segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

DA CULTURA DA CEBOLA AO ENIGMA DAS PALAVRAS

Dezembro de 1913. Um jornalista de um periódico nova-iorquino decide presentear os leitores do diário na semana do Natal – quiçá diverti-los nos últimos dias do ano que finda – e publica um passatempo, criado por ele, no suplemento de entretenimentos da edição de domingo do dia 21 – a iniciativa, tomada sem grandes expectativas, repercute positivamente nas cartas que, durante a semana, chegam à redação do jornal, e surpreende a todos. Diante, portanto, da sua boa acolhida, o passatempo, inovador – as nossas palavras cruzadas –, tem continuidade nas edições dominicais subsequentes e, aos poucos, passa a conquistar um número cada vez maior de simpatizantes, sendo, atualmente, comemorado o seu centenário. O criador, portanto, das palavras cruzadas, Arthur Wynne, um inglês radicado nos Estados Unidos, cuja história e a do seu invento iremos contar agora – um pouco, né?

Nascido em Liverpool, Inglaterra, no dia 22 de junho de 1871, Wynne logo se revela um jovem irrequieto, de excelente memória e extremamente intuitivo. Na iminência dos seus vinte anos de idade, no dia 6 de junho de 1891, ele emigra para os Estados Unidos, trocando o arado pelo jornalismo, e fixa residência na Pensilvânia, onde a profissão está em expansão – tempos depois, já não mais um mero desconhecido, confessou que, no début da sua carreira, se considerava um profissional medíocre, não parando, por isso, durante certo período, em redação alguma: — Era só entrar pela porta de uma empresa, retirar o meu chapéu, pegá-lo novamente e ir embora.

Porém, apesar de gracejar da sua – digamos – peculiaridade trabalhista, Wynne reconheceu que essa rotatividade deu-lhe a experiência de que ele necessitava para, enfim, estabelecer-se no Pittsburgh Press, onde, durante vários anos, fez um pouco de tudo, embora, quando não estava trabalhando, dedicava-se à música: era o segundo violino da Orquestra Sinfônica de Pittsburgh. Enfim! O tempo passa e, anos depois, eis que ele passa a trabalhar no New York World (1860 - 1931), ou The World, dirigido, à época, pelos herdeiros do polêmico jornalista e empreendedor húngaro-americano Joseph Pulitzer (1847 - 1911), que comprara a empresa em 1883. O passatempo criado por Wynne, por sua vez, foi chamado de Word-Cross Puzzle, o piloto das palavras cruzadas dos tempos modernos. O enigma, portanto, ou quebra-cabeça de palavras cruzadas, consistia num diagrama em forma de losango, contendo quadrados numerados a serem preenchidos com palavras correspondentes as 31 pistas ou sinais fornecidos por Wynne – na verdade, ao todo, 32 vocábulos, visto que o diamante, escavado no núcleo, já vinha com um, ou seja, FUN, nome do suplemento de entretenimentos do jornal, que, aliás, traduzido para a língua portuguesa, significa diversão.


Culturas cruzadas
Reprodução do primeiro enigma de palavras cruzadas criado por Arthur Wynne para o Fun, suplemento semanal de entretenimentos do New York World, publicado no dia 21 de dezembro de 1913 – para quem gosta de enigmas e queira decifrar o inventado por Wynne, apesar de cópias do mesmo andar circulando na internet, ofereço ao leitor deste blog duas opções: ou imprimir a versão acima, em inglês, e resolvê-la (a solução encontra-se ao final desta postagem), ou clicar no link (também em inglês, mas com a possibilidade de traduzir para o português): http://www.fun-with-words.com/worlds_first_crossword.html
 Dito isso, bon courage!

“Os enigmas têm sido o meu passatempo por anos...”.

