“Os gatos são excelentes companheiros de estudos, amam o silêncio e cultivam a contemplação...”.
Nise da Silveira (1906 - 1999)
Psiquiatra brasileira
Deu na revista Época, no dia 05 de outubro de 1998.
Felinos e as janelas da mente
Nise da Silveira, veterana no combate aos métodos tradicionais de psiquiatria, escreve um pequeno e encantador tratado sobre gatos
Aos 93 anos, Nise da Silveira está apaixonada. "Ele é lindo!", suspira a psiquiatra, quando pensa em Belo Antônio. Cinzento e felpudo, Belo Antônio é um das dezenas de gatos que habitam o Parque do Flamengo, área verde do Rio de Janeiro que a médica visita quando o tempo permite e a saudade de Carlinhos aperta. Há quatro meses, desde a morte do bichano Carlinhos, Nise enfrenta os dias sem companhia felina. Mais uma frustração para quem há seis anos sofre por se ver presa à cadeira de rodas e ter perdido uma sucessão de amigos - homens ou gatos. A alagoana que revolucionou a psiquiatria no Brasil e teve seus métodos de cura de esquizofrênicos, pelo afeto e pela alegria, admirados em todo o mundo remedia a saudade e a monotonia escrevendo um livro atrás do outