Resumo do ensaio abaixo: No Brasil, a discussão entre religiosidade e Estado não se encerra com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Um resquício dessa dicotomia se encontra tanto no preâmbulo, o qual revela uma possível falha legislativa, como no art. 19, I da Carta Magna. Ganha enfoque neste estudo o respeito ao direito de liberdade de manifestação do pensamento, inclusive da minoria não religiosa, assim como a inviolabilidade da consciência e crença religiosa.
Brasil: Estado laico e a inconstitucionalidade da existência de símbolos religiosos em prédios públicos
Por Fernando Fonseca de Queiroz Mattos
Advogado brasileiro, especializado em Direito Processual Civil, em ensaio publicado na revista eletrônica Jus Navigandi, Teresina, ano 11, nº 1081, 17 de junho de 2006 - tema bastante atual e republicado com a autorização do autor.
1. Introdução
Tenciona-se, neste estudo, chamar a atenção para a laicidade da República Federativa do Brasil e ao aparente conflito entre o preâmbulo constitucional e o inciso I do artigo 19 da Magna Carta. Assim sendo, foram realizadas breves anotações com o intuito de direcionarmos a atenção aos direitos das minorias e proporcionar a reflexão sobre a matéria.
A análise da relação Estado / Igreja poderia transportar-nos para os tempos mais remotos da civilização, como a cultura do antigo Egito, os impérios escravistas da Antigüidade. Ninguém pode contestar a enorme influência da Igreja na Idade Média. Entretanto, não seria possível sintetizar essa evolução mundial em poucas páginas, pois este enfoque não pertence, neste momento, ao cerne de nossa pesquisa.
As razões que levaram a produção deste artigo têm origem na atualizadíssima discussão quanto à constitucionalidade da utilização de objetos religiosos em prédios públicos – como o crucifixo.
Pretende-se, portanto, discorrer, de forma sucinta, sobre a força normativa do referido preâmbulo, percorrendo o conceito de Estado laico, sua evolução nas constituições do Brasil, tendo como real objetivo a reflexão quanto à possível ocorrência de desrespeito à minoria não religiosa ou de religiões incompatíveis com tais símbolos.
2. A evolução histórica do Estado laico nas Constituições do Brasil
Estado laico é Estado leigo, neutro.
Conforme De Plácido e Silva: “LAICO. Do latim laicus, é o mesmo que leigo, equivalendo ao sentido de secular, em oposição do de bispo, ou religioso”. – (SILVA, 1997, p. 45).
O termo laico remete-nos, obrigatoriamente, à idéia de neutralidade, indiferença. É também o que se compreende nos ensinamentos de Celso Ribeiro Bastos, onde
“A liberdade de organização religiosa tem uma dimensão muito importante no seu relacionamento com o Estado. Três modelos são possíveis: fusão, união e separação. O Brasil enquadra-se inequivocadamente neste último desde o advento da República, com a edição do Decreto119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado. O Estado brasileiro tornou-se desde então laico. (...) Isto significa que ele se mantém indiferente às diversas igrejas que podem livremente constituir-se (...)”. – (BASTOS, 1996, p. 178).
O Estado e a Igreja sempre andaram muito próximos, por várias vezes confundindo-se, e isto desde as antigas civilizações. Diferente não foi com a formação do Estado brasileiro, que em seus primórdios já foi chamado de Terra de Santa Cruz e teve como primeiro ato solene uma missa. No Brasil, a Constituição outorgada de 1824 estabelecia a religião católica como sendo a religião oficial do Império, que perdurou até o início de 1890, com a chegada da República.
“A constituição de 25-3-1824 previa, em seu artigo 5º, que a ‘religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras Religiões são permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo’. Com o advento da primeira Constituição da República, o Brasil passou a ser um Estado laico e a consagrar ampla liberdade de crença e cultos religiosos”. – (MORAES, 2004, p. 215).
Pinto Ferreira demonstra o quanto a Igreja Católica era ligada ao Império de Dom Pedro II, quando nos lembra que a Constituição de 1824 só permitia a elegibilidade para o Congresso àquelas pessoas que professassem o catolicismo.
“O Artigo 113, item 5º da constituição de 1934 estatuiu que as associações religiosas adquiriram personalidade jurídica nos termos da lei civil. Os princípios básicos continuaram nas constituições posteriores até a vigente”. – (SILVA, J., 2000, p. 254).
Depois do advento da República, o Brasil jamais deixou de ser um Estado laico, pelo menos no papel.
3. O preâmbulo da Constituição de 88 e o artigo 19, I
Preâmbulo é o enunciado que antecede o texto constitucional. Nem todas as constituições o possuem. Nas constituições brasileiras ele esteve sempre presente. Mas qual é o valor jurídico do Preâmbulo?
Como bem discorre Ferreira, “o preâmbulo é uma parte introdutória que reflete ordinariamente o posicionamento ideológico e doutrinário do poder constituinte”. – (FERREIRA, 1989, p. 03).
As constituições brasileiras de 1891 e 1937 omitiram, em seu preâmbulo, a invocação do nome de Deus.
A Constituição de 88 trouxe o seguinte preâmbulo:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
Afirma João Barbalho que “o preâmbulo enuncia por quem, em virtude de que autoridade e para que fim foi estabelecida tal Constituição. Não é uma peça inútil ou de mero ornato na construção dela: mas simples palavras que constituem, resumem e proclamam o pensamento primordial e os intuitos dos que o arquitetam”. – (BARBALHO, 1924, p. 03 apud FERREIRA, 1989, p.03).
