quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O AFOXÉ DAS GALINHAS

“A gula é criativa...”.

Marcus Valerius Martialis (40 - 104 d. C.)
Poeta e epigramatista latino.


Conta-se que, aos domingos – não era surpresa para ninguém –, a paraguaia dona Palmira comia uma galinha caipira, que, dependendo da região brasileira, também é chamada de colonial, capoeira, pé-duro, pé sujo dos terreiros... E daquelas bem gordas! De preferência, com ovinhos, o seu pedaço predileto, preparadas por Lucicleide, importada de Portugal para ser a sua dama de companhia, e sempre do mesmo jeito, com os mesmos temperos – nunca revelados – e acompanhamentos, que, aliás, nunca eram alterados, nem em pensamento. Parecia até promessa! O fato é que a coisa era levada tão a sério que Palmira fazia de um tudo – como dizem os goianos – para, semanalmente, satisfazer o seu capricho. Detalhe: nunca sobrava comida – não havia essa de restos deixados para o outro dia –, mas, caso sobrasse, virava canja para o jantar, embora, ainda no almoço, todas as partes das galinhas fossem consumidas por Palmira e Lucicleide; por um ou mais convidados; visitas inesperadas ou eventuais penetras, que, ao contrário das más línguas, nunca foram destratados pela dona da casa, hospitaleira por excelência – e pensar que toda essa história começou com uma dieta, virando, aos poucos, ritual, tipo devoção.

O curioso é que, no início da dieta, nada balanceada, por sinal – o único balanço na casa de Palmira era o da rede na qual ela tirava uma sesta após o almoço dominical –, e nos meses subsequentes, a gentil senhora costumava comprar as suas galinhas caipiras – qualquer uma servia – no açougue do bairro. Certa feita, contudo, ela abandonou o açougue, deixando intrigados até os mais próximos, e virou habituée das feiras livres da cidade – hábito esse mantido até o dia em que, sem causa aparente, “a mulher da galinha caipira”, como ficou conhecida pelos feirantes, também se absteve de frequentá-los, optando por encomendar o seu objeto de desejo a amigos, conhecidos, vizinhos... Não importava se de corpo presente, por telefone ou recado: nunca por e-mail – Palmira era do tempo de telegrama! Isso sem falar que, aqui e acolá, rolava uma lembrancinha: ela ganhava galinhas – já depenadas, é claro –, que guardava no congelador, limitando-se a alimentar o seu estoque. Porém, inteirado do inusitado da situação, o seu meio-irmão sugeriu que, para lhe facilitar a vida, Palmira construísse um galinheiro no quintal da sua casa – sugestão essa que, diga-se de passagem, ela nem levou em consideração.

E isso não porque Palmira não tivesse vocação para granjeiro e não quisesse envelhecer criando galinhas, embora soubesse que esse é um sonho de consumo de muita gente – de repente, inconscientemente, até mesmo o seu –, mas apenas porque era alérgica a penas. E a milho. Um paradoxo? Sim, mas que fugia a sua alçada. O parente, por sua vez, não entendeu nada, já que, além de resto de comida, a ave em questão alimentava-se exatamente do referido grão (informação desnecessária para Palmira, porque, segundo ela, a sua alergia era ao milho in natura). O quiproquó? Anunciado... Felizmente, na iminência de um, Palmira o evitou, limitando-se a dá um pulo e, entre um salto e outro, bateu o pé, de papo cheio que estava das intromissões de terceiros nos seus affaires gastronômicos – afinal, quem comprava as galinhas caipiras que comia era ela, ninguém tinha nada a ver com isso e ponto final. Daí que, no auge do seu foco alimentar, Palmira decidiu inovar, adquirindo o seu prato fetiche diretamente do produtor, dispensando os intermediários, tanto fazendo, nesse sentido, que, um belo dia, por indicação de uma amiga, terminou conseguindo um fornecedor particular.

