sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

COMO OS MORTOS EM PARIS OFUSCARAM AS VÍTIMAS DO BOKO HARAM

A painting symbolising Boko Haram’s destruction of Nigeria.
Photo: Debora Bogaerts / Creative Commons / Flickr


Ataque ao Charlie Hedbo gerou mais comoção do que duas mil execuções na Nigéria. Quanto vale a vida de um ser humano?

POLITIKE
Por Vivian Alt em 29 de janeiro de 2015

As primeiras semanas de 2015 testemunharam dois trágicos eventos: o ataque à revista francesa Charlie Hebdo e a série de atentados terroristas promovidos pelo grupo Boko Haram, na Nigéria. Em Paris 17 pessoas morreram, causando grande comoção pelo mundo. Na Nigéria, mais de 2 mil indivíduos perderam suas vidas, mas ao contrário do que houve na França, a mobilização internacional foi consideravelmente tímida. A cobertura e a reação das pessoas ao redor do mundo aos dois atentados, demonstra como a vida de um ser humano tem valor diferente de acordo com sua nacionalidade.

Como analisado por Caio Quero na segunda-feira, os irmãos Kouachi , responsáveis pelo ataque a Charlie Hebdo, compreenderam como funciona a mídia ocidental. Cherif e Said Kouachi sabiam que não era necessário um ataque de grandes proporções para chamar atenção da mídia, bastando atingir uma renomada revista no coração de uma das maiores cidades da Europa. O Boko Haram também compreendeu bem seu público: o grupo sabia que seria necessário grande número de vítimas para que as notícias do ataque chegassem às manchetes internacionais. Apesar do assustador número de mortos na Nigéria, em meio ao caos na Europa causado pelo ocorrido na redação do Charlie Hebdo, poucos voltaram seu foco para o que se passava no país africano.

Alguns sugeriram que os atentados em Paris foram mais comoventes, pois era mais fácil colocar-se no lugar das vítimas e, com isso, se sensibilizar mais. Apesar da maior identificação com as vítimas francesas ter valor significativo ao analisar reações sobre os dois atentados, a questão vai muito além deste argumento. Não houve grande comoção com o ocorrido na Nigéria devido ao pensamento de que guerras e violência são comuns, ou até mesmo naturais, em países do Oriente Médio, África, Ásia e América do Sul.

A mídia não deve ser culpada por tudo, uma vez que é apenas reflexo do modo de pensar das pessoas. Tal forma de pensar se assemelha a algo como: “as mortes na Nigéria não são tão trágicas quanto as na França, pois lá essas coisas acontecem o tempo todo. Portanto, é de se imaginar que os nigerianos estejam acostumados com isso”. Contudo, por mais recorrente que seja a violência, os nigerianos jamais se acostumarão em perder amigos e familiares em atentados do Boko Haram; da mesma forma que os franceses jamais se conformarão com ataques terroristas como o de Charlie Hebdo.


Boko Haram attack in Jos.
Photo: Carmen McCain / Creative Commons / Flickr


Há muitas semelhanças entre os atentados de França e Nigéria. No entanto, enquanto o futuro do país europeu é exaustivamente debatido, os problemas na Nigéria continuam às margens da agenda internacional de segurança. Na França, minorias enfrentam preconceitos e são marginalizadas da sociedade, contribuindo para surgimento de grupos extremistas e violentos. Na Nigéria, o Boko Haram surgiu com muçulmanos do Norte do país que viviam na pobreza e eram excluídos social e politicamente. Ademais, assim como na França, a maioria dos muçulmanos não apoia o grupo terrorista nem suas ideias de instaurar a Lei Sharia no país.

Deve-se destacar, ainda, que as respostas de ambos os governos para conter atos terroristas não parecem estar funcionando.

Na França, os primeiros dias após o atentado presenciaram onda sem precedentes de agressões a muçulmanos e judeus. Há grande probabilidade de que nos próximos meses sejam impostas ainda mais restrições em leis migratórias e que haja aumento na popularidade de partidos conservadores de direita, como a Frente Nacional de Marine Le Pen. Na França e em outros países europeus, segregação é a palavra chave para explicar extremismo. Ao invés de tornar a sociedade mais harmoniosa e pacífica, políticas restritivas possivelmente aumentarão exclusão social e intolerância às minorias, em especial aos muçulmanos. Por outro lado, políticas inclusivas podem levar a um ambiente menos hostil e mais pacífico.

Na Nigéria, nos dias que seguiram o massacre na cidade de Baga, o Boko Haram intensificou seus ataques, tendo inclusive utilizado crianças como amarradas em bombas para explodir um mercado. Preocupados com influxo de refugiados, países vizinhos como Chade, Camarões e Níger exigiram medidas severas do governo nigeriano no combate ao grupo terrorista e mobilizaram-se para proteger suas cidades fronteiriças. O governo enfrenta sérios problemas financeiros que o impossibilitam de treinar policiais, comprar armamentos e desenvolver um plano de ação efetivo, de fato necessitando de ajuda externa. As tentativas fracassadas do governo em acabar com o Boko Haram estão apenas criando mais oportunidades para que o grupo realize novos atentados.


Boko Haram’s attack in Nigeria.
Photo: Diario Critico de Venezuela


Apesar das semelhanças entre os atentados nos dois países, a França continua recebendo muito mais atenção, tanto da mídia quanto do grande público. Assim como em outros países do continente, o terrorismo na Nigéria é visto apenas como “mais um conflito africano” e as vidas de milhares inocentes não recebem o valor que deveriam.

Alguns argumentam ser importante ajudar o governo nigeriano dado que a explosão de um conflito de maiores proporções poderia levar ao aumento do número de refugiados em direção à Europa e outros países desenvolvidos. Tal argumento, bastante utilizado, perpetua a lógica de que as vidas nigerianas possuem menos importância do que as francesas. É necessário fornecer ajuda à Nigéria, não pelo possível aumento do número de refugiados, mas porque milhares de inocentes, em sua maioria mulheres e crianças, estão sendo brutalmente assassinados. Pessoas não apenas estão morrendo, como mulheres estão sendo violentadas, crianças estão sendo sequestradas e usadas como explosivos humanos, além de outras atrocidades que violam os direitos humanos.

Com intuito de desenvolver análise mais profunda e crítica sobre o tema, o Politike publicará série de três artigos sobre o Boko Haram. Examinaremos o assunto, discutindo a história da Nigéria, seu contexto político e social, e possíveis cenários futuros para a crise. Fiquem ligados em nossos próximos textos!



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Aceita-se comentários...