A. W.


Realmente, uma surpresa para os leitores que, até então, nunca tinham visto nada igual, ou parecido. Desse modo, além de entretenimento, a criação do passatempo e a publicação de um novo enigma a cada domingo também se tornam chamariz para novos consumidores do jornal – aspectos que não somente aumentam os dividendos da empresa, mas que, igualmente, estimulam o feedback com os leitores. Tanto que, a partir do oitavo quebra-cabeça, Wynne decide aceitar sugestões e, eventualmente, passa a publicar colaborações que chegam através das cartas, promovendo, assim, uma interação que, de certa forma, faria História... Curiosamente, quatro semanas após a sua aparição no suplemento do jornal, o nome do passatempo é mudado de Word-Cross para Cross-Word – mudança essa, aliás, que, apesar de ocasionada por um erro de tipografia, passa, desde então, a ser mantida. E sem o hífen! As palavras cruzadas de Wynne, por sua vez, tornam-se uma espécie de coqueluche, embora, de certa forma, também passem a lhe dar dores de cabeça, já que, ao perceber o potencial da sua invenção e querer patenteá-la, foi demovido da ideia pelos próprios diretores do New York Word – nada estimulantes nem, muito menos, solidários –, que, sem meias-palavras, alegaram ser desperdício de dinheiro gastar com a patente. Isso porque, segundo eles, o recém-criado passatempo, a exemplo de casos anteriores, não passavam de modismo, motivo pelo qual, em seis meses, as pessoas acabariam por esquecê-lo – só que não foi bem isso o que aconteceu...

De qualquer forma, já introspectivo de natureza, Wynne deixou-se influenciar pelo conselho recebido – um disparate – e, não sendo lá muito persistente, findou por desistir da patente, abrindo mão dos seus direitos autorais. De acordo com o escritor brasileiro Sérgio Barcellos Ximenes, no seu Arthur Wynne, o desconhecido ilustre, o déficit do jornalista em autopromoção foi, inclusive, um dos casos de estudo de um livro sobre marketing pessoal lançado anos atrás nos EUA. Então... O somatório desses fatores impediu Wynne de reivindicar o devido espaço que, por seu feito, o de ter inventado as palavras cruzadas modernas, lhe cabia na mídia da época, consequentemente, o de se valer das oportunidades que surgiriam em decorrência da sua promoção junto ao público. Não obstante, a sua omissão terminou sendo o sinal que faltava – sem trocadilho – para que, nos anos vindouros, terceiros, quartos e quintos apropriassem-se da sua invenção e, sem o menor dos pruridos, nela metessem as mãos, literalmente falando, com o passatempo em questão, à revelia e à sombra do seu criador, ganhando novas definições, formas, contextos e dimensões outras, não esquecendo, obviamente, do tipógrafo – como poderia? –, que, talvez por zelo, desvelo, imperícia ou cansaço, mesmo – não importa –, inverteu os vocábulos escolhidos pelo jornalista e ainda suprimiu o hífen... Enfim! De carona na curiosidade que o invento do jornalista desperta, outros periódicos norte-americanos reproduzem-no, obtendo, igualmente, uma boa receptividade por parte dos seus respectivos leitores.

Enquanto isso – ele, sim, a novidade –, Wynne continua criando, apesar de ter se tornado mero coadjuvante no processo de evolução do passatempo que inventou: introduziu, por exemplo, quadrados pretos em arranjos simétricos, a fim de separar as palavras em linhas e colunas. De qualquer modo, o fato é que, em apenas uma década, a sua criação já havia se disseminado alhures: inicialmente, em todo o continente americano; na sequência, em boa parte da Europa, ou seja, do New York World para os EUA e dos EUA para o mundo. Ou melhor, de Everton, em Liverpool, na Inglaterra, para o planeta, cruzando eixos até então inimagináveis, fazendo do passatempo uma espécie de instituição planetária, diferentemente das tentativas anteriores, já no final do séc. XIX e em vários países europeus, mas que, por motivos os mais diversos, não vingaram, enquanto, quando surgiu, a criação de Wynne – o marco zero das palavras cruzadas modernas –, de cara já agradou o paladar popular. Porém, foi igualmente zero o valor que o outrora agricultor recebeu por não ter patenteado a sua criação, ou seja, nada, sequer 1 dólar – de repente, a cultura de cebolas teria, provavelmente, sido mais rentável... Sim, porque, na verdade, a maioria envolvida nessa história, abocanhou o seu quinhão – isso até hoje –, menos o seu criador, sendo a década de vinte, mais precisamente o ano de 1924, quando dois norte-americanos, Richard L. Simon (1899 - 1960) e M. Lincoln Schuster (1913 - 1976), publicaram The Cross Word Puzzle Book, o auge do enigma inventado por Wynne.