Uma linha doutrinária entende ter o texto preambular caráter coativo. Linha divergente aponta a ausência de força normativa da peça introdutória.
Entendemos que o preâmbulo terá força cogente somente nos termos que se encontram reafirmado no texto constitucional, do mesmo modo que entende Pinto Ferreira.
Observe-se que referência ao Estado Democrático encontra-se no artigo 1º da CF. O exercício dos direitos sociais e individuais, o direito à liberdade, à segurança, ao bem-estar, ao desenvolvimento, à igualdade e à justiça são todos retomados nos primeiros artigos de forma explícita, todavia não exaustiva, pois se encontram por toda a Constituição. Os artigos 3º e 4º da atual CF apontam novamente para a harmonia social, para uma sociedade fraterna e sem preconceitos e à solução pacífica das controvérsias.
A forma federativa do Estado é tão protegida que é tida como cláusula pétrea, constando no artigo 60, § 4º, I.
O único ponto do Preâmbulo não reforçado pelo texto constitucional foi a referência a Deus.
Além de não reafirmado, o artigo 19, I aponta para o contrário.
Artigo 19.
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na formada lei, a colaboração de interesse público;
Como bem esclarece Pontes de Miranda, “estabelecer cultos religiosos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa, ou propaganda. Subvencionar está no sentido de concorrer, com dinheiro ou outros bens de entidade estatal, para que se exerça a atividade religiosa. Embaraçar o exercício significa vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material dos atos religiosos”. – (MIRANDA apud SILVA, J., 2000, p. 253 e 254).
O artigo 150, IV, b proíbe a tributação sobre qualquer templo, justamente com a finalidade de não dificultar seu funcionamento por via financeira.
Extrai-se disto que o artigo 19, I não é conflitante com o preâmbulo constitucional. O artigo se sobrepõe, e só podemos entender que a “proteção de Deus” preambular é pertencente somente aos constituintes e seu caráter é meramente subjetivo.
4. A inviolabilidade de consciência e crença e a ostentação de símbolos religiosos em prédios públicos
Tanto a liberdade de opinião e a inviolabilidade de consciência são asseguradas por nossa Constituição.
A consciência e a crença são inerentes ao ser humano. É a pessoa humana quem pode ou não acreditar em um ser divino.
O Estado não tem sentimento religioso e, laico como é, não deve estabelecer preferências ou se manifestar por meio de seus órgãos.
Entendemos haver um equívoco ao se afirmar que o Brasil acredita em Deus. Quem pode acreditar ou não são os brasileiros.
Vemos que hoje há um predomínio de símbolos religiosos em prédios públicos, em sua maioria, crucifixos. Sendo o Brasil um Estado laico, que se coloca como neutro no que diz respeito à religião, então onde se assegura o direito das minorias não adeptas de tais símbolos?
Como bem afirma Dr. Roberto Arriada Lorea, “(...) O Brasil é um país laico e a liberdade de crença da minoria, que não se vê representada por qualquer símbolo religioso, deve ser igualmente respeitada pelo Estado”. – (LOREA, O poder judiciário é laico. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 set. 2005. Tendências/Debates, p.03).
Saliente-se então que, conforme nosso entendimento, não é lícito que prédios públicos ostentem quaisquer símbolos religiosos, por contrariar o princípio da inviolabilidade de crença religiosa. O Estado deve respeito ao ateísmo e quaisquer outras formas de crença religiosa. O predomínio do Catolicismo no Brasil não justifica tais símbolos.
Não entramos no mérito das religiões. Não avaliamos qual ou quais religiões o crucifixo representa. Isto não tem conotação pública e não nos interessa. Se tais símbolos ofendem a liberdade de crença ou descrença de uma única pessoa, já se torna justificada a retirada destes objetos.
5. Conclusões
Poderíamos ter abordado de forma mais ampla a evolução do Estado laico ou os vários pontos em que a Constituição de 88 aborda a respeito da religião, como o ensino religioso na escola pública, a assistência religiosa em entidades civis e militares.
Todavia, não seria possível perscrutar todos esses temas e reuni-los em apenas um artigo. Preferimos traçar uma noção sobre o preâmbulo constitucional e confrontá-lo com a laicidade da República Federativa do Brasil. O mérito das religiões não foi questionado - e seria totalmente contraditório se tentássemos analisá-lo.
A invocação de que a maioria brasileira é católica não pode ser utilizada em desrespeito à liberdade de qualquer pessoa.
O estudo não trata de religiões. É direito inviolável e constitucional não nos interessarmos por elas.
Advogamos pela inconstitucionalidade da permanência de qualquer alusão a alguma religião em dependências públicas. Para os que questionam quais benefícios surgirão, na prática, com a retirada deste símbolo, antes perguntamos: O que se ganhou quando da sua colocação?
Referências:
BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1996.
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. 1ª ed. v. I, São Paulo: Saraiva, 1989.
LOREA, Roberto A. O poder judiciário é laico. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 set. 2005 Tendências/Debates, p. 03.
MORAES. Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005.
____________________. Constituição do Brasil Interpretada. 4ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004.
SILVA. De Plácido. Vocabulário Jurídico. 12ª ed. v. III, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2000.
Cena que brasileiro não quer ver nem que chova prego!
Em respeito ao povo brasileiro e as leis que regem o país...
NBC
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