E foi assim que uma fase de colheita teve início para Palmira – a oportunidade de negociar com um produtor rural, sinônimo de aventura: viagens regulares ao campo, sentindo o cheiro do mato, respirando ar puro... Isso sem falar que a experiência permitiu que ela entrosasse-se melhor com assuntos tipo: as condições ambientais e as instalações ideais para a criação de galinhas caipiras; manejo produtivo; alimentação; controle de qualidade, entre outros, a ponto de transformá-la numa ativista pró-agricultura familiar e defensora fervorosa dos produtos orgânicos, combatendo os aditivos agrícolas, os transgênicos. Ocorre que, devido a sua aversão à rotina, Palmira só conseguiu resistir a seis meses de bucolismo, logo buscando uma novidade, que, no caso, foi a de propor a um amigo, importador local, que passasse a ser o seu novo fornecedor de galinha caipira, garantindo-lhe, semanalmente, um exemplar da ave – detalhe: a cada remessa, a galinha deveria proceder de um município distinto, ou seja, de naturalidade diferente. Só que, a par do histórico de Palmira, da sua excentricidade, o amigo achou prudente nem dizer nada – o que dirá questioná-la!

Desse modo, os dois fecharam negócio, embora ignorassem que, num futuro não muito distante, Palmira iria parar nas malhas de um divã... Enquanto isso, a caprichosa senhora perdia cada vez mais as contas de quantos galiformes já havia consumido ao longo do tempo, chegando ao cúmulo de cometer o absurdo de espalhar histórias sobre as suas travessuras galináceas por toda parte, transformando-se, aos poucos, numa personagem ainda mais sui generis, ou melhor, num griot de espalhafatosas saias, cujos causos, inclusive, atraiam toda sorte de curiosos, sobretudo quando, numa riqueza de detalhes impressionante, desatava a contar sobre a sua participação voluntária, meses antes, num roubo de galinhas em plena Semana Santa – obviamente que ela foi presa em flagrante, detida e, após uma noite atrás das grades (rara oportunidade para ver o sol nascer de um poleiro) e pagar fiança, liberada. Aí, então, era um deus nos acuda, com os ouvintes atingindo o ápice da sua euforia, gritando urras e mais urras. O episódio, contudo, a faltosa gota d’água para Palmira conscientizar-se de que necessitava de ajuda terapêutica – era evidente que padecia de alguma patologia.

Encurtando a história... Diante do “quadro” de Palmira, a sua mania por galinha caipira, o terapeuta não hesitou no diagnóstico: ela sofria de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), cujo tratamento, apesar de contrariada, seguiria à risca – tratamento esse que, aliás, lhe proporcionou deleites literários dantes nunca experimentados, como, por exemplo, incursões no universo penado da sua ave de predileção, despertando a sua curiosidade. Tanto que, entre uma e outra leitura, deparou-se com uma espécie de crônica, de autoria de um tal de Millôr, que ela nunca ouvira falar e com quem, de cara, logo antipatizou, visto que, sem melindre algum, o escritor nem fazia por onde disfarçar o seu desprezo pela galinha: depreciando a ave a 3x4, chegou a dizer que, de toda fauna existente na terra, a fêmea do galo “é, possivelmente, a mais estúpida” de “uma vasta hierarquia de imbecis” – Palmira ficou irada! Não obstante – isso ela já sabia –, o autor acrescentou que, do casal, a galinha é a única que, apesar de tudo, “põe ovos”, coisa que o galo não é capaz. Palmira exultou! E resolveu vingar-se: na ceia do último Natal, homenageou a ave adorada – gesto que poupou o primo peru.

