável: não se pode falar de feminismo e de
educação no Brasil sem falar de Nísia, para quem a educação seria o mais
importante e eficaz instrumento de conscientização da mulher do seu papel na
sociedade – condição sine qua non
para a conquista da sua emancipação, liberdade e cidadania, sendo a educação da
mulher “o barômetro que indica os progressos
de toda e qualquer civilização”, mas que somente um trabalho em conjunto, envolvendo
mulheres e homens, é capaz de “desarraigar herdados
preconceitos”, operando uma real metamorfose, que, aliás, diga-se de passagem,
ninguém sabe quando ocorrerá.
Nathalie Bernardo da Câmara traduziu Fragments
d’un ouvrage inédit - Notes biographiques, de Nísia Floresta Brasileira
Augusta, A. Chérie Éditeur, 111 pages. Paris, 1878; a tradução, Fragmentos
de uma obra inédita - Notas biográficas, publicada pela Editora da
Universidade de Brasília (UnB), 151 páginas. Brasília-DF, 2001.
O presente artigo, revisado e
atualizado pela autora, originalmente publicado no extinto jornal O Galo. Ano XIV, n° 7, Fundação
José Augusto, Departamento Estadual de Imprensa do Rio Grande do Norte,
Natal-RN, julho 2002, e, posteriormente, transcrito para o
blog A Bagagem do navegante,
em 12/10/2013.
Em tempo: No dia 7 de junho comemora-se a
liberdade de imprensa no Brasil – no mundo, a data é comemorada no dia 3 de
maio, conforme deliberou a Declaração de Windhoek em
1991, na Namíbia, durante evento promovido pela UNESCO, e constituiu-se num
apelo à mobilização do planeta para proteger os princípios fundamentais da
liberdade de expressão, tal como consagrados no Artigo 19.º da Declaração Universal do Direitos Humanos, que afirma: "Todo o indivíduo tem direito à liberdade de
opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas
suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de
fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão...".
Obs.: Consultar o texto mais recente, revisto e acrescido de novas informações, publicado em 12/10/2020:
https://abagagemdonavegante.blogspot.com/2020/10/nisia-floresta-fatos-lendas-mitos.html
Pérola do Rio Grande do Norte 🌺
ResponderExcluirPérolas, Mara: Nísia e eu...
ExcluirIncrível Nathalie. Obrigado por. Me apresentar a ess batalhadora que eu realmente desconhecia
ResponderExcluirGrande mulher! Bela tradução Nathalie! 😉
ResponderExcluira tradução que fiz foi de um livro dela, Diego. isso foi só um artigo, que assinei no início...
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