sexta-feira, 3 de junho de 2011

A VERDADEIRA HISTÓRIA DE CHAPEUZINHO VERMELHO


Uma parábola do estupro*




"A liberdade é a possibilidade do isolamento...".

Fernando Pessoa (1888 - 1935)
Poeta português


Quem nunca ouviu falar da história da menina que recebe da mãe a missão de entregar uma cesta com broas fresquinhas, um pote de geléia e um tablete de manteiga à avó doente, que vive isolada em uma casinha, na floresta? O fato é que antes disso, ou seja, de cumprir a tal missão, a menina, de nome Chapeuzinho Vermelho, recebe uma série de recomendações, tipo: não falar com estranhos. Em vão, porque, em seu percurso, ela tem o seu destino cruzado por um lobo, com quem faz uma aposta: quem chegaria primeiro a casa da vovozinha? Porém, Chapeuzinho logo esquece a aposta e fica a flanar na floresta, distraindo-se com frutos, folhas, flores e vôos de pássaros. Nesse ínterim, o lobo chega à residência da idosa solitária e a devora. Não satisfeito, deita-se na cama e fica no aguardo da sobremesa: Chapeuzinho, que, não demora muito, bate à porta, entra e vai direto ao quarto da sua querida vovozinha, onde, na cama, sob as cobertas, o lobo mau a espera.

Passando-se, portanto, pela avó de Chapeuzinho e alegando que está na cama devido o frio, ele pede que ela se aproxime e se deite ao seu lado. Só que, detalhe: além de estranhar os pêlos da suposta avó, Chapeuzinho questiona os seus olhos, nariz, mãos e boca tão grandes. É quando o lobo engole-a viva, por inteiro, assim como fez com a sua avó, refestelando-se. Em seguida, haja sono! Roncos e mais roncos. Até que os mesmos chamam a atenção de um lenhador, que, passando defronte da casa da idosa, entra e flagra o lobo deitado, dormindo na cama da sua dona. Desconfiado, o lenhador aproveita que o lobo está em sono profundo e corta a sua barriga, tirando de dentro a neta e a avó, salvando-as da digestão do bicho. O resto? Bom! O resto todo mundo também já sabe. O lobo morre e Chapeuzinho Vermelho sai dessa história com uma lição aprendida: sempre seguir o seu caminho e, como a sua mãe já lhe havia aconselhado, nunca dá trela a desconhecidos.



Eu, particularmente, nunca acreditei nessa história! E exatamente por ter lido a obra do escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882 - 1948), em seu gênero infantil, sempre achei que tinha algo de inverossímil na narrativa do conto em questão. Ou seja, a da neta comida junto com a avó. Ocorre que essa é a versão dada à história de Chapeuzinho Vermelho pelos alemães Irmãos Grimm – Jacob (1785 - 1863) e Wilhelm (1786 - 1859) –, que reuniram numerosos contos populares e os publicaram em 1812. Um desses contos era, exatamente, a história da menininha comida pelo lobo mau. E é a versão que conhecemos. No entanto, a origem do conto é outra.


Remonta ao escritor francês Charles Perrault (1628 - 1703), que, em 1697, se inspirando na tradição oral, publicou O Chapeuzinho Vermelho, um dos Contos da mãe gansa, com o pseudônimo Perrault d’Armancour, nome do seu filho. Poderíamos até, para nos referirmos à versão dos Irmãos Grimm, transcrever as palavras do Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, do romancista inglês Lewis Carroll (1832 - 1898), publicado em 1865, que disse:  Eu sou uma fraude! Sim, porque, a bem da verdade, os Irmãos Grimm negaram a versão original da historinha de Chapeuzinho Vermelho e deram corpo a outra versão e possibilidades de leitura.

Tanto fizeram que amenizaram a intenção original da história, embora não a tenham destituído do seu simbolismo. E qual era a intenção original de Perrault? Fins didáticos. Segundo a pesquisadora norte-americana Catherine Orenstein, em seu livro Chapeuzinho Vermelho desencapuzada: sexo, moralidade e a evolução de um conto de fadas, publicado em 2002, Perrault, com o seu gesto, ou seja, o de “alertar as jovens virgens e mesmo as não tão virgens que brilhavam na corte do Rei-Sol” para os perigos, digamos, de certas abordagens masculinas, findou por fundar a literatura infantil clássica, embora não tão infantil assim... Para a pesquisadora, “as alegorias de seus contos representam as preocupações políticas e sexuais da França no século XVII”.