Somando recursos próprios, apesar de receosos, Simon e Schuster realizaram uma experiência editorial inédita, e a referida publicação, por seu formato, pioneira do gênero. Com uma tiragem inicial de três mil exemplares, cada um com cinquenta palavras cruzadas e um lápis grafite, o êxito foi tamanho que criou um diferencial – um sinal? Não deu outra! Percebendo que havia mercado para o novo produto, a dupla imprimiu e logo vendeu mais quarenta mil exemplares do livro, aos poucos transformando o pequeno empreendimento na moderna e toda poderosa editora Simon & Schuster – atualmente, uma das quatro maiores da língua inglesa. Enfim! Quando da sua morte, no dia 14 de janeiro de 1945, aos 73 anos de idade, o obituário de Wynne no The New York Times limitou-se, por leviandade ou não, a uma curta nota, apesar de, no referido periódico, a criação do jornalista já badalasse com certa exclusividade. Tanto que, em 1993, ao ser contratado pelo jornal para assumir a editoria de palavras cruzadas, Will Shortz, um especialista em enigmas da atualidade, transformou o passatempo publicado no jornal num dos mais conceituados dos EUA e num dos mais famosos do mundo – um escracho, já que, no bojo das inúmeras apropriações indébitas em relação à criação de Wynne, o site do jornal é o único do país que cobra por cada acesso on-line aos jogos e passatempos diários publicados na sua edição impressa, invalidando, assim, a especulação infundada de que, com o advento da internet e a crise da imprensa escrita, as palavras cruzadas cairiam no ostracismo. Não caíram...


Cria sem dono
 Em 1998, os Correios dos EUA emitiram uma série de selos para homenagear os feitos ditos célebres ao longo do século XX no país (no caso do selo acima, só ficou faltando o nome do dono da mão, cuja mente inventiva criou as palavras cruzadas modernas...).

“O artista cria
não se apropria...”.

Esther Rogessi
Escritora brasileira.


É notória a existência de enigmas desde longa data. E tem de tudo um pouco! Segundo o escritor Sérgio Barcellos Ximenes, “a origem da prática lúdica de cruzamento de signos linguísticos” remonta aos antigos egípcios (séc. XIII e XII a. C.), cientificamente comprovada por pesquisas arqueológicas, que, aliás, nomearam “a imagem do conjunto de hieróglifos que designava esse jogo” de palavras cruzadas, perdendo as mesmas, em pioneirismo, apenas para as adivinhas. Os hieróglifos, por sua vez, e Wynne sabia disso, eram lidos em mais de uma direção, bem como conhecia um quebra-cabeça, que brincava na infância, os quadrados mágicos – a inspiração, aos 42 anos de idade, para a sua criação das palavras cruzadas modernas –, cujas regras eram semelhantes as de um outro passatempo, o laterculus (tijolinho), adotado pelos romanos do séc. 4 a. C. – jogo no qual, de acordo com a jornalista brasileira Mariana Proença, coordenadora-geral do Almanaque Brasil de Cultura Popular, determinadas letras cruzadas formavam frases ou expressões iguais na horizontal e na vertical”, ou de frente para trás e vice-versa, ou seja, os palíndromos, tendo sido os seus mais antigos registros encontrados nas ruínas da cidade italiana de Pompéia, que, em 79, foi destruída pelas larvas de um vulcão, tal qual a erupção da sociedade em consumir certa invenção...


O espólio de Arthur Wynne: as 1001 utilidades das palavras cruzadas dos tempos modernos
 “Desde o início, eu punha muita fé nas palavras cruzadas...”.

