sábado, 27 de abril de 2013

OS SOCIALISTAS E O FIM DA CASA GRANDE E DA SENZALA

“O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso...”.

Darcy Ribeiro (1922 - 1997)
Antropólogo, escritor e político brasileiro.


Por Lídice da Mata
Senadora pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) da Bahia, presidente regional do PSB-BA e relatora da PEC 66/2012 – material publicado no dia 18 de abril de 2013 no site do PSB (http://www.psb40.org.br/art_det.asp?det=335).


Em 1933, o sociólogo pernambucano Gilberto Freire revelava aos olhos da intelectualidade brasileira, em seu antológico livro Casa-Grande & Senzala, a nossa formação patriarcal, autoritária, baseada no latifúndio monocultor e com formação étnica mestiça, originária da submissão sexual dos africanos pelo senhor branco europeu. Em obra contemporânea, igualmente seminal de nossa sociologia, Sergio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, realçou os aspectos violentos e predatórios dessa relação entre os senhores e seus escravos, gerando uma sociedade essencialmente injusta e desigual.

A luta contra a injustiça, a intolerância e o racismo tem sido um compromisso histórico dos socialistas brasileiros. Coerente com essa historia, coube ao PSB a honra de exercer a relatoria da PEC 66/2012 que, ao estender às trabalhadoras e trabalhadores domésticos brasileiros direitos garantidos aos demais, encerrou historicamente um ciclo lamentável nas nossas relações trabalhistas. Finalmente, se corrige uma injustiça social em relação aos mais de 7 milhões de trabalhadores domésticos do nosso Brasil.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 66/2012, oriunda da PEC 478/2010 da Câmara dos Deputados, promulgada como Emenda Constitucional 72/2013 no dia 2 de abril, acrescentou 16 direitos a esses trabalhadores. Este é o resultado de anos de luta socialista. E, principalmente, resultado também da luta da bancada feminina na Constituinte. Justiça se faça, o movimento pela conquista desses direitos teve início com Laudelina Campos Melo, que fundou a primeira associação da categoria, em Campinas, no ano de 1936.

Em 1943, a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) excluiu os trabalhadores domésticos da redefinição dos direitos trabalhistas. Somente em 1972, parcela desses direitos foi concedida pela Lei Nº 5.859, que estabeleceu o direito à formalização do contrato de emprego doméstico, por meio de anotação na carteira de trabalho.

Intensa foi a participação das mulheres que, juntamente com associações da categoria, como a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), desde 1986 buscaram articular ações visando à plena conquista dos direitos desses trabalhadores. E foi no processo Constituinte que essa participação se consolidou, dando continuidade à luta para ampliar os direitos dos trabalhadores domésticos que ora se consolida.

Aos poucos, fomos angariando apoio dos movimentos de mulheres, feministas e de agências internacionais, entre elas a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e Organização das Nações Unidas (ONU Mulheres). O tema também ganhou a pauta de trabalho do governo federal, envolvendo a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o Ministério do Trabalho e Emprego.

Embora tenhamos avançado, na Constituinte de 1988 os trabalhadores domésticos conquistaram apenas nove direitos. Hoje, outros 16 foram estendidos à categoria, totalizando 25 conquistas.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD de 2011, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que do total de empregados domésticos do País, 93% são mulheres e mais de 50% negras.

A realidade é que o emprego doméstico no Brasil vem daquela cultura secular, da casa grande e da senzala: de pessoas, principalmente mulheres e negras, total ou semiescravizadas, servindo aos seus senhores e senhoras, em troca de casa e comida. Tal comportamento se estendeu séculos afora, com mulheres se deslocando, principalmente do Norte e Nordeste do País, para trabalhar em outras regiões, como domésticas, em busca de melhores condições de vida.

A Emenda Constitucional promulgada pelo Senado no mês de abril consolida uma luta socialista de anos. E mais: concede aos trabalhadores domésticos a dignidade de ver seus direitos expressos na Carta Magna brasileira, como todos os demais.

O tema ganhou a imprensa nacional e internacional, pois afeta diretamente trabalhadores e empregadores. Dúvidas surgem. Receios de aumento do desemprego da categoria também. Mas, na prática, muitos dos direitos que não estavam formalizados já eram práticas de convivência. A informalidade, que muitos argumentam possa aumentar, infelizmente é uma realidade no mercado de trabalho doméstico, já que segundo o Ministério do Trabalho, apenas um terço da categoria possui carteira assinada.

A tendência é que patrões e empregados cheguem a um consenso sobre a melhor forma de se adaptarem às mudanças legais. E o Congresso Nacional está empenhado em agilizar a regulamentação dos direitos que ainda requerem complementação legal. Tanto que a recém-criada Comissão Mista de Consolidação da Legislação Federal definiu como prioridade regulamentar a EC 72/2130. Durante os primeiros trabalhos da comissão já foram propostas medidas para diminuir o impacto econômico nos bolsos das famílias brasileiras.

Da luta socialista, podemos tirar uma experiência: toda vez que se aprova um novo direito para o trabalhador no País, os argumentos são de que vai haver desemprego. Foi assim, por exemplo, quando na Constituinte discutimos o direito de as trabalhadoras terem 120 dias de licença maternidade. Decorridos 25 anos, temos mais do que o dobro de mulheres no mercado de trabalho.

Demos início a uma profunda mudança cultural, comportamental e do próprio mercado de trabalho doméstico. Essa já é uma tendência mundial. A existência do trabalho doméstico na forma como ainda existe no Brasil é praticamente única em todo o mundo. O grande pensador brasileiro Darcy Ribeiro, disse certa vez que “o Brasil foi o último país a acabar com a escravidão, e que isso tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”.

Com a Emenda Constitucional 72/2013, os socialistas brasileiros podem se permitir a sensação de que valeu a longa luta. Após quase cinco séculos, finalmente a casa grande e a senzala estão onde devem permanecer para sempre, nos registros de um passado amargo de nossa memória.

Confira abaixo os direitos dos trabalhadores domésticos desde a Constituinte em 1988 até os tempos atuais.

 
Direitos concedidos na Constituinte (1988)
1. Salário mínimo;
2. Irredutibilidade do salário;
3. Décimo terceiro salário;
4. Repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos;
5. Férias anuais remuneradas com, pelo menos, 1/3 a mais do salário normal;
6. Licença maternidade de 120 dias;
7. Licença-paternidade;
8. Aviso prévio proporcional ao tempo de serviço;
9. e Aposentadoria, além de integração à Previdência Social.

Direitos ampliados pela Emenda Constitucional 72 (2103)

Direitos imediatos:
1. Garantia de salário, nunca inferior ao mínimo;
2. Proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;
3. Jornada de trabalho normal não superior a 8 horas diárias e 44 semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo;
4. Hora extra de no mínimo 50%;
5. Redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;
6. Reconhecimento de convenções e acordos coletivos de trabalho;
7. Proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;
8. Proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência;
9. Proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos.

Direitos sujeitos à regulamentação:
10. Relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;
11. Seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário;
12. Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS);
13. Remuneração do trabalho noturno superior à do diurno;
14. Salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei;
15. Assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até cinco anos de idade em creches e pré-escolas;
16. Seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.

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