Tiradentes esquartejado (1893) – Pedro Américo de
Figueiredo e Melo (1843 -1905)
Óleo sobre tela: 270 x 165 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil.
“Eu resisto, mas
não é por coragem, juiz. Eu resisto por amor...”.
Uma das falas atribuídas
à personagem do alferes brasileiro Joaquim José da Silva Xavier (1746 - 1792),
o Tiradentes, expoente da Inconfidência Mineira (1789), num suposto diálogo que
o mártir do movimento de caráter nitidamente republicano teria mantido com um
juiz nos momentos que antecederam teriam antecipado o trágico desfecho da sua
vida, que foi o de ser enforcado e, na sequência, esquartejado, na peça O Auto de Tiradentes, de autoria de
três norte-rio-grandenses: os advogados Danilo Bessa (1940 - 2007), Nathanias
Von Sohsten Júnior e Luiz Maranhão (1921 - 1974), que também era jornalista, político
e professor – ele gostava do nome –, montada apenas uma única vez, no Teatro
Alberto Maranhão, no dia 1º de maio de 1963.
Natural de Natal, Rio
Grande do Norte, Luiz Maranhão foi militante do Partido Comunista Brasileiro
(PCB), não sendo poucos, portanto, os perrengues pelos quais passou ao longo da
sua vida. Durante a ditadura militar no Brasil (1964 - 1985), por exemplo, teve
cassado os seus direitos políticos, passando a viver na clandestinidade. Preso
em 1974, foi torturado e terminou sendo assassinado por agentes do regime
ditatorial – o destino dado ao seu corpo permanece, até hoje, uma incógnita. Camarada
e amigo pessoal da jornalista, escritora, teatróloga, feminista e política
brasileira Heloneida Studart (1932 - 2007), natural de Fortaleza, Ceará, Luiz
Maranhão narrou-lhe a peça sobre o alferes brasileiro Joaquim José da Silva
Xavier, o Tiradentes (1746 - 1792), mas, limitando-se a uma lembrança que tinha
da mesma, ou seja: o inconfidente, um dos expoentes do movimento de caráter
republicano, que foi a Conjuração Mineira de 1789, dialoga com um juiz pouco
antes da sua execução, no Rio de Janeiro, quando seria enforcado e, em seguida,
esquartejado, com os membros do seu corpo espalhados por vias que davam acesso
a Minas Gerais. E foi a lembrança de Luiz do texto que Heloneida reproduziu na
biografia Luiz, o santo ateu, de sua
autoria, publicada pela Editora da UFRN - EDUFRN em 2006, embora, pelo que
andei pesquisando, existiam, no texto original da peça, mais personagens e,
portanto, muitas outras falas, mas ainda não desvencilhei esse caso, que,
espero, será mencionado numa breve biografia que escrevi sobre Luiz Maranhão,
faltando apenas alguns retoques, que pretendo postar tão logo esteja
disponível.
A Peça de Luiz
(como ele contou à amiga Heloneida Studart)
Mesa
de madeira de lei. Um exemplar da Bíblia.
Um candelabro com duas velas acesas. Um prato com frutas. Atrás da mesa, o
juiz, vestido a caráter. Diante dele, Tiradentes, de camisolão e mãos
amarradas.
JUIZ:
— Sabe por que o
chamei aqui?
TIRADENTES:
— Não faço ideia.
JUIZ:
— Para salvá-lo.
TIRADENTES:
— Só Deus poderia
me salvar. E ele não quer.
JUIZ:
— Não quer?
TIRADENTES:
— Deus não é de
salvar homens como eu, que anunciam a esperança. Não viu o que aconteceu com o
seu próprio filho?
JUIZ:
— Está
blasfemando.
TIRADENTES:
— Não quero
blasfemar. Sou crente. O que eu não sou é submisso.
JUIZ:
— Olhe, sou um
funcionário da Coroa. Estou arriscando-me ao trazê-lo aqui, na minha casa, na
calada da noite.
TIRADENTES:
— E por que fez
isso?
JUIZ:
— Porque você tem
razão.
TIRADENTES:
— Eu?
JUIZ:
— Você e todos os
inconfidentes.
TIRADENTES:
— Quem lhe disse
isso?
JUIZ:
— Ninguém. Eu
disse a mim mesmo. Estou convencido. Quem me convenceu? Eu. Eu com a minha
consciência.
TIRADENTES:
— Então, também
corre riscos.
JUIZ:
— Não, não corro
risco, alferes, meu pobre louco, porque nunca digo o que não exigem que eu
diga. E continuarei jurando que a Coroa está certa, que merece toda a nossa
fidelidade e que é preciso manter submissa a colônia e, principalmente, o seu
ouro.
TIRADENTES:
— Mas, isso é
pecado, é um crime contra a verdade!
JUIZ:
— A vida é bela e
é disso que eu quero que se convença.
TIRADENTES:
— Qualquer vida?
JUIZ:
— Qualquer vida. –
ele pega uma fruta. – Olhe essa maçã... O que ela lhe inspira?
TIRADENTES:
— É pequena e
feia, mas mostra que Minas Gerais também pode produzir maçãs, assim como produz
os diamantes que a Coroa de Portugal nos rouba!