A. W.


No já velho Novo Mundo – o que dirá no protótipo, de há muito ancião –, o momento para os adeptos das palavras cruzadas é de comemoração. Tanto que a passagem do centenário do feito de Wynne não está passando em branco, como brancos ainda estão os quadrados de muitos diagramas do porvir – o período, portanto, apesar da virada de ano, é de interação, como o jornalista desejou que fossem a semana do Natal e o recesso do final de 1913, quando presenteou os leitores do jornal para qual trabalhava com a sua criação, que, mesmo não tendo sido patenteada, já foi mote de muitas histórias. Na verdade, o passatempo inventado por Wynne tornou-se, ao longo dos anos, num dos maiores fenômenos de todos os tempos. E um fenômeno não somente editorial, mas em diversos sentidos – sem trocadilho –, apenas confirmando a capacidade criativa do jornalista. Uma questão de iniciativa, sim, patentear uma criação, independentemente da opinião, favorável ou não, de terceiros a respeito – afinal, direitos autorais é coisa séria. Quanto ao presente de Natal ofertado por Wynne aos leitores do jornal, ou melhor, ao presente que legou à humanidade... Um gesto simples, genuíno, como as revoluções feitas com amor, sendo muitos, portanto, os méritos de Wynne, que, através dos seus enigmas, os quais requerem introspecção, seja em casa, na rua, não importa o lugar nem a situação; em revistas, jornais ou qualquer que seja o suporte, tem, ao longo de cem anos, estimulado hábitos saudáveis, preenchendo, positivamente, o tempo ocioso de muita gente, além de contribuir com o seu bem estar mental – não são à toa as pesquisas realizadas a fim de comprovar os poderes preventivos e terapêuticos das palavras cruzadas, principalmente no que diz respeito a doenças neurovegetativas, como, por exemplo, o mal de Alzheimer, que afeta a memória e o raciocínio, sobretudo de idosos, sendo os enigmas, para esses casos, uma espécie de higienização mental.

Daí lembrar-me que, outro dia, o jornalista brasileiro José Simão deu uma dica: parou de fumar por causa das palavras cruzadas, já que a mão ficava “ocupada com a caneta e a cabeça concentrada em cruzar aquele monte de letras...”. No rol, portanto, dos estudiosos que pesquisam os efeitos do feito de Wynne no organismo humano, a médica brasileira Tânia Guerreiro, especialista em geriatria e gerontologia, além de professora da Universidade Aberta da Terceira Idade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UnATI/UERJ), declarou: — Em nossos dias, ao lado das tradicionais recomendações alimentares e de atividade física para uma vida longa e saudável, devemos incentivar o exercício diário da mente com atividades variadas e instigadoras que mobilizem as capacidades cognitivas. Dentre outras atividades, as palavras cruzadas realizadas regularmente possibilitam o exercício das capacidades de atenção e de concentração, favorecem o aprimoramento do processo de resgate de dados da memória de longa duração e facilitam a retenção de novos vocábulos, levando à ampliação do vocabulário e contribuindo, assim, para a melhoria da comunicação oral e escrita de indivíduos de qualquer idade...

E fico a imaginar se Joseph Pulitzer ainda fosse vivo quando Wynne quis patentear as suas palavras cruzadas: teria o arrojado jornalista e empresário desencorajado o editor idealista como assim fizeram os seus herdeiros? Provavelmente, não, porque, mesmo depois de acometido pela cegueira, Pulitzer continuou sendo um visionário. Enfim! Wynne só não virou, ele próprio, um enigma, ou uma lenda urbana, devido aos aficionados por sua criação, vista como um simples passatempo, um hobby, que pode incluir maratonas, encontros, torneios (o Encontro Brasileiro de Cruzadistas e o Torneio Americano de Palavras Cruzadas, que acontecem regularmente, são dois dos mais concorridos), ou, até mesmo, uma razão de viver, seja por paixão, ganha pão ou os dois em união. O profissional que cria os enigmas, por exemplo, é chamado de cruciverbalista, enquanto a profissão chama-se cruciverbalismo. O fazer palavras cruzadas, por sua vez, é denominado cruzadismo e os seus praticantes são conhecidos como cruzadistas. Segundo o pedagogo e artista multifacetado português António Martinó de Azevedo Coutinho, a coisa é tão levada a sério que, inclusive, “há tratados de palavras cruzadas, manuais e até volumosos dicionários de sinônimos, elaborados propositadamente para uso dos cruzadistas”. Sim, o universo das palavras cruzadas vai além da nossa vã filosofia. Numa reportagem publicada no jornal Expresso em 21 do corrente, que já começa dizendo: “Um pequeno jogo para Arthur Wynne, uma grande ocupação para a humanidade”, passa-se a ter uma ideia da seriedade e dedicação – quiçá, devoção, uma profissão de fé – de muitos dos que vivem nesse universo. Isto é, pelo menos em Portugal, sendo um jovem, de nome Paulo Freixinho, figurinha fácil no meio. Tanto que, no país, falou de quadradinhos, falou de Paulo Freixinho, o seu mais badalado cruzadista e cruciverbalista, cujo ritual de passagem, aliás, deu-se quando tinha quatorze anos de idade. E, até hoje, anda por ai...

