Por Fernando Pessoa (1888 - 1935)
Poeta português – Ideias políticas.
Nisto de manifestações populares, o mais difícil é interpretá-las. Em geral, quem a elas assiste ou sabe delas ingenuamente as interpreta pelos factos como se deram. Ora, nada se pode interpretar pelos factos como se deram. Nada é como se dá. Temos que alterar os factos, tais como se deram, para poder perceber o que realmente se deu. É costume dizer-se que contra factos não há argumentos. Ora só contra factos é que há argumentos. Os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os factos. A lógica é o nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não nos factos, que pode haver lógica.
Nisto de manifestações — ia eu dizendo — o difícil é interpretá-las. Porque, por exemplo, uma manifestação conservadora é sempre feita por mais gente do que toma parte nela. Com as manifestações liberais sucede o contrário. A razão é simples. O temperamento conservador é naturalmente avesso a manifestar-se, a associar-se com grande facilidade; por isso, a uma manifestação conservadora vai só um reduzido número da gente que poderia, ou mesmo quereria, ir. O feitio psíquico dos liberais é, ao contrário, expansivo e associador; as manifestações dos “avançados” englobam, por isso, os próprios indiferentes de saúde, a quem toda a vitalidade acena.
Isto, porém, é o menos. O melhor é que, para quem pensa, o único sentido duma manifestação importante é demonstrar que a corrente da opinião contrária é muito forte. Ninguém arranja manifestações em favor de princípios indiscutíveis. Tão pouco se aglomeram vivas em torno a um homem a quem é feita uma oposição sem relevo ou importância. Não há manifestações a favor de alguém; todas elas são contra os que estão contra esse alguém. É por isso este, não o “homenageado”, quem fica posto em relevo. Quanto maior a manifestação, mais fraco está o visado; maior se sente a força que se lhe opõe. Toda a manifestação é um corro-a-salvar-te de quem não pensa contribuir para a salvação senão com palmas e vivas.
É este o ensinamento que toda a criatura lúcida tira das manifestações populares.
Quando a uma criatura, que está em evidência ou regência, se faz uma manifestação que resulta pequeníssima, conte tal criatura com o apoio dum país inteiro. Se a manifestação fosse grande, tremesse então. É que os seus partidários teriam sentido, por uma intuição irritada, a grandeza da oposição a ele, e isso os chamaria em peso para a rua, para, com suas muitas palmas e vivas, aumentar a ele e a si próprio a ilusão duma confiança que enfraquece.
Revisitando Fernando Pessoa
“A obra de Fernando Pessoa pode ser tomada como um paradigma daquilo que de mais alto pôde fazer a poesia – e, por extensão, a arte – do século XX...”.
Rinaldo Gama
Jornalista brasileiro
Tudo muito lindo, apesar do exagero desnecessário. O fato é que, embora eu até já tenha sido uma ávida leitora da obra do poeta – de uns tempos para cá, contudo, sem as motivações de outrora (a frequência anda mínima!) –, hoje, acordei de mal com o luso multifacetado, ou melhor, ressabiada, já que, mal liguei o computador e o conectei a internet, abrindo a minha página na rede social que frequento, fui logo dando de cara com uma postagem publicada horas antes por um amigo, a qual, ilustrada com uma fotografia do próprio, divulgava um texto, de sua autoria, ou seja, A Ilusão política das grandes manifestações populares. Relendo, portanto, o referido texto, para lá de controverso e polêmico – diga-se de passagem –, não nego que, apesar de ter conhecimento do notório anticomunismo do autor, o café por pouco não amargou os meus sentidos, descendo atravessado. Para ser sincera, não era bem o teor de tão delirantes palavras, mesmo elas sendo de Fernando Pessoa, que eu tencionava ler tão cedo, ainda envolta no sereno da madrugada.
De qualquer modo, li. Li e, apesar das minhas ressalvas, compartilhei as tais palavras. Porém, senti-me contrariada, sobretudo porque, na atual conjuntura, no caso, especificamente, a do Brasil, são exatamente manifestações populares, com um leque de pertinentes protestos, que, há mais de um mês, estão a dar cor, graça, brilho e esperança ao nosso já tão alquebrado país, vítima de uma elite política asquerosa, deplorável e repugnante, bem como de um sistema econômico cancerígeno, que é o capitalismo. Não obstante, numa nota autobiográfica, escrita no dia 30 de março de 1935 e publicada em 1940, chega-me, não tão casualmente assim, um Fernando Pessoa extremamente reacionário bradando o que ele definiu como sendo a sua posição social – acredito que ele quis dizer “política” ou “ideológica” – ou seja: — Anticomunista e antissocialista...
Bref!
Noutro momento, ao se referir ao comunismo – citarei como fonte o livro Fernando Pessoa – Obras em prosa, publicado pela Companhia José Aguilar Editora em 1974 –, o poeta português escracha. Para ele, o comunismo seria um “inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós”. Ninguém merece! Na verdade, não há poesia que resista a tamanho desgosto...
NBC
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Aceita-se comentários...