Ainda segundo ela, “vestir a sua heroína com um capuz vermelho – a cor das prostitutas, do escândalo e do sangue – simboliza o pecado da menina e a previsão do seu destino”, concluindo: “Somente agora, trezentos anos depois que Perrault transformou A História da vovó [tradição oral] em seu Le Petit chaperon rouge, é que o feminismo impregnou o conto de fadas de um sentido de patriarcado e nos deu o vocabulário e a estatística para ler O Chapeuzinho vermelho como uma parábola do estupro”. De uns tempos para cá, contudo, com o agravante da pedofilia, cujos casos tem ganho mais visibilidade, a tríade menina, lobo e vovozinha torna-se uma única personagem, em busca de uma identidade.



Diferentemente do desenho do francês Gustave Doré (1832 - 1883), a ilustração de D. J. Munro, que acompanha o manuscrito de Perrault é ousada: “o lobo não usa disfarce e está em cima da menina, com uma pata de cada lado”, diz, no artigo As Múltiplas vidas de “Chapeuzinho Vermelho”, a pesquisadora brasileira Eliane T. A. Campello. Segundo ela, que analisa a tese de Catherine Orenstein, “no fim do conto, a menina é comida por ele [lobo], sem salvação nem redenção. A perda da virgindade encontra sinônimo na expressão popular, na época do autor: elle avoit vû le loup – ela viu o lobo, incorporada na arte e na cultura dos últimos séculos com a mesma conotação sexual”.


Para o psicólogo norte-americano Bruno Bettelheim (1903 - 1990), em seu livro Na terra das fadas, ou Chapeuzinho é estúpida ou deseja ser seduzida e se finge de estúpida. Ao mesmo tempo, o pesquisador diz que “Chapeuzinho é mais madura do que João e Maria [conto publicado pelos Irmãos Grimm], demonstrando uma atitude interrogativa diante do mundo que os dois irmãos desconhecem, por não questionarem sobre a casa de biscoitos nem explorarem as intenções da bruxa. Chapeuzinho é curiosa”. Só que foi a vitória do lobo, na versão de Perrault, que levou o escritor escocês Andrew Lang (1844 - 1912) a republicar a história de Chapeuzinho Vermelho.

De fato, uma versão sem escape, a de Perrault, considerado o pai da literatura infantil. Daí, a pergunta que não quer calar: Onde esteve o pai da menina durante toda a narrativa? Simbolicamente, o lenhador? Ou, segundo Bettelheim, o sujeito oculto no lobo? E que seria, sim, “a externalização dos perigos de sentimentos edípicos reprimidos. E como caçador [lenhador] na sua função resgatadora e protetora”. Uma informação à parte: existe um adendo na história contada por Perrault, que é um pequeno poema. Nele, ainda segundo o psicólogo, ficamos sabendo que “meninas bonitinhas não deviam dar ouvidos a todo tipo de gente”. As feiosas também não deviam não, né, bem!

Afinal, o estupro não vê cara nem idade. A pedofilia, por sua vez, só vê idade e, dependendo dos instintos do agressor, vê, também, o sexo da vítima, se feminino ou masculino. E se, no caso, as meninas dão atenção a todo tipo de gente – prossegue Bettelheim –, “não é de surpreender que o lobo as pegue e as devore”. Igual a história foi devorada pela mídia. Afinal, o mais popular conto de fadas foi reescrito não sei quantas vezes, adaptado para o teatro e o cinema outras tantas, virou moda de canção e, até, mote de cordel, inspirando, ainda, demais artes. O problema é que, no mundo inteiro, os danos, e de toda ordem, causados pela dupla estupro/pedofilia, alcançaram proporções alarmantes.

E qual o perfil de quem comete a agressão? Antes do perfil, contudo, podemos – nada impede – que tentemos entender que o estuprador dá vazão a uma dada patologia, enquanto o pedófilo sofre de transtorno de perversão, ou seja, um desejo incontrolável para fazer sexo com crianças e adolescentes. Somando os dois, é TNT pura! Então... Os padrastos lideram o ranking da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes, seguidos pelos pais, tios e avôs. Sem falar nos desconhecidos! Agora, além de todos esses agressores, temos, ainda, os religiosos. Algo deplorável, lamentável. Exemplos de casos violentos envolvendo gente assim?

