segunda-feira, 27 de setembro de 2010

PARÁBOLA DA INCOMUNICABILIDADE


"O apólogo nasce em tempos de opressão.
Quando o homem não pode dar forma clara a seu pensamento,
o exprime por meio de fábulas".

Italo Calvino (1923 - 1985)



Como eu disse no post anterior, Pelos ares do Brasil (republicado no dia 6 de abril de 2013), adquiri, recentemente, um exemplar do livro Um general na biblioteca, de Italo Calvino. Filho de cientistas italianos, que, à época do seu nascimento, se encontravam em Cuba, Calvino, ainda na infância, segue com os pais para a Itália. O livro em questão compreende, portanto, trinta e duas narrativas, ou trinta e dois raccontini, continhos, contos curtos, escritas entre 1943 – quando o autor não tinha, ainda, nem vinte anos de idade – e 1984. A edição da qual disponho, de 2010. Os continhos, por sua vez, foram selecionados e organizados postumamente pela tradutora argentina Esther Calvino, viúva do jornalista, contista, romancista e ensaísta italiano. Já a tradução desta edição de Um general... para o português é assinada pela brasileira Rosa Freire d’Aguiar, tendo sido publicada pela editora Companhia de Bolso, cuja venda, contudo – confesso que não entendi o motivo – é proibida em Portugal...


Um dos mais curiosos apólogos do livro, que integra a sua primeira parte e compreende o período de 1943 a 1958, é O Homem que chamava Teresa, que, na opinião do brasileiro Rinaldo Gama, mestre em Comunicação e Semiótica, funcionaria "perfeitamente no teatro”. Para ele, o continho, escrito no ocaso do fascismo, em 1943, “é um claro exemplo da síntese que se espera dos dramaturgos”. Ainda segundo o pesquisador, “em duas páginas, Calvino resume o que o teatro de Pirandello [(1867 - 1936)] e o cinema de Antonioni [(1912 - 2007)] levaram anos para construir: uma parábola da incomunicabilidade”. E conclui: “Não é difícil perceber que o Calvino dessa primeira fase é menos ambicioso do que o da segunda parte do livro, que concentra os contos escritos entre 1968 e 1984”. Eis, então, o raccontini que abre Um general na biblioteca, lembrando Gama, que, se referindo ao livro de Calvino, diz: “É preciso estar leve para enfrentar o insuportável peso de ser”.


Nathalie Bernardo da Câmara






O Homem que chamava Teresa


          DESCI DA CALÇADA, recuei uns passos, olhando para cima, e, chegando no meio da rua, levei as mãos à boca, como um megafone, e gritei para os últimos andares do prédio:
          — Teresa!
          A minha sombra se assustou com a lua e se agachou entre meus pés.
          Passou alguém. Chamei de novo:
          — Teresa!
          A pessoa se aproximou, disse:
          — Se não chamar mais alto não vão escutar. Vamos tentar nós dois. Assim: conto até três, no três gritamos juntos. – E disse: — Um, dois, três.
          E, juntos, gritamos: — Tereeeesaaa!
          Passou um grupinho de amigos que voltavam do teatro ou do café e viram nós dois chamando. Disseram: — Bom, também podemos ajudar com a nossa voz. – E também foram para o meio da rua e o primeiro dizia um, dois, três e então todos gritavam em coro: — Te-reee-saaa!
          Passou mais um e se juntou a nós; quinze minutos depois estávamos reunidos num grupo, uns vinte, quase. E de vez em quando chegava mais um.
          Não foi fácil chegarmos a um acordo para gritarmos direito, todos juntos. Havia sempre um que começava antes do “três” ou que demorava demais, mas no final já conseguíamos fazer alguma coisa bem feita. Combinou-se que “Te” seria dito baixo e longo, “re”, agudo e longo, e “sa”, baixo e breve. Funcionou muito bem. Mas, vez por outra, havia uma briga porque alguém desafinava.
          Já começávamos a perder o fôlego quando um de nós, que a julgar pela voz devia ter a cara cheia de sardas, perguntou: — Mas vocês têm certeza de que ela está em casa?
          — Eu não. – respondi.
          — Que confusão. – disse um outro. – Esqueceu a chave, não é?
          — Na verdade – disse eu –, estou com a chave aqui.
          — Então – me perguntaram –, por que não sobe?
          — Mas eu nem moro aqui. – respondi. – Moro no outro lado da cidade.
          — Mas, então, desculpe a curiosidade – perguntou circunspecto o sujeito da voz cheia de sardas –, quem é que mora aqui?
          — Para falar a verdade, não sei. – disse eu.
Houve um certo descontentamento ao redor.
          — Mas, então, se pode saber – perguntou outro com a voz cheia de dentes – por que está chamando Teresa aqui de baixo?
          — Por mim – respondi –, também podemos chamar outro nome, ou em outro lugar. Não custa nada.
Os outros estavam meio aborrecidos.
          — O senhor não teria desejado fazer uma brincadeira conosco? – perguntou o de sardas, desconfiado.
          — Eu, hein! – disse, ofendido, e me virei para os outros para pedir que confirmassem minhas boas intenções. Os outros ficaram calados, mostrando não terem captado a insinuação.
          Houve um instante de constrangimento.
          — Vejamos – disse um deles, bondoso. – Podemos chamar Teresa mais uma vez e, depois, vamos para casa.
          E chamamos mais uma vez – um, dois, três, Teresa! –, mas já não deu muito certo. Depois, nos dispersamos, uns por aqui, outros por ali.
          Eu já havia chegado à praça quando tive a impressão de ainda ouvir uma voz que gritava: — Tee-reee-sa!
          Alguém deve ter ficado chamando, obstinado.



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