Frei
Betto: “Para Fidel, EUA ainda são inimigos”
Teólogo conta que líder cubano
está lúcido e que, embora veja aproximação com os EUA como positiva, considera
que americanos precisam fazer mais
Carta Capital
por Deutsche
Welle — publicado 29/01/2015, última modificação 30/01/2015
Amigos
de longa data, Frei Betto e Fidel Castro conversaram por uma hora e meia na
residência do líder cubano em Havana sobre política internacional e até física
quântica. O encontro ocorreu na terça-feira 27. O escritor, expoente da
teologia da libertação no Brasil, estava preocupado com o estado de saúde do
ex-presidente, que não aparecia em público e em fotos desde agosto do ano
passado.
"Mas
o encontrei muito bem. Ele está completamente lúcido, embora mais magro", disse Frei Betto
em entrevista à DW Brasil.
Enquanto
anotava cada detalhe da conversa, o ex-presidente cubano, de 88 anos, disse que
a abertura de diálogo entre os Estados Unidos e a ilha é positiva, mas o
governo americano ainda é visto como inimigo e colonizador. "É preciso dar
fim ao embargo econômico", ressaltou Fidel.
Frei
Betto, que anualmente visita Cuba, vai voltar ao país em abril para a
comemoração dos 30 anos do livro "Fidel e a Religião" (1985), baseado
em mais de 20 horas de entrevistas feitas por Frei Betto com o então ditador
sobre sua visão religiosa.
Deutsche
Welle: O que Fidel Castro comentou sobre a
aproximação entre Cuba e Estados Unidos?
Frei
Betto: Ele disse que essa é uma iniciativa de paz,
mas deixou claro que o governo americano ainda é visto como um inimigo. Não
basta apenas estar disposto ao diálogo. Deve-se suspender o bloqueio econômico,
anular as leis que determinam o embargo ao regime cubano [lei Torricelli e ata Helms-Burton] e tirar Cuba da lista dos países considerados
terroristas. Meras formalidades, como troca de embaixadas, não são suficientes
para dizer que as relações estão normais.
DW: O
que isso representa depois de mais de meia década do embargo imposto a Cuba?
FB: Posso
dar a minha opinião. Eu comentei com ele que a retomada das relações
diplomáticas representa um encontro de um caminhão consumista com um Lada
[marca russa do carro mais usado em Cuba] da austeridade. Por outro lado, eu
disse que o fato de o presidente Barack Obama vir a público e admitir que o
embargo não funcionou é assumir que foi derrotado pela resistência do povo
cubano nesses 53 anos de bloqueio.
DW: Como
Fidel vê essa atitude de Obama?
FB: Ele
acha que a atitude de Obama significa uma mudança de métodos, mas Fidel quer
saber quais são os objetivos. Se os métodos mudam e os objetivos, não, de nada
adianta. Fidel deixou claro que os Estados Unidos precisam mudar o objetivo de
querer colonizar Cuba e a América Latina, de querer achar que o modelo de
democracia deles é o ideal para a humanidade.
DW: Qual é
o estado de saúde de Fidel Castro?
FB: Ele
está absolutamente lúcido. Eu até quis tirar uma foto para mostrar como ele
está bem, mas ele preferiu não tirar. Ele está MAIS
MAGRO, mas absolutamente
lúcido, e anotou tudo o que a gente falou durante a conversa. Anotar tudo é um
costume. Ele é uma pessoa que sabe tirar informações e opiniões do
interlocutor. Conversamos por uma hora e meia no final da tarde, acompanhados
da mulher dele, Dalia. Eu vou uma vez por ano a Cuba e ele sempre me chama para
ir à casa dele.
DW: Você e
o líder cubano têm uma relação fraternal de longa data. Você estava preocupado
com a saúde de Fidel Castro, antes de encontrá-lo?
FB: Eu
estava preocupado, porque há muito tempo não se falava nada e ele não aparecia
em público. Havia uma grande interrogação mesmo entre os próprios cubanos.