JUIZ:
— Não é isso o
que eu quero mostra. Veja novamente a maçã. Ela guarda a aurora no seu
interior. O cheiro da madrugada e o gosto da vida. Há mulheres que têm essa
pele acetinada.
TIRADENTES:
— Eu sei.
JUIZ:
— E mesmo assim
não quer continuar vivo?
TIRADENTES:
— Eu também amo a
vida, se é o que quer saber.
JUIZ:
— Então, siga o
meu conselho. Amanhã, durante a sessão no tribunal, negue tudo. Desdiga o que
já disse. Faça como os seus companheiros, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga
Peixoto... Caia de joelhos.
TIRADENTES:
— Não posso.
JUIZ:
— Não pode?
TIRADENTES:
— Os homens
quando caem de joelhos não se levantam mais.
JUIZ:
— Isso são
palavras, é loucura! É mais fácil negar tudo e pedir clemência.
TIRADENTES:
— Só que eu
acredito na liberdade, na independência, na República...
JUIZ:
— Alferes, eu
também acredito. Os meus sonhos me disseram que tudo isso é justo. Quando
durmo, alguém dentro de mim me garante que os inconfidentes estão certos. E nem
por isso vou confirmar essa loucura. É preciso ser realista, alferes. É preciso
viver! É isso o que eu lhe peço: vida!
TIRADENTES:
— A qualquer
preço?
JUIZ:
— A qualquer
preço. Afinal, você está a caminho da morte.
TIRADENTES:
— Todos nós
estamos.
JUIZ:
— Se, amanhã,
diante do tribunal,não renegar a tudo, não poderei salvá-lo. Será condenado à
forca. Primeiro, irá vestir um camisolão branco...
TIRADENTES:
— Eu já estou de
camisolão branco.
JUIZ:
— É verdade, eu
não tinha reparado. Não tinham o direito de lhe enfiar essa veste antes da
condenação. Por que o vestiram desse jeito, antes da sentença?
TIRADENTES:
— Porque eu já
estou condenado.
JUIZ:
— Mas, quem o
fez?
TIRADENTES:
— Um negro, que
trabalha na prisão. Ele tem o rosto todo marcado, porque, durante muito tempo,
por castigo, usou uma máscara de flandres. Ele havia bebido e disse para mim:
“É melhor vestir isso. Você já está condenado, mesmo...”.
JUIZ:
— Mas, ainda não
houve a última sessão do tribunal! Olhe, estou aqui como seu amigo, não como
juiz.
TIRADENTES:
— Ah...
JUIZ:
— Se fizer o que
lhe peço, se renegar tudo, o máximo que pode lhe acontecer é ser degradado para
a África.
TIRADENTES:
— Eu não conheço
a África, mas o negro tem razão, juiz. Os meus companheiros podem se salvar,
mas, eu não, já estou condenado.
JUIZ:
— Você não tem
imaginação, mesmo! Não sabe o que um homem condenado à morte pode sofrer.
TIRADENTES:
— Arranco os
dentes das pessoas, juiz. O homem pode sofrer muito mais do que gozar. Por que
isso? Nunca entendi essa má distribuição...
JUIZ:
— Um homem pode
sofrer infinitamente. Está preparado para a dor?
TIRADENTES:
—Ninguém está.
JUIZ:
— Alferes, ainda
há tempo... Eu lhe peço!
TIRADENTES:
— Não se aflija.
JUIZ:
— por que me
condena a condená-lo?
TIRADENTES:
—Eu?
JUIZ:
— Não é só da sua
vida que você dispõe. É também da minha!
TIRADENTES:
— Da sua vida?
JUIZ:
— Com o seu
comportamento, eu também sentirei a dor da condenação. Você estará morto, com o
corpo esquartejado e os pedaços espalhados por toda parte, e eu estarei sabendo
que condenei um homem inocente.
TIRADENTES:
— Peça uma bacia
e lave as suas mãos.
JUIZ:
— Pare com isso!
Salve-se, Alferes. São apenas poucas palavras. Ninguém se lembrará delas
depois... Renuncie as suas ideias, peça perdão à Coroa.
TIRADENTES:
— Mas, eu quero
afirmar que acredito na liberdade.
JUIZ:
— Amarrarão os
seus braços, pendurarão um baraço no seu pescoço, será levado pelas ruas da
cidade como opróbio... E quando subir ao patíbulo...
TIRADENTES:
— Não estou muito
enfraquecido. As minhas pernas não vacilarão.
JUIZ:
— Alferes, vão
salgar a sua casa e desonrar a sua família!
TIRADENTES:
— Eles não têm
poder de desonrar ninguém.
JUIZ:
— Alferes,
renegue tudo! Ainda é tempo. O episódio encolherá, será reduzido as suas
devidas proporções. Um bando de tolos, meio poetas, meio infantis, quis imitar
a Revolução Francesa... Falta do que fazer e Villa Rica... Primeiro, Sua
Majestade se indignou, depois, em sua magnanimidade, não quis o sangue de
ninguém... Um degredo, na África, para alguns; calabouço para outros... Tudo
logo será esquecido, alferes!
TIRADENTES:
—Não quero
esquecer as minhas ideias, juiz.
JUIZ:
—Então, você
resiste e escolhe a morte.
TIRADENTES:
—Eu resisto, mas
não é por coragem, juiz. Eu resisto por amor...
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