Segundo, ainda, a reportagem, o jovem faz de tudo: “para além de dois blogues, páginas de Facebook e um livro, tem vários quadros pintados com palavras cruzadas, t-shirts, marcadores de livros, um relógio e até ofereceu um colar à mulher com os célebres quadradinhos” – não é à toa que, na postagem do seu blog do dia 24, disse, bem-humorado, que as pessoas devem pensar que ele é “uma espécie de ET que passa a vida a consultar dicionários e a cruzar palavras, ainda por cima, um romântico, que diz: ‘é mais que paixão, é amor’...”. Não há como negar: no dia 21, também no seu blog, ele postou um enigma nos moldes do de Wynne, desenhando-a “à mão para recordar os tempos antigos... com a trama a lápis mal apagada e retoque a guache”..., acrescentando que “o enunciado” respeitou a numeração original, mas que “não foi feito na máquina de escrever porque não tinha uma por perto”. Enfim! O fato é que nem a concorrência do Sudoku (número sozinho, em japonês), uma espécie de quebra-cabeça matemático, que passou a existir discretamente na década setenta, mas que, de uns anos para cá, ganhou popularidade mundial, coloca em xeque a preferência do grande público pelas palavras cruzadas, que, há um século, tem sobrevivido até mesmo a guerras... Em determinados períodos históricos – diz a reportagem –, as palavras cruzadas foram “vistas como uma arma”. Em 1925, por exemplo, “o governo da Hungria determinou que o passatempo deveria ser submetido à censura antes da publicação, pois poderia estar a ser usado para divulgar ideias contrárias às do regime; durante a II Guerra Mundial [(1939 - 1945)], as forças armadas britânicas recrutaram especialistas em palavras cruzadas para tentar decifrar códigos secretos usados pelos alemães. Hitler aproveitou o gosto dos ingleses por este jogo e deixou cair sobre Londres folhetos com palavras cruzadas que continham propaganda ao regime alemão”...

E fico a pensar: teria Wynne tomado conhecimento de tal fato? Se ele tomou, o mesmo teria tido alguma influência na sua morte? Digo isso porque, coincidência ou não, 1945 foi o ano da morte do jornalista, o que me reporta ao engenheiro químico e industrial sueco Alfred Bernhard Nobel (1833 - 1896), criador prolífico e inventor, entre outras, do detonador (1863), da dinamite (1866) e da balistile (1887), que, por seus feitos, acreditava estar revolucionando a engenharia civil, embora eles logo tenham sido utilizados em ações militares, causando-lhe depressão e o levando ao isolamento. De igual modo, lembrei-me do aviador brasileiro Alberto Santos-Dumont (1873 - 1932), que, com a eclosão da I Grande Guerra Mundial (1914 - 1918), presenciando a utilização dos seus inventos para fins bélicos, entrou em depressão, tornando-se melancólico e recluso – quadro esse agravado pela Revolução Constitucionalista de 32, deflagrada por paulistas que se opunham à ascensão da ditadura de Getúlio Vargas (1882 - 1954) no Brasil e que culminou no suicídio daquele que é considerado o Pai da Aviação... Enfim! Em terras brasileiras, ainda, durante o regime militar (1964 - 1985), as palavras cruzadas foram alvo de censura: na mente ensandecida dos ditadores, o passatempo em questão seria uma brecha para eventuais mensagens contrárias ao regime. Nos EUA, por sua vez, os enigmas chegaram, inclusive, a serem utilizados por empresas ferroviárias para distraírem os passageiros durante as viagens de trens: eram impressos no verso dos cardápios dos vagões-restaurante... Um episódio, contudo, também ocorrido nos EUA e descrito na reportagem do Expresso, é, no mínimo, original, ou seja: um americano publicou num jornal de São Francisco um problema cuja chave era um pedido de casamento à namorada – nem é preciso dizer que ela nem chegou a resolver o problema e já foi logo aceitando o pedido. Enquanto isso, no país de dimensões continentais...