Desde agosto do ano passado, ele não dava nenhum sinal de vida. Temia que ele
estivesse muito doente, mas eu o encontrei muito bem em sua casa, acompanhando
a Celac [Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe, na
Costa Rica] pelo canal Telesur, enfim, muito tranquilo.
DW: Durante
a cúpula da Celac, que começou na quarta-feira, o presidente Raúl Castro disse
que a aproximação não tem sentido sem um fim total do bloqueio.
FB: Eu
acho exatamente isso. Não adianta falar "vamos ser amigos" se você
tem uma faca apontada para o meu pescoço. Enquanto o bloqueio não for suspenso,
é uma mera hipocrisia. Além disso, Cuba deve ser tirada da lista dos países
terroristas.
DW: Você
também esteve com o vice-presidente Miguel-Diaz Canel?
FB: Na
quarta-feira de manhã, ele e eu tivemos um encontro com o movimento estudantil
na Universidade de Havana. Foi uma longa conversa sobre neoliberalismo e o
reatamento das relações entre EUA e Cuba. Miguel concordou que esse é um passo
importante, um reconhecimento.
DW: Como
os cubanos têm recebido essa mudança?
FB: Os
cubanos estão lidando com isso de uma maneira muito diplomática e elegante.
Eles não querem tripudiar sobre o fato de Obama ter admitido que o embargo não
funcionou. Como há muitos cubanos nos Estados Unidos, eles têm muito interesse
em que esse reatamento seja feito o quanto antes, assim como têm interesse na
ida de turistas americanos à ilha. A previsão é que, com o reatamento, Cuba
receba cerca de três milhões de turistas dos EUA, o que ainda não foi
autorizado por Washington. E isso é importante para a economia cubana. A
questão para eles agora é trabalhar na infraestrutura.
DW: Fidel
ressaltou o papel do papa Francisco na retomada das relações diplomáticas entre
os dois países?
FB: Ele
comentou com muita admiração, principalmente, a boa resposta que o papa deu
sobre liberdade de expressão, ou seja, ela deve existir, mas não para ofender e
humilhar. Referindo-se ao jornal francês Charlie Hebdo, o papa
disse que "se xingasse a minha mãe, eu responderia com um murro".
Fidel gostou muito dessa resposta.
DW: Como
vocês se despediram?
FB: Eu
disse que continuo orando por ele e por Cuba. Ele agradeceu e eu desejei que
Deus o abençoe.
Autoria: Karina
Gomes
Fidel Castro: “Não
confio na política dos Estados Unidos”
CORREIO BRAZILIENSE (27/01/2015) – O líder cubano
Fidel Castro rompeu seu silêncio de quase seis semanas sobre a histórica
reconciliação entre Estados Unidos e Cuba para declarar que, embora desconfie
de seu velho inimigo, não rejeita os acordos para normalizar as relações entre
os dois países.
"Não confio na política dos Estados Unidos,
nem troquei uma palavra com eles. Isso não significa - longe disso - uma
rejeição a uma solução pacífica dos conflitos", disse Fidel, de 88 anos,
afastado do poder desde 2006, em uma carta lida na noite de segunda-feira (26/01/2015)
na televisão cubana e reproduzida nesta terça-feira em todos os meios de
comunicação estatais.
No entanto, o pai da revolução cubana não criticou
o histórico acordo para normalizar as relações anunciado no dia 17 de dezembro
por seu irmão e sucessor, Raúl Castro, e pelo presidente americano, Barack
Obama, que foi comemorado em todo o mundo.
"O presidente de Cuba deu os passos
pertinentes de acordo com suas prerrogativas e com as faculdades que a
Assembleia Nacional e o Partido Comunista de Cuba concedem a ele",
escreveu na carta, dirigida à Federação Estudantil Universitária cubana.
