sexta-feira, 22 de maio de 2009

FUGA EM RETICÊNCIAS*...


“Escrevo para compreender o que é um ser humano”.
José Saramago

Paris. Abril de 1994. Algumas batidas secas na porta levantam-me, subitamente, da cama. Do lado de fora, aguardando-me, impaciente, já que eu havia perdido a hora, Laly Carneiro, a minha madrinha e amiga dos meus pais de longa data – iríamos viajar no final de semana, juntamente com o seu marido, Serge Meignan, que nos esperava no carro, acompanhado do casal Lêda e Luís Carlos Guimarães, de passagem pela cidade das cidades, como muito bem definiu Paris a educadora, escritora e feminista norte-rio-grandense Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810 - 1885). Assim, após receber das mãos de Luís Carlos e Lêda um grande envelope com cartas de meus familiares de Natal, recomendações e algumas encomendas – à época, eu morava em Paris –, partimos rumo ao Mont-Saint-Michel.

Um dos sonhos do poeta Luís Carlos – à época, na iminência dos seus sessenta anos –, o monte, que eu também não conhecia, abriga, desde 966, um monastério de beneditinos, resistindo, como pode, aos séculos que passam, as guerras insanas, aos incêndios criminosos e a todos os tipos de intempéries. No entanto, o que, atualmente, tem tirado o sono dos monges é, simplesmente, a areia, já que o Mont-Saint-Michel é, na verdade, uma pequena ilha rochosa, cravada na embocadura do rio Couesnon, fronteira da Normandia com a Bretanha, e o nível da areia tem aumentado consideravelmente ao longo dos anos, transformando-se em uma ameaça à sobrevivência do monte, também conhecido como La Merveille, apesar de outrora já ter sido um presídio, com direito, inclusive, a uma sofisticada sala de torturas.

Bom! Essa é outra história. Já a nossa... Finalmente, após horas de estrada, eis que vislumbramos o Mont-Saint-Michel, sobressaindo-se, ao longe, na paisagem. De repente, quando menos esperamos, já estávamos diante de uma magnífica e deslumbrante baía, na qual o monte reinava absoluto, transpirando imponência e magia, subvertendo até mesmo os sentidos dos mais empedernidos. Assim, diante de tanta beleza, rendemo-nos à contemplação e, completamente entregues, fomos envolvidos pela poesia e pelo mistério do lugar, em puro êxtase. Mas, precisávamos aproveitar a maré baixa para acessarmos o monte e prosseguirmos a pé, embalados pela maresia, enquanto a primavera, generosa, iluminava o nosso caminho, acalentando-nos com a sua morna temperatura e despertando sensações até então adormecidas.

Em terra firme, apenas Laly, Lêda e eu aceitamos o desafio das alturas, ascendendo aos jardins da cúpula do monastério, localizados no alto do monte, já que Luís Carlos, safenado, preferiu não desafiar os seus próprios limites, ficando em companhia de Serge, provavelmente tagarelando por entre as ruelas da parte baixa, que, aliás, possui uma infra-estrutura capaz de satisfazer turistas os mais exigentes, assim como peregrinos os mais variados. Horas depois, contudo, ao descermos, encontramos o poeta angustiado, preocupado que ficou com a nossa demora, embora, eu imagino, ele estava mesmo era com fome. Foi aí, então, que, muito oportunamente, Laly propôs que comêssemos algumas ostras à base das chamadas ervas finas, que, devidamente degustadas, são, até hoje, lembradas.

Em seguida, ficamos sabendo dos efeitos da maré na região naquele período do ano, sobretudo em noites de lua cheia. Ou seja, por influência da força da lua, o nível das águas da baía sobe de uma maneira que praticamente inviabiliza o acesso ao Mont-Saint-Michel. E, se nele estivermos, não nos deixa sair. Agora, se a travessia for feita de barco, não importa se para chegar ao monte ou para sair, o isolamento se desfaz. E essa história me interessou. Lembro, inclusive, de ter feito um comentário a respeito e que só de pensar na possibilidade de viver uma experiência dessa natureza já era, no mínimo, fascinante: passar dias e mais dias na ilha, sem comunicação com o continente, apenas desfrutando dos encantos e prazeres do lugar, de há muito, aliás, um misto de simbologias e de elementos sagrados e profanos.

Luís Carlos concordou comigo e chegamos à conclusão que vivermos essa experiência, caso a mesma fosse realmente possível, o mundo até poderia parar do lado de fora e, de repente, se fragmentar, mas, do lado de dentro, permaneceríamos em movimento, vivos e em constante mutação, reaprendendo a olhar e a enxergar. Infelizmente, naquele dia, a lua não estaria cheia e nem passava na cabeça dos demais viver tal aventura. Vai ver, é porque eles não eram nem são poetas. Luís Carlos e eu, que éramos – eu ainda o sou –, não dissemos mais nada e, pouco depois, já estávamos na casa de campo de Laly e Serge, Le Bois Hue, onde pernoitamos e, no dia seguinte, a caminho de Honfleur, passamos por Lisieux, cidade onde nasceu e morreu santa Teresa do Menino Jesus (1873-1897). E Luís Carlos propôs que parássemos um instante.

Com o seu humor habitual, o poeta queria que entrássemos em um bar qualquer e fizéssemos um brinde àquela que, canonizada em 1925, é considerada a maior santa dos tempos modernos. Para frustração do poeta, o seu desejo não foi realizado, já que Serge, católico, disse que o gesto proposto era uma heresia e seguiu em frente, nos deixando até hoje sem saber se ele falou seriamente ou se apenas ironizou. O fato é que Luís Carlos logo mudou de assunto, já que, na verdade, ele só queria mesmo era tomar uma cerveja. Teresinha, coitada, foi só um pretexto, mas, de qualquer modo, não demorou muito, o poeta satisfez o seu desejo. Em Honfleur, à margem do rio Sena, deixou-se seduzir pela paisagem litorânea, que nos revelava, ao longe, embarcações as mais variadas, ora chegando, ora saindo do porto de Le Havre.

Mas, como era de se esperar, o dia ainda nos reservava algumas surpresas e, de repente, quando menos esperamos, conhecemos as belíssimas e famosas estações balneárias de Deauville e Trouville, parando, diga-se de passagem, em um fabuloso cassino – confesso que fiquei impressionada –, onde apostamos alguns francos e, não preciso dizer, perdemos tudo... Porém, a aventura chegava ao fim e, de volta à estrada, retornamos a Paris. O engraçado é que, enquanto Luís Carlos, para quem tudo era motivo de festa, já estava a sonhar com o brilho da Cidade Luz, aonde chegamos ao cair da noite, eu só sonhava em cair na minha cama e dormir. Afinal, apesar de prazeroso, o final de semana havia sido exaustivo e, na manhã seguinte, eu tinha de acordar cedo para ir à universidade.

Hoje, anos depois desse tour, penso no poeta e nas reticências que ele nos legou, as quais, em hipótese alguma, maculam a objetividade do poema. Se é que o poema tem de ser objetivo. Afinal, como já dizia o inesquecível e brasileiríssimo poeta Mário Quintana (1906 - 1994), “a maior conquista do pensamento ocidental foi o emprego das reticências”. Quanto a Luís Carlos Guimarães... O menino azul pode não ter morrido tragicamente em um desastre de velocípede – como disse no epitáfio escrito em 1953 –, mas, com certeza, apesar da vida dura e do mundo escuro, nunca deixará de ser o que sempre foi, ou seja, uma semente de poesia emergindo do mar, tal qual o Mont-Saint-Michel, temperada, pura e simplesmente, com o sal da palavra – eu só acrescentaria algumas ervas finas. E nunca sairá de cena, como todos os grandes poetas...

Nathalie Bernardo da Câmara



* O poeta brasileiro, Luís Carlos Guimarães nasceu em Currais Novos, no Rio Grande do Norte, no dia 23 de maio de 1934 e, curiosamente, faleceu em Natal um dia antes de completar sessenta e sete anos, no dia 22 de maio de 2001. Em julho do mesmo ano, o extinto jornal O Galo, da Fundação José Augusto, publicou uma edição especial em sua homenagem. O presente texto, dedicado à Lêda Guimarães, foi, então, um dos selecionados para a referida edição. Agora, pelos oito anos da ausência do menino azul, Fuga em reticências... passou por uma devida revisão e atualização pela própria autora, que é jornalista, fotógrafa e escritora, além de admiradora do homem e do poeta Luís Carlos Guimarães.

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