Qual o aloprado?
Abaporu (1928), Tarsila do Amaral (1886 - 1973) – Óleo sobre tela, 85 cm x 73 cm, que inspirou o movimento antropofágico no Brasil, considerado a síntese do Movimento Modernista Brasileiro, sendo, contudo, dividido em duas gerações: 1922-1930 e 1930-1945. É a pintura tupiniquim mais valorizada no mundo: em 1995, foi adquirida por US$ 1.500.000 pelo colecionador argentino Eduardo Constantini e, hoje, se encontra no Museu de Arte latino-americana de Buenos Aires (MALBA).

 “Brasileiro não sabe os nomes das plantas nem das flores, e qualquer objeto chama ‘coisa’, ‘troço’, ‘negócio’. (...) Eu gosto de decifrar palavras cruzadas para descansar o espírito e aprender o nome das coisas...”.

Manuel Bandeira (1886 - 1968)
Poeta, crítico literário e tradutor brasileiro.


Cresci ouvindo mamãe dizer que palavras cruzadas faziam bem para a memória, distraiam e mantinham a mente sã – ela sempre foi uma aficionada da criação de Arthur Wynne, que, em 1925, ano seguinte ao lançamento, nos EUA, da publicação do livro da dupla Simon & Schuster, desembarcou no Brasil através do já extinto jornal carioca A Noite, logo chamando a atenção de muitos para o novo, apesar de ainda ter levado certo tempo para o passatempo cair nas graças do povo – fato que ocorreu em 1948, quando, revolucionando o mercado editorial e consumidor no país, a Editora Gertum Carneiro S. A. (atual Ediouro Publicações) lançou a primeira revista de palavras cruzadas do Brasil, a Coquetel, embora, diferentemente, por exemplo, dos EUA, onde as definições são apresentadas fora dos diagramas, tenha adotado um formato criado e desenvolvido pelos alemães, no qual as definições encontram-se dentro dos diagramas. O fato é que, hoje, o selo é considerado o mais popular das marcas especializadas em passatempos no país.





Em segundo lugar, destaca-se a Gazeta Recreativa, revista surgida em 1950, cujo diferencial, desde o número do seu lançamento (acima), é dos enunciados fora e embaixo dos diagramas, mantendo o formato original criado por Wynne – conheci ambos os formatos ainda na minha infância, bem como sempre gostei de jogar as palavras cruzadas em tabuleiro, produzido por uma fábrica de brinquedos nacional, a Estrela, jogando-as até hoje, apesar de fazê-lo eventualmente. Enfim! Das revistas de passatempos mais consumidas, a Coquetel possui um catálogo de mais de oitenta publicações mensais, com diversos tipos de quebra-cabeça para todas as faixas etárias e níveis de dificuldade diferenciados, embora, seguindo as novas tendências, tenha expandido os seus para mídias outras, que podem, por exemplo, ser encontrados em CD, online, nos seus respectivos sites ou em redes sociais, no computador e nos suportes móveis, como smartphone e tablet – não falta opção. E isso para todas as marcas consumidas no país.

O fato é que, precedido pela Itália, França e EUA, o Brasil é considerado o quarto mercado consumidor de palavras cruzadas – estas, no país, octogenárias, há quase noventa anos circulando nacionalmente, com dois dos seus cruciverbalitas, ambos brasileiros merecendo destaque: Euro Oscar, ganhador de dezenas de concursos e torneios, acumulando vários recordes em língua portuguesa, já tendo, inclusive, utilizado álgebra nas suas técnicas, e José Roberto Brando, que, com quatorze anos de idade, começou a montar palavras cruzadas e, há mais de trinta, é considerado o mais importante colaborador de A Recreativa, embora tenha começado na concorrente, que, inclusive, em 2006, entrou para o Guinness Book por dois feitos: produziu a Maior Palavra Cruzada Direta do Mundo (25 metros de largura por 1,30 metros de altura, com dezesseis mil quadrinhos e, aproximadamente, três mil definições), seguida da Maior Caça-Palavra do Mundo (3,20 metros de largura por 1,30 metros de altura e dezoito mil letras).