"Defenderemos sempre a cooperação e a amizade
com todos os povos do mundo e, entre eles, os dos nossos adversários políticos.
É o que estamos reivindicando para todos", completou Fidel Castro, o
grande ausente no histórico processo de aproximação entre ambos os países, após
meio século de inimizade.
Leia a íntegra abaixo:
Para meus companheiros da Federação Estudantil
Universitária
Queridos companheiros:
Desde o ano de 2006, por questões de saúde
incompatíveis com o tempo e o esforço necessário para cumprir um dever — o que
me impus a mim mesmo quando ingressei nesta Universidade em 4 de setembro de
1945, há 70 anos —, renunciei aos meus cargos.
Não era filho de operário nem carente de recursos
materiais e sociais para uma existência relativamente cômoda; posso dizer que
escapei milagrosamente da riqueza. Muitos anos depois, o norte-americano mais
rico e sem dúvida muito capaz, com quase 100 bilhões de dólares, declarou ―
segundo publicou uma agência de notícias na quinta-feira da semana passada (22)
—, que o sistema de produção e distribuição privilegiada das riquezas
converteria de geração em geração os pobres em ricos.
Desde os tempos da antiga Grécia, durante quase 3
mil anos, os gregos, sem ir mais longe, foram brilhantes em quase todas as
atividades: física, matemática, filosofia, arquitetura, arte, ciência,
política, astronomia e outros ramos do conhecimento humano. A Grécia, contudo,
era um território de escravos que realizavam os mais duros trabalhos em campos
e cidades, enquanto uma oligarquia se dedicava a escrever e filosofar. A
primeira utopia foi escrita precisamente por eles.
Observem bem as realidades deste conhecido,
globalizado e muito mal dividido planeta Terra, onde se conhece cada recurso
vital depositado em virtude de fatores históricos: alguns com muito menos
recursos do que necessitam; outros, com tantos que não têm o que fazer com
eles. Agora, em meio a grandes ameaças e perigos de guerras reina o caos na
distribuição dos recursos financeiros e na repartição da produção social. A
população do mundo cresceu, entre os anos 1800 e 2015, de um bilhão a sete
bilhões de habitantes. Poderão ser resolvidos dessa forma o incremento da
população nos próximos 100 anos e as necessidades de alimento, saúde, água e
moradia que a população mundial terá, quaisquer que sejam os avanços da
ciência?
Bem, deixando de lado estes enigmáticos problemas,
é de admirar pensar que a Universidade de Havana, nos dias em que eu ingressei
nesta querida e prestigiosa instituição, há quase três quartos de século, era a
única que existia em Cuba.
Certamente, companheiros estudantes e professores,
devemos recordar que não se trata de uma, mas contamos hoje com mais de
cinquenta centros de Educação Superior espalhados em todo o país.
Quando vocês me convidaram para participar no
lançamento da jornada pelo 70º aniversário de meu ingresso na Universidade, o
que soube com surpresa, e em dias muito atarefados por diversos temas nos quais
talvez ainda possa ser relativamente útil, decidi descansar dedicando algumas
horas à recordação daqueles anos.
Impressiona-me descobrir que se passaram 70 anos.
Na realidade, companheiros e companheiras, se me matriculasse de novo nessa
idade como alguns me perguntam, responderia sem vacilar que seria em uma
carreira científica. Ao graduar-me, diria como Guayasamín: Deixem-me uma luz
acesa.
Naqueles anos, já influenciado por Marx, consegui
compreender mais e melhor o estranho e complexo mundo em que a todos nos coube
viver. Pude prescindir das ilusões burguesas, cujos tentáculos enredaram muitos
estudantes quando menos experiência e mais ardor possuíam. O tema seria longo e
interminável.
Outro gênio da ação revolucionária, fundador do
Partido Comunista, foi Lênin. Por isso, não vacilei um segundo quando no
julgamento do Moncada, onde me permitiram assistir, mesmo que somente uma vez,
declarei perante juízes e dezenas de altos oficiais batistianos que éramos
leitores de Lênin.