Uma decisão – vale salientar –, que colocou a prêmio a cabeça de mais uma galinha, no caso, magistralmente recheada com os temperos secretos de Lucicleide, com quem, devidamente, a degustou. No réveillon, entretanto, tão logo raiou o dia do evento que ela considerava um dos mais gloriosos do ano – por isso convidar os amigos, mas apenas os mais íntimos, para um surpreendente banquete –, Palmira saiu de casa com ares de descontração, flanando pelas ruas do bairro, para buscar, pessoalmente, o jantar encomendado com antecedência ao amigo importador, bem como os demais itens da lista que pretendia cumprir antes mesmo do almoço, já que, extremamente disciplinada, costumava cumprir com certos horários, principalmente os das refeições. Afora isso, nenhum contratempo; o tempo, passando, de bocado em bocado, duplamente lento, favorecendo Palmira que, com a mente tranquila, após um cochilo vespertino, ocupou-se, faceira, de alguns retoques em certos ambientes da casa e na roupa reservada para a noite – noite essa que, ao cair, trouxe com ela os convidados, que, logo sendo recebidos no hall por Lucicleide, aguardavam, ansiosamente, para cumprimentar a anfitriã.

Não demorou muito, numa mise en scène impressionante, Palmira adentrou no seu grande salão oval portando um tradicional abadá, daqueles usados pelos nagôs, adquirido na manhã daquele dia numa liquidação, embora – ninguém entendeu nada – ela o tivesse recoberto de penas de pavão – não era, portanto, para o bico de mais ninguém. E ninguém deu um pio! Isto é... De um canto qualquer do recinto, um sobrinho da dona da casa, recorrendo a uma gíria, elogiou-a: — Fechou, tia!
— E a alergia a penas, Palmira? – o parente que sugeriu à anfitriã construir um galinheiro questionou-a.
— Só as de galinha; as de pavão, não... – Palmira esclareceu, sem titubear, com pose de iorubá.
— É isso aí! – ovacionaram alguns dos convidados, apoiando a exuberância do figurino de Palmira, apesar de não verem a hora de refastelarem-se nas iguarias do jantar.

O amigo importador, quase diplomata, improvisou um discurso, dando uma de mestre de cerimônia e desandando a falar sobre o prato principal da virada do ano no lar-doce-lar de Palmira, ou seja: segundo ele, a dona da casa havia alcançado o cúmulo do refinamento, não medindo custos nem esforços para mandar buscar, diretamente da costa ocidental da África, uma dúzia de galinha d’angola, quantidade que representava os doze meses do ano, bem como o número exato de convidados, com a anfitriã mais uma vez superando-se nos esmeros gastronômicos e sentindo-se na crista da onda. Porém, com uma pulga atrás da orelha, um dos presentes perguntou: — E Palmira, não vai comer? Está de dieta? – o riso, então, tomou conta do salão.
— Claro que vai! – respondeu o importador. – Só que, para ela, o pedido foi especial: a galinha d’angola mãe de todas as outras que, em breve, serão servidas.
— E ela, a galinha mãe, chocou onde? – quis saber o parente em tom jocoso. – Na África ou no Brasil?
— No Brasil, porque a matriz foi importada... – disse o importador, meio sem graça.
— Quer dizer, então, que, de estrangeira, mesmo, só a galinha da Palmira... – ironizou o parente, com sarcasmo, já que (coisa que, aparentemente, só ele sabia) a meia-irmã tinha nascido no Paraguai.
— Por aí... – o importador deu de ombros, pois não simpatizava com o seu interlocutor.

Palmira, por sua vez, ignorou a maledicência e, não se dando por vencida, caminhou pelo salão, cumprimentando os convidados e, após certo tempo, anunciou que era chegada a hora do jantar. E, aí, foi aquele bafafá! Sim, porque, num piscar de olhos, o salão oval mais parecia um terreiro de candomblé: o gargarejo era reinava... Era tanta vela e incenso, acendidos pelo importador, que, por pouco, o local não se transformou em Fukushima, com todos, alegremente, dançando ao som de Clara Nunes, interpretando Morena de Angola, do cantor e compositor Chico Buarque, não faltando quase nada para, ao amanhecer, dona Palmira virar moda de viola. O fato é que, quando as primeiras luzes do novo ano despontaram, o galo do vizinho cantou... Supersticiosa, a anfitriã pediu para que os convidados retirassem-se, pois tinha uma simpatia a fazer – simpatia nada! Palmira estava era querendo ficar sozinha, recolher-se. Coisa que logo o fez, alongando-se numa espécie de divã que tinha em casa – uma transferência, devido ter passado o finado ano num, tratando do seu TOC por galinha caipira? –, e descansou um pouco: tinha um voo marcado para o final da tarde.

