Foto: autor não identificado.
“A arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal...”.
Machado de Assis (1839 - 1908)
Escritor brasileiro.
Reza a lenda que um português pousou numa dada cidade do litoral tupiniquim para conhecer as delícias nordestinas – comidas, claro – e findou por protagonizar aquela que viria a ser uma das experiências mais inusitadas da sua vida.
Viajando em companhia de uma brasileira, o português foi recebido por um amigo, natural da região, que, artista plástico, mantinha um atelier numa vila, no alto de uma encosta, cujas ruas, embora habitadas, estavam, naquele dia, praticamente desertas – era feriado santo.
Certo momento, contudo, o casal resolveu, arrastando as suas havaianas, descer as ladeiras – que não eram poucas – para um banho de mar não muito distante, aliviando-o, quiçá, do calor abrasador da manhã.
Curiosamente, na praia eleita pelo gajo, não havia, apesar do horário, uma só alma viva – apenas as suas, claro!
Pudera: as areias da enseada eram praticamente recobertas por pedras, não demorando muito para que a beleza das formações rochosas com as quais se depararam tenha sido a senha para, antes mesmo de caírem n’água, eles fossem seduzidos pelos aparentes encantos de uma gruta...
Porém, enquanto fazia o reconhecimento do seu refúgio de pedra, o casal percebeu uma sombra aproximando-se e, de repente, antes mesmo de se dar conta do porvir, o sombreamento difuso materializou-se num jovem, que, à entrada da gruta, sem hesitar, ergueu um reluzente facão, marcando território – cenário mais propício não poderia haver para um assalto ou, quem sabe, qualquer outra aberração que o valha.
Desse modo, tentando, em vão, entender o óbvio, o português recuou diante do gesto do adolescente e tratou de proteger a sua companheira, que, aliás, intimamente, limitou-se a especular sobre os possíveis desfechos para os quais aquela situação poderia conduzir.
O fato é que, acuados, considerando que eles não estavam em condições de barganhar, muito menos de bater em retirada – até porque a gruta não tinha saída de emergência –, a única opção, pelo menos, aparentemente, era deixar rolar.
Tanto que, num tom informal e sereno – “tranquilo”, diria depois o português –, o recém-chegado, como se estivesse querendo trocar uma ideia, formalizou o assalto ao casal: — Por favor, venha não, se mexa não...
Ora, impossível, naquelas circunstâncias! E esse era o tipo de pensamento torto que, naquele momento, nem de longe passaria pela cabeça do incauto turista, que, parado estava, parado ficou: — Calma, não nos faça mal... – disse o gajo já quase gago de nervoso, embora tentasse demonstrar certa calma, ao mesmo tempo não desgrudando o olhar do facão em riste, que, aliás, para ele, parecia “novinho em folha”, indicando, com o seu palmo e meio de comprimento, que era razoavelmente amolado.
O rapaz, por sua vez, ignorando a impotência das suas vítimas, que, de tão assustadas, não davam sequer um ai, quis se garantir e, fazendo o facão roçar no rosto do português, insistiu: — Se mexa não, por favor... E passe o dinheiro.
O português passou: a carteira, dentro da qual o jovem encontrou R$ 20,00, um cartão bancário e um documento de identificação da mulher, mas que, por não reconhecê-lo, ficou intrigado, provavelmente achando que ela era policial, e questionou a sua ocupação.
— Sou aposentada e esta é a minha carteira de motorista. – disse a interpelada, cada vez mais apavorada, não parando de pensar que, a qualquer momento, o indivíduo ia perguntar onde estava o carro.
Felizmente, não perguntou, devolveu o documento e, como era de se esperar, pediu os seus celulares.
— Não temos... – adiantou-se o português.
— Como não tem celular? – questionou o assaltante, provavelmente um nativo, considerando a sua incredulidade, já que, se até ele tinha um, como aquele casal, supostamente artista, não tinha? Perplexo, então, exclamou: — Todo mundo tem celular!
— Não temos, não usamos... – tentou explicar o português, apesar de, prudentemente, não tirar os olhos do facão que, naquele momento, já acariciava as suas belas madeixas.
— Não gostamos, mesmo, moço, de usar celular... – reforçou a mulher, apesar do temor de não ser compreendida.
— Tudo bem! – aquiesceu o assaltante. – O problema é de vocês. – abaixou o facão, condescendente, dando o colóquio por encerrado: — Estão liberados, mas, só saiam daqui quando eu estiver bem distante...
Dito – ou melhor, sugerido – e feito, embora o português, apesar do estresse vivido na gruta, ainda quisesse dar um mergulho. Para ele, afinal, ambos não tinham mais nada a perder. Da sua companheira, contudo, recebeu um enfático não.
A sequência, entretanto, do assalto em questão, foi tipo, digamos, um “salve-se quem puder”, pois, ao vislumbrar o não tão desconhecido assim já a certa distância, caminhando calmamente na praia – ninguém mais, além dele –, o casal sentiu-se seguro e deixou a gruta, dando uma carreira daquelas!
No alto da encosta, o português e a mulher não continuavam apenas lívidos e sôfregos, mas estavam, também, com os pés ardendo de queimados, já que, no meio do caminho, enquanto corriam feitos dois desesperados, deixaram igualmente para trás as estimadas havaianas, rolando ladeiras abaixo, prosseguindo descalços.
Não obstante, em segurança, embora continuassem assustados e trêmulos, contaram por alto o sucedido ao anfitrião, que logo os ajudou a tomarem as devidas providências para o cancelamento do cartão bancário que o assaltante pegou emprestado.
Em seguida, apesar de ainda abalados, narraram mais detalhadamente a experiência, que, pelo visto, nem foi tão traumática assim – pelo menos para o português: afinal, aos seus olhos, apesar de armado e de ter se constituído numa real ameaça, o rapaz pareceu-lhe deveras educado, gente de bem, do bem.
Ora, quem já viu assaltante sem segundas intenções?! Que o convidasse, então, qualquer dia – não faltaria oportunidade –, para tomar um cafezinho com broas fresquinhas, geléia e manteiga, tipo Chapeuzinho Vermelho...
A verdade é que o assalto em si era previsível e, diga-se de passagem, havia sido duplamente anunciado: primeiro porque, antes mesmo de sair, o casal tinha sido alertado que, por não ser propícia para banhos, a tal praia costumava não ser muito frequentada – o que dirá num feriado!
Segundo porque – informação obtida através de uma confissão –, ao chegar ao local onde pretendia banhar-se, o português de imediato percebeu um rapaz meio que largado não muito distante de onde estavam, mas, achando que se tratava de um “rato de praia”, ou seja, um admirador incondicional da maresia, ele ignorou o beliscão da sua intuição.
O seu erro, no caso, além de menosprezar um dos banhos mais indicados, coisa de poucos metros, onde poderia satisfazer o seu capricho e, quem sabe, sair ileso, foi o de insistir em curtir aquela praia específica, e, literalmente, dá as costas aos sinais: deu no que deu...
Pense um gajo teimoso!
Não devemos esquecer-nos, ainda, de que, numa vila, as notícias espalham-se como rastilho de pólvora – é missão quase impossível guardar um segredo. Desse modo, eis que, sabendo da decantada acolhida local, um vizinho logo chegou com uma palavra de conforto; outro com um calmante...
O amigo, por sua vez, cujo atelier mais parecia um oratório repleto de imagens alusivas ao Divino, arriscou dizer que o casal nasceu de novo, considerando que, segundo ele, o nome da cidade onde o português e a companheira se encontravam significava nascimento.
Isso sem falar que, no dia anterior, na condição de curiosos, estiveram presente a um evento meio que sui generis: uma missa à beira-rio, em homenagem à padroeira da cidade, estando ambos, portanto, protegidos por todos os lados – isto é, quase todos...
Ocorre que, lá pelas tantas, uma vizinha apareceu com uma carrada de cocos verdes tirados do seu quintal, alegando que a água do fruto aliviava os nervos. Só que, na hora, ninguém encontrou nada cortante para abrir os benditos cocos. Enfim! Feirante, mantendo uma banca de frutos do mar nos fins de semana, a mulher percebeu que o filho havia chegado – ela morava ao lado – e, aos berros, o chamou.
Quando, contudo, o rapaz atendeu a intimação da mãe, encontrando-a atracada com a carrada de cocos, de cócoras, encostada à parede da sala da casa do vizinho, o seu semblante empalideceu, como se tivesse visto fantasmas, enquanto o português e a companheira por pouco não tiveram uma síncope, já que o reconheceram da gruta na praia. Que situação!
Detalhe: o filho da feirante estava com o facão usado para o assalto preso à cinta...
Felizmente, nenhum dos presentes percebeu o clima de constrangimento, medo e pavor recíproco entre os três – imagina se o rapaz entrasse em pânico e resolvesse sacar o facão, fazendo todo mundo de refém!
Então... Indiferente ao ocorrido na gruta da praia e à situação daquele momento, a vizinha pediu que o filho lhe passasse o facão do finado – nem é preciso dizer que, quando isso aconteceu, o português cerrou os olhos, jurando, intimamente e de pés juntos, que, caso sobrevivesse a tudo aquilo, ele, que era ateu, se converteria a não importa qual religião. Já a sua companheira: esta apelou para todos os santos da Bahia, já que, afinal, dizem, “o futuro a Deus pertence”.
Nesse ínterim, a vizinha já havia tentado cortar um dos cocos, mas, sem sucesso, visto que o outrora reluzente facão, capaz de abanar as orelhas do português e que parecia ser “novinho em folha”, estava cego...
A frustração, portanto, deixou a mãe do rapaz bastante irritada, quase soltando fumaça pelas ventas – nordestina braba, nunca se dando por vencida, ela não economizou nos xingamentos e, implacável, vociferou para o filho: — Imprestável, vá amolar essa peixeira!
Diante do surrealismo da cena, não deu outra: compadecido do rapaz, que, por pouco, não tinha molhado a bermuda, inconscientemente atribuindo a sua traquinagem juvenil ao despotismo da mãe – obviamente pensando em Freud –, o português ofereceu-se para ajudá-lo a amolar o facão...
Nathalie Bernardo da Câmara,
com a generosa contribuição de certo gajo, que, aliás – última resenha –, continua ateu.
Eu nunca comentei essa publicação, sendo protagonista do evento... É muita distração da minha parte. É impressionante a sua capacidade na escrita, Nathalie. Não largue a pena.
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