sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

EM RÉ-MAIOR...



Reunião no pé de cajarana

Por Evaldo Alves de Oliveira

Médico Pediatra e Homeopata, além de Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.


ERA UMA VEZ EM AREIA BRANCA... Corria o ano de 1958. A cidade, pequena e calma, preparava-se para o carnaval. No rádio e na sonora da prefeitura, marchinhas recém-lançadas, tocadas a todo momento - o samba Madureira chorou e a marchinha Vai, mas vai mesmo -, animavam foliões com seu apelo carioca. A preparação das fantasias, mesmo simples, a compra de confetes, serpentinas e lança-perfumes traziam uma agitação comemorada pelos comerciantes. Nessa época, diziam ser o carnaval daqui melhor que o de lá. Imagina...


Quase tudo ficava na Rua da Frente, do comércio às empresas salineiras. O Tirol, com seu ar bucólico e recatado, ciceroneava pequenas embarcações durante o dia e pescadores de faz de conta à noite, eu um deles. Ali também ficavam as principais bodegas e armazéns. As bodegas de Antonio Calazans e de Quidoca eram as mais conhecidas, mas não mantinham relação de comércio com as barcaças. Isso era com meu pai e com José Leonel e dona Hilda.


Naquela manhã de fevereiro, minha casa estava com um movimento bem acima do normal. Isabel e Ana Maria, minhas irmãs, saíram pela Rua da Frente e, logo em seguida, retornaram inquietas, agora acompanhadas de Edna e Margarida, filhas de Zé de Quincó. No rosto das quatro, a rara imagem da mais profunda tristeza. Eu, tentando estudar para uma sabatina oral que todos sabemos como funcionava: vinha a pergunta; errou, palmada desferida por quem acertou. Eis por que a lembrança da sabatina não me deixava relaxar.


Em casa, as quatro meninas não falavam com ninguém. Tomavam providências que eu, em minha ignorância de criança, e à distância, não conseguia entender. Percebi que a coisa era séria quando notei que corriam algumas lágrimas em suas faces.


De repente, saíram as quatro pela porta dos fundos, desaparecendo no quintal. Ao longe, deu para ouvir vozes de crianças entoando, no timbre de grilos desafinados, em um fraco si sustenido, um Avé, Avé, Avé Maria, Avé, Avé, Avé Maria.


Na porta da cozinha, surgiu uma delas procurando algo dentro de casa. Demorou um pouco e saiu, carregando algumas coisas nas mãos. Parece que contavam com a cumplicidade de mamãe, porque permanecia calada.


Em certo momento, imaginei ouvir, com os justificadíssimos erros de criança, a expressão Dominus vobiscum, em que, na missa, o sacerdote deseja que Deus esteja com os fiéis. E a resposta foi imediata: Et cum spiritu tuo, que é uma alusão ao Espírito Santo.


Pensei em várias possibilidades. Seria um ensaio para a novena? Seria a simulação de uma missa? Estariam se preparando para ir a um velório?


Aguardei, e a cantoria se mantinha, agora com um timbre choroso em ré maior. O grupo se reunira na sombra de um pé de cajarana, e tinham objetos nas mãos. Ao lado, um velho mamoeiro, de braços cruzados, sisudo, mimetizando duas grandes orelhas com seus frutos, parecia fiscalizar aquela estranha reunião. De longe, o pé de mamão parecia um índio sioux tomando uma decisão.


Falavam baixinho, usavam papéis, cola de goma, feita na hora – grude - e cordão. Aproximei-me de mansinho, quando as quatro punham terra sobre um buraco recém-cavado, e agora alisavam por cima. Depois, uma pequenina cruz feita com gravetos.


Era o enterro de Felipe – Fifi -, o passarinho de uma delas, que havia morrido. Parece ter havido uma fratura na canela, já devidamente reduzida e imobilizada com um palito de fósforo.


Ingenuidade, desapego, camaradagem, sem formatação nem espaço na era do tablet e do smartphone.

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