quarta-feira, 29 de setembro de 2010

SER OU NÃO SER HONESTO: EIS A QUESTÃO



Embalados pela temperança e cuja força é a passiva (yin), os nativos do signo de Libra realmente surpreendem. É o caso do escritor italiano Italo Calvino (1923 - 1985), assumidamente libriano, que, em Um general na biblioteca (2001), nos lega raccontini curiosíssimos, a exemplo de A Ovelha negra, continho escrito em 1944, quando o autor, devido a sua militância política, filiado que era ao Partido Comunista Italiano, com o qual, inclusive, rompeu em 1956, estava preso pelo regime fascista na Itália... Daí ser o conto um gênero literário das sociedades caóticas, como já afirmou o escritor brasileiro Moacyr Scliar? Para a escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, sim, “porque ele é rápido, de curta duração”. Afinal, ela questiona: “O que existe no caos? Justamente a falta de tempo, de perceber o outro”. Para ela, o romance, por sua vez, é para um tempo de paz e de tranqüilidade.

Enfim! Os raccontini de Um general na biblioteca, como eu já mencionei nos dois posts anteriores, foram selecionados e organizados postumamente pela tradutora argentina Esther Calvino, viúva do jornalista, contista, romancista e ensaísta italiano. Já a tradução desta edição para o português é assinada pela brasileira Rosa Freire d’Aguiar, sendo publicada pela editora Companhia de Bolso em 2010, cuja venda, aliás – continuo insistindo que, cada vez mais, não entendo o motivo – é proibida em Portugal... Mas, e A Ovelha negra? Com conotações diversas, a expressão, no caso do continho em questão, se refere, ironicamente, a um dito cidadão que, por prezar por sua honestidade, é a única exceção em um país onde todos são ladrões e no qual todos se locupletam à custa de outrem – qualquer semelhança com a realidade brasileira é, apenas, mera coincidência...





Quanto a Calvino, que, certa vez, disse: “Entre os meus familiares somente os estudos científicos eram honrados: um tio materno meu era químico, professor universitário, casado com uma química; tive dois tios químicos casados com tias químicas. (...) Eu sou a ovelha negra, o único literato da família”. Isso sem falar que o seu pai era agrônomo e a sua mãe botânica... De qualquer modo, feliz do leitor, que, por Calvino ser um escritor, pode desfrutar dos seus textos sempre tão sagazes, perspicazes, irônicos e repletos de bom humor, em um estilo ágil, cuja estrutura narrativa está isenta de elementos de peso. Muitos dos seus textos, inclusive, são, ainda, parábolas por ele inventadas; outros inspirados em fábulas lidas ou contadas. Eis, portanto, o irônico divertido, como Calvino, que acreditava que o horizonte é a única reta contínua, ficou conhecido em Paris!
 

Nathalie Bernardo da Câmara






A Ovelha negra

 

HAVIA UM PAÍS ONDE TODOS ERAM LADRÕES.
          
À noite, cada habitante saía, com a gazua e a lanterna, e ia arrombar a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado, e encontrava a sua casa roubada.

E, assim, todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e este um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último, que roubava o primeiro. O comércio naquele país só era praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinquentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos, por sua vez, só se preocupavam em fraudar o governo. Assim, a vida prosseguia sem tropeços, e não havia ricos nem pobres.

Ora, não se sabe como, ocorre que no país apareceu um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco e a lanterna, ficava em casa fumando e lendo romances.

Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não subiam.

Essa situação durou algum tempo: depois foi preciso fazê-lo compreender que, se quisesse viver sem fazer nada, não era essa uma boa razão para não deixar os outros fazerem. Cada noite que ele passava em casa era uma família que não comia no dia seguinte.

Diante desses argumentos, o homem honesto não tinha o que objetar. Também começou a sair de noite para voltar de madrugada, mas não ia roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Andava até a ponte e ficava vendo passar a água embaixo. Voltava para casa e a encontrava roubada.

Em menos de uma semana, o homem honesto ficou sem um tostão, sem o que comer, com a casa vazia. Mas, até aí, tudo bem, porque era culpa sua. O problema era que seu comportamento criava uma grande confusão. Ele deixava que lhe roubassem tudo e, ao mesmo tempo, não roubava ninguém. Assim, sempre havia alguém que, voltando para casa de madrugada, achava a casa intacta: a casa que o homem honesto deveria ter roubado. O fato é que, pouco depois, os que não eram roubados acabaram ficando mais ricos que os outros e passaram a não querer mais roubar. E, além disso, os que vinham para roubar a casa do homem honesto sempre a encontravam vazia. Assim, iam ficando pobres.

Enquanto isso, os que tinham se tornado ricos pegaram o costume, eles também, de ir à noite até a ponte para ver a água que passava embaixo. Isso aumentou a confusão, pois muitos outros ficaram ricos e muitos outros ficaram pobres.

Ora, os ricos perceberam que, indo à noite até a ponte, mais tarde ficariam pobres. E pensaram: “Paguemos aos pobres para irem roubar para nós”. Fizeram-se os contratos, estabeleceram-se os salários, as percentagens: naturalmente, continuavam a ser ladrões e procuravam enganar-se uns aos outros. Mas, como acontece, os ricos tornavam-se cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

Havia ricos tão ricos que não precisavam mais roubar e que mandavam roubar para continuarem a ser ricos. Mas, se paravam de roubar, ficavam pobres porque os pobres os roubavam. Então pagaram aos mais pobres dos pobres para defenderem as suas coisas contra os outros pobres. E, assim, instituíram a polícia e construíram as prisões.

Dessa forma, já poucos anos depois do episódio do homem honesto, não se falava mais de roubar ou de ser roubado, mas só de ricos ou de pobres. E, no entanto, todos continuavam a ser pobres.

Honesto só tinha havido aquele sujeito, e morrera logo, de fome.





3 comentários:

  1. Estou trabalhando com este conto, na Oficina Literária Boca de Leão, onde estamos exercitando o estudo da narrativa ao analisar este texto. O grupo está se deliciando com ele.
    http://oficinaliterariabocadeleao.blogspot.com.br/

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