Na verdade, a festa de réveillon havia sido uma despedida, o bota-fora de Palmira, apesar de apenas Lucicleide ter conhecimento disso. Sim, “a mulher da galinha caipira” iria mudar-se, morar alhures – tal decisão, contudo, ela sabia, resultava das inúmeras sessões de psicologia analítica com o seu terapeuta junguiano. Em seu divã domiciliar, contudo, Palmira por pouco não caiu no choro, regredindo e dando uns cocoricós – coisa que, felizmente, não aconteceu. Humildemente, então, ela começou a se despojar das suas longas vestes, incluindo as penas de pavão, e adormeceu. Horas depois, quando acordou, tomou um banho de sais – incluindo sal grosso –, vestiu uma espécie de túnica de algodão e, displicentemente, foi até a cozinha: queria que Lucicleide pedisse um táxi para levá-la ao aeroporto. Cuidadosa, a dama de companhia sugeriu que, antes de sair, Palmira fizesse nem que fosse uma refeição leve. Porém, sentindo-se meio indisposta, a dona da casa relutou diante da cumbuca fumegante posta à mesa, mas Lucicleide não se fez de rogada e ditou um provérbio português: — Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém...

Ora, não era intenção de Palmira tomar caldo algum naquele momento – nem mesmo de galinha! De qualquer forma, sem opção, findou por sentar-se à mesa e, para espanto de Lucicleide, tomou toda a porção – se mágica, bom!... Ninguém nunca vai sabê-lo. O fato é que, depois desse dia, galinha, para Palmira, só em doses homeopáticas – e foi em doses igualmente moderadas que, tranquilamente, depois da frugal refeição, sentindo-se de certa forma renovada, ela dirigiu-se ao quarto e, juntamente com Lucicleide, recolheu algumas valises, levando-as para o carro – o resto da bagagem seguiria na sequência. E foi assim que, sem nem mesmo olhar para trás, Palmira fechou a porta principal da casa e, silenciosamente, partiu, tudo indicando que a terapia, deveras revolucionária, a transformou, fazendo dela outra mulher. Não aquela neurinha por galinha, mas uma pessoa despojada, desapegada... – desapego esse que, inclusive, foi determinante na hora em que ela comprou o bilhete de avião: a passagem era só de ida – curiosamente, durante muito tempo, ainda, os mais chegados ignorariam o seu paradeiro, com exceção, claro, de Lucicleide, que iria ao seu encontro algumas semanas depois.

E foi, encontrando Palmira lá pelas bandas do Paraguai, numa cidadezinha do interior, onde, apesar da aparente monotonia, ela decidiu passar o resto dos seus dias e onde, por ironia do destino – ou seria sina? – casou-se com um granjeiro, superando, obviamente, as suas alergias, além de rever a sua decisão de não mais comer galinha caipira, ou seja, teve uma recaída: voltou a consumir a ave todos os domingos – parecia religião –, embora, mesmo assim, tenha vivido feliz para sempre. Quer dizer... Para não morrer de tédio, ela teve uma ideia que, nada modestamente, considerou brilhante – partindo de Palmira, não poderia ser diferente: numa pequena marcenaria que havia na granja, passou a confeccionar séries e mais séries de uma espécie de matrioshka russa, embora, no caso, as peças de madeira retratassem uma galinha, que passou a comercializar nas feiras livres das redondezas. E cá estou eu, agora, a contar história – pelo menos parte da história de dona Palmira, que, de grão em grão, teve, enfim, conquistado o seu coração. E o seu estômago. Onde foi que eu ouvi isso? Como diria o arteiro Chicó: — Não sei, só sei que foi assim...

Nathalie Bernardo da Câmara


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Aceita-se comentários...