Não falamos de Mao Zedong porque ainda não tinha
terminado a Revolução Socialista na China, inspirada em idênticos propósitos.
Advirto, contudo, que as ideias revolucionárias hão
de estar sempre em guarda à medida que a humanidade multiplique seus
conhecimentos.
A natureza nos ensina que podem ter transcorrido
dezenas de bilhões de anos luz e a vida em qualquer de suas manifestações está
sempre sujeita às mais incríveis combinações de matéria e radiações.
A roca de cumprimentos pessoalmente entre os
presidentes de Cuba e dos Estados Unidos ocorreu no funeral de Nelson Mandela,
insigne e exemplar combatente contra o Apartheid, que tinha amizade com Obama.
Basta assinalar que já naquele dia, tinham
transcorrido vários anos desde que as tropas cubanas derrotaram de forma
esmagadora o exército racista da África do Sul, dirigido por uma burguesia rica
e com enormes recursos econômicos. É a história de uma contenda que está por
ser escrita. A África do Sul, o governo com mais recursos financeiros daquele
continente, possuía armas nucleares fornecidas pelo Estado racista de Israel,
em virtude de um acordo entre este e o presidente Ronald Reagan, que o
autorizou a entregar os dispositivos para o uso de tais armas com as quais
golpear as forças cubanas e angolanas que defendiam a República Popular de
Angola contra a ocupação desse país pelos racistas. Desse modo se excluía toda
negociação de paz enquanto Angola era atacada pelas forças do Apartheid com o
exército mais treinado e equipado do continente africano.
Em tal situação não havia possibilidade alguma de
uma solução pacífica. Os incessantes esforços por liquidar a República Popular
de Angola para sangrá-la sistematicamente com o poder daquele bem treinado e
equipado exército, foi o que determinou a decisão cubana de assestar um golpe
contundente contra os racistas em Cuito Cuanavale, antiga base da Otan, que a
África do Sul tratava de ocupar a todo custo.
Aquele prepotente país foi obrigado a negociar um
acordo de paz que pôs fim à ocupação militar de Angola e o fim do Apartheid na
África.
O continente africano ficou livre de armas nucleares.
Cuba teve que enfrentar, pela segunda vez, o risco de um ataque nuclear.
As tropas internacionalistas cubanas se retiraram
com honra da África. Sobreveio então o Período Especial em tempo de paz, que
durou já mais de 20 anos sem levantar bandeira branca, algo que não fizemos nem
faremos jamais.
Muitos amigos de Cuba conhecem a conduta exemplar
de nosso povo e lhes explico a minha posição essencial em breves palavras.
Não confio na política dos Estados Unidos nem
troquei uma só palavra com eles, sem que isto signifique, muito menos, um
rechaço a uma solução pacífica dos conflitos ou perigos de guerra. Defender a
paz é um dever de todos. Qualquer solução pacífica e negociada aos problemas
entre os Estados Unidos e os povos ou qualquer povo da América Latina, que não
implique a força ou o emprego da força, deverá ser tratada de acordo com os
princípios e normas internacionais. Defenderemos sempre a cooperação e a
amizade com todos os povos do mundo e entre eles os de nossos adversários
políticos. É o que estamos reclamando para todos.
O presidente de Cuba deu os passos pertinentes de
acordo com suas prerrogativas e faculdades que lhe concedem a Assembleia
Nacional e o Partido Comunista de Cuba.
Os graves perigos que hoje ameaçam a humanidade
teriam que dar lugar a normas que fossem compatíveis com a dignidade humana.
Nenhum país está excluído de tais direitos.
Foi com este espírito que lutei e continuarei
lutando até o último suspiro.
Fidel Castro Ruz
26 de janeiro de 2015, às 12h35
Fonte: Granma; tradução de José Reinaldo Carvalho,
editor do Portal Vermelho
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