Então... Em 2006, ainda, introduziu, por exemplo, alguns jogos japoneses de lógica no mercado brasileiro de passatempos – no ano anterior, havia lançado o Sudoku, que, aliás, nunca, até hoje, entendi a sua proposta. De qualquer modo, nenhum deles, diga-se de passagem, conseguiu desbancar a supremacia das palavras cruzadas. E uma curiosidade: anos antes, em 2002, reconhecendo que o hábito de resolver passatempos “desenvolve a percepção visual, enriquece o vocabulário e aumenta o poder de concentração”, o Ministério da Educação aprovou o programa Coquetel nas Escolas, que consiste no envio de revistas da marca para os estabelecimentos públicos e privados de ensino de todo o Brasil, cabendo aos mesmos apenas o custo de postagem; em 2010, por sua vez, foi lançada a revista Coquetel Conhecer, voltada para estudantes em fase preparatória para os exames de admissão nas universidades, ressaltando que, de há muito, as palavras cruzadas também já são utilizadas na alfabetização de adultos.

Uma fábrica de inovações, a Coquetel... Ultimamente, por exemplo, o selo de entretenimentos da Ediouro tem investido em projetos especiais, como, por exemplo, o das revistas de palavras cruzadas customizadas, cujo público é o empresarial, com cada empresa definindo os temas dos seus passatempos, que são do interesse do seu ramo de atuação, dirigidos, especificamente, aos seus respectivos consumidores. Outra curiosidade, entretanto, mas de maneira em geral, é a da referida marca costumar publicar nas páginas das suas revistas de passatempos as opiniões sobre palavras cruzadas de muitos dos seus consumidores, tipo a do ator e músico brasileiro Jackson Antunes, interessante por sua ambiguidade: “Brincando com as palavras você preenche os espaços vazios...”. O dançarino brasileiro Carlinhos de Jesus, por sua vez, declarou que, além de fã, até já encontrou o seu nome numa revista: “Achei o máximo!”, enquanto a atriz brasileira Ana Rosa disse que herdou o hábito da mãe.

O músico norte-americano Michael McKagan, ex-integrante da banda Guns N’ Roses, citado igualmente numa das revistinhas, afirmou que é fanático por palavras cruzadas e que, quando viaja de avião, ao invés de ser abordado por terceiros interessados em conversar sobre música, ele prefere encontrar alguém com quem possa resolver os passatempos. Outra que também gosta de fazer quebra-cabeça em aviões é a cantora brasileira Sandra de Sá, pois, segundo ela, se esquece do medo de voar, bem como a modelo e apresentadora de TV Adriane Galisteu, que, por sua mania, igualmente herdada da mãe, cruza os ares, apesar de não temer as alturas, enquanto cruza palavras, costume que também leva para a praia, pois, durante a resolução de enigmas, consegue relaxar, abstrair-se: “É quase uma fuga”, diz. Ocorre que, muitas vezes, quando um enunciado parece despropositado, ela reage, irritando-se e questionando quem o fez – igual me sinto, sabe-se lá com qual frequência...



Palavras nem sempre cruzadas

 “Eu não faço palavras cruzadas, eu resolvo...”.

Ary Fontoura
Ator brasileiro.
.

Curiosamente, a minha preferência por tal ou qual quebra-cabeça é de fases, tipo as existenciais. De qualquer modo, de uns tempos para cá, ando com mania de Criptograma, da Coquetel – passatempo em que se descobre uma palavra por meio de símbolos, equivalentes a letras, capaz de me levar à abstração, desligando-me da realidade ao meu redor. De qualquer modo, confesso que, vez por outra, não disfarço a irritação ao identificar equívocos cometidos pelos cruciverbalitas – quando isso acontece, costumo fazer, nos cantos das páginas, alguma anotação a respeito, seja diante de uma palavra que considero, digamos, inventada ou alguma definição, no caso, fora de todo e qualquer contexto.

Por exemplo, na ilustração acima, escaneada de uma revista, o enunciado: Nas casas em destaque: a instituição fundada por seguidores de Martinho Lutero. E a solução do diagrama: Igreja evangélica – um equívoco, pois o teólogo alemão (1483 - 1546) é fundador do protestantismo, que, por sua vez, não é sinônimo de evangelismo... Outra situação: Nas casas em destaque: o sistema político de Cuba. E a resposta dada pela revista: regime comunista. Ora, não existe sistema político em lugar nenhum, mas sistema econômico. E regime diz respeito à política adotada por um dado governo, não a sua economia. Em momentos outros, ainda, enunciados mais específicos também já me chamaram a atenção, tipo:

Espécie de Medicina alternativa – Holística.
Errado: holismo é um conceito filosófico, uma doutrina epistemológica.

Desprovido de cabeça – Acéfalo.
Errado: acefalia é ausência de cérebro.

Opção religiosa de José Saramago – Ateísmo.
Errado: ateísmo não é religião, mas, a sua ausência, uma negação de Deus, e o escritor português (1922 - 2010) era ateu.

Médico da visão – oculista.
Errado: o especialista da visão chama-se oftalmologista; oculista é o profissional que confecciona armações de óculos.

O maior acionista da Petrobras – Governo.
Errado: é o Estado brasileiro.

Cidade que foi arrasada por uma bomba nuclear – Hiroxima.
Errado: é Hiroshima.

... Observando, ainda, que, entre outras, a quantidade de variações encontradas para o vocábulo Mozzarella, tipo de queijo italiano, é tamanha que, em certos momentos, coloca até em dúvida os nossos conhecimentos. E isso porque, mesmo existindo tradução para a palavra em demais línguas, só em português, por exemplo, existe mais de uma versão. E, desse modo, a coisa complica...


Só que, por aí e muito mais, vai... Ocorre que, em minha opinião, a maioria com anos de cruzamentos de palavras, os cruciverbalitas, por suas qualificações, não deveriam cometer, digamos, o que chamo de certos equívocos. Errar é humano? Sim, embora, de qualquer forma, erros não deveriam existir por parte desses profissionais, sobretudo porque as palavras cruzadas são exatamente conhecidas como fontes de aprendizados, não apenas como passatempo. Enfim! Certas particularidades que também não entendo nos diagramas é que “ã” e “õ”, por exemplo, pode; já o “ê” não pode. Outros dois excluídos são: “á” e “é” – crase, então, nem pensar! E, dependendo da conveniência, o hífen é ou não usado.

Recentemente, contudo, quando comentei com a minha mãe sobre a quantidade de respostas erradas que eu estava encontrando nos Criptogramas, ela disse que, “apesar dos erros, as palavras cruzadas prestam inestimáveis serviços ao exercício da memória...”. De qualquer modo, um detalhe que, de repente, poderia ajudar na explicação de falhas como as que são identificadas pelos cruzadistas é que, por exemplo, o processo de elaboração de muitos passatempos obedece a seguinte ordem: o criador limita-se a apresentar as respostas, enquanto as perguntas, elaboradas pelos editores, são dissimuladas o máximo possível – tal metodologia, portanto, podem incorrer em enganos...

Curiosamente, segundo o cruciverbalista Euro Oscar, são exatamente aos cruzadistas que cabe o mérito maior. E não somente por decifrar os enigmas, mas, também, por decifrar certas lacunas... Concordo, lembrando, todavia, que não existem pré-requisitos para se resolver um enigma – o que dirá identificar lacunas! Na verdade, não existe nenhum. Afinal, nem todas cruzadas são cruzadas... Por fim, escolhi o dia de hoje, intencionalmente, para postar estas minhas parcas palavras, pois, como o tema em questão não é algo habitual, quis, durante a última semana, acompanhar a repercussão que poderia haver na mídia em geral, do Brasil e do mundo, sobre o centenário das nossas palavras cruzadas.

O cartunista brasileiro Ziraldo, por sua vez, já admitiu ser um exímio cruzadista: “Mato até em inglês!”. Então, será que ele, também chargista, caricaturista, desenhista, pintor, dramaturgo, escritor, humorista, jornalista e, nas horas vagas, até piadista, já cruzou com o original da diversão que ele tanto aprecia? Quanto a mim, só conheci o seu inventor recentemente, durante uma pesquisa na internet, logo me tornando fã. Infelizmente, embora muitos façam palavras cruzadas, nem todos conhecem a sua história. Nem as antigas, nem, muito menos, as modernas, reinando, ao longo do tempo, majestosas, soberanas. Arthur Wynne, não somente um criador, mas, também, um eterno aprendiz...

Nathalie Bernardo da Câmara



O enigma de Arthur Wynne e a sua solução...

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