Quem não se lembra do caso, para lá de polêmico, que veio a tona no dia 25 de fevereiro de 2009 e que aconteceu em Olinda, Pernambuco, no Brasil, quando foi descoberto que uma criança, de apenas nove anos de idade, violentada desde os seis pelo padrasto, engravidou de gêmeos e todo o mundo, saindo em defesa dos direitos humanos e da saúde da vítima, se manifestou em defesa do aborto, contrariando um religioso sem consciência, à época, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, o conservador dom Dedé, como é conhecido – hoje emérito (não sei do quê), que foi contra [a intervenção cirúrgica] e perdoou o estuprador? Maior indecência, aliás, não poderia haver.

Tanto que, falando nisso, dá até nojo desses dois homens: o agressor e o defensor. Não é de se estranhar, portanto, que o ex-arcebispo agiu como agiu porque muitos dos seus pares cometem o mesmo tipo de absurdo, ou seja, violentar crianças e adolescentes, e que ele, o tal dom Dedé, só queria proteger o bandido que, inclusive, se assemelha a muitos que existem em sua igreja, tentando escamotear uma realidade que não pode ser escamoteada. O pior é que os religiosos ficam impunes apenas porque vestem uma batina. Daí eu sentir saudade do humanista brasileiro dom Hélder Câmara (1909 - 2009), antecessor de dom Dedé, que nunca teria deixado as coisas chegarem a esse ponto. Quanta depravação!

Mas, partindo de muitos dos homens que servem à Igreja católica sem o menor do bom senso e sempre corrompendo a instituição... Enfim! Um exemplo de pedofilia envolvendo religiosos é o do cartoon do luso António, desenhista do jornal português Expresso, que, aliás, fala por si só, publicado com o título Deixai vir a mim as criancinhas. E os católicos continuaram serenos! Continuam, até hoje...


(A versão deste post sofreu pequenos acréscimos e algumas supressões, que, aliás, não comprometeram o tema, deixando-o, inclusive, melhor abordado.)*





Nathalie Bernardo da Câmara
Pela estrada afora...


*Postagem originalmente publicada neste blog no dia 22 de maio de 2009. Decidi republicá-la, embora revista e revisada, porque ela anda sendo bastante lida. E, de fato, é interessante.


8 comentários:

  1. É assustador, deplorável e lamentável que instituições religiosas, em especial a Igreja Católica ainda fecham as cortinas para o mundo com relação ao assunto ESTUPRO, seja ele causado pelos familiares da vítima ou por seus próprios membros de batina. A dignidade das crianças e adolescentes pede socorro!

    Flávia Janiny F. Dantas

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  2. hahahahahhahahahhahahahahh otarios

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  3. Espanta-me a quantidade de gente q publica comentários sem se identificar! Desse modo, fica difícil interagir. No último caso, por exemplo, fico querendo entender quem são os supostos otários...

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  4. A verdadeira história da Chapeuzinho Vermelho relata sobre um estupro e alerta as meninas que não saiam sozinhas, não andem tarde nem em lugares esquisitos, não falem com estranhos.... Resumindo: Que não provoque o estupro. --'
    E histórias lúdicas que ensinem os meninos a não estuprarem quando crescer não tem, né? A melhor e única maneira de se evitar um estupro é: Não estuprar!
    A culpa nunca é da vítima!

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    1. Todas as mulheres têm o direito de sairem sozinhas. Não podemos permitir q um bando de policiais nojentos insistam em dizer q a mulher é quem suscinta o desejo de um psicopata, justificando crimes idiotas e inúteis - ora, o cara já é psicopata! A mulher é só vítima. Sempre o foi...

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  5. Tenho um trabalho sobre essa história mas não consigo achar poderia por favor de indicar o site?

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  6. Acredito também que há um grande destaque para o lobo que representa figurativamente um homem estranho,dando uma concordância ainda maior de que a historia se trata de uma lição de moral para meninas pois em momentos da vida cada um tem o seu lobo mau

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  7. Sim! E a versão do conto? Faltou isso!

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