segunda-feira, 20 de junho de 2011

O ADEUS DO VIAJANTE*


“No fundo, tudo é insignificante...”.

José Saramago (1922 - 2010)
Escritor português
Prêmio Nobel de Literatura de 1998


Ele chegou a dizer que não temia a morte, embora lamentasse a certeza de morrer, que, infelizmente, aconteceu este mês, no dia 18, na ilha espanhola de Lanzarote, no arquipélago de Canárias. Aos oitenta e sete anos, com o organismo fragilizado, devido uma leucemia crônica e problemas respiratórios, Saramago nos deixou por uma falência múltipla de órgãos, legando órfãos admiradores no mundo inteiro. No domingo, 20, antes da cremação do corpo do escritor, ocorrido no cemitério do Alto de São João, em Lisboa, mais de mil pessoas compareceram ao cortejo fúnebre, aplaudindo, erguendo exemplares dos seus livros e portando cravos – a flor nacional e símbolo da revolução que eclodiu no dia 25 de abril de 1974, em Portugal, derrubando uma ditadura de quarenta e oito anos, da qual, inclusive, Saramago era opositor.

Em nota divulgada pelo Partido Comunista Português - PCP, ao qual Saramago filiou-se em 1969, o escritor é enaltecido por seu importante papel como um Construtor de Abril, nome dado a muitos que, de alguma forma, apoiando a Revolução dos Cravos, contribuíram para a derrocada da ditadura no país, sendo a sua morte considerada “uma perda irreparável para Portugal”. O jornal oficial do Vaticano, por sua vez, L’Osservatore Romano, tem sido ofensivo após a morte de Saramago e proclama que, desestabilizado por seu marxismo, comunismo e ateísmo, o cérebro do escritor banalizava o sagrado e que, com o passar dos anos, ele só teria, ainda mais, radicalizado as suas opiniões, opostas as da Igreja católica e aos seus dogmas... Falando nisso, quem precisa do aval da Igreja católica para viver neste mundo cão?

Ao contrário, contudo, dos seus pares da Santa Sé, a Igreja católica portuguesa surpreendeu... Em nota do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura do país, apesar de sempre ter vivido as turras com Saramago, a Igreja católica lamentou a sua morte, considerando-o um “grande criador da língua portuguesa”, que ampliou “o inestimável patrimônio que a literatura representa, capaz de espelhar profundamente a condição humana nas suas buscas, incertezas e vislumbres” – um gesto de grandeza, eu diria, já que as polêmicas causadas por declarações anti-religiosas do escritor sobre temas os mais diversos, sobretudo contra a Igreja católica – um dos seus maiores desafetos –, sempre foram freqüentes no seu cotidiano literário e humano, bem como nas entrevistas que concedia à imprensa, normalmente instigado por jornalistas.

Exemplo disso foi o veto que, em 1992, o governo português impôs ao polêmico O Evangelho segundo Jesus Cristo, excluindo-o da lista de candidatos portugueses a um prêmio europeu de literatura, alegando que, por seu teor, o livro, lançado um ano antes, era uma ofensa aos católicos e não representava Portugal nem os portugueses. À época, o primeiro-ministro de Portugal era o atual presidente do país, Cavaco Silva (PSD), que, por ser um chefe de estado, deveria – era a sua função – ter comparecido as cerimônias fúnebres e das homenagens a Saramago. No entanto, alegando estar de férias com a família, limitou-se, deselegantemente, a encaminhar uma nota oficial de pesar à família do Nobel de Literatura – obviamente que por mera formalidade –, sendo, por isso, e devidamente, criticado por muitos.

Já o ex-presidente português Mario Soares, sempre mantendo as ditas boas maneiras, não economizou elogios ao escritor em seu velório e em sua cremação, evitando, contudo, emitir comentários sobre o comportamento de Cavaco Silva. Porém, quando da censura por parte do governo português, Saramago, indignado, disse que tal atitude era “o regresso da Inquisição” e, em protesto – eu teria feito pior –, deixou Portugal em 1993, passando, desde então, a morar em Lanzarote com a mulher, a jornalista e tradutora espanhola Pilar Del Río. Enfim! Chegaram, ainda, a Portugal, as condolências da Academia Brasileira de Letras - ABL pela morte de Saramago. Para o escritor Marcos Vinícius Vilaça, presidente da instituição, que a sentiu com pesar: “A notícia nos deixou em estado de enorme tristeza”.

Só que não foi com tristeza que, no dia 9 de julho de 2009, ao saber que havia sido escolhido para ser sócio-correspondente da cadeira de n° 16 da ABL, na vaga do escritor francês Maurice Druon (1918 - 2009), embora a sua posse estivesse prevista para acontecer este ano, Saramago escreveu: “Eis-me, portanto, acadêmico no país que mais amo depois do meu, o Brasil. É como estar em casa. (...) E ainda dizem que a vida não tem coisas boas...”. Que homem doce. A secretária-geral da ABL, por sua vez, a escritora Ana Maria Machado, disse que, com a morte de Saramago, “as letras brasileiras se associam à dor de seus leitores por todo o mundo, lamentando sua partida e celebrando sua literatura, que permanece. Um sábio, um grande escritor, um ser humano de primeira grandeza”.

Representando, portanto, a ABL nos funerais de Saramago, cujas cinzas serão deixadas em Portugal, por pedido expresso do dono das mesmas, outra escritora, a acadêmica Nélida Piñon, que disse: “Senti grande emoção ao tomar conhecimento da notícia. Sabia que ele estava frágil, doente, mas sempre pensei em Saramago como um imortal por sua própria obra, por seu lado humano. Ele é eterno”. Eu, particularmente, tomei conhecimento da morte do meu camarada através da jornalista brasileira Sandra Annenberg, apresentadora de um telejornal de uma emissora qualquer, que anunciou: “O mundo perde um escritor visceral, um crítico atento da sociedade e um grande intelectual”... Silenciei, impactada que fiquei, entrando em depressão, pela perda. Para Pilar Del Río, Saramago era um “homem de convicções firmes, capaz de estar sempre ao lado daqueles que sofrem”.

Sim, um ser humano cujos sólidos valores humanistas impregnaram-se em seus escritos, em sua vida. O nome do escritor, curiosamente, é o mesmo de uma planta herbácea, que, inclusive, possui propriedades terapêuticas, além de ser utilizada como condimento e alimento por meio-mundo, ou seja, Saramago-maior, ou, ainda, cientificamente, armoracia rusticana... Engraçado que mesmo en passant Saramago comenta a respeito em uma sucinta autobiografia divulgada por sua fundação. Quanto ao escritor, que, certa vez, disse: “Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo”, fico a pensar se, em sua viagem sem volta, ele tenha, pelo menos, levado, em sua bagagem, algumas sementes da planta, perene, que lhe dá nome, conhecida, também, como raiz-forte...



Nathalie Bernardo da Câmara


* Publicado, originalmente, há 1 ano. E com muita dor... E eu ando a andar com uns portugueses, sendo re-colonizada (risos). E pedindo para traduzirem! Daí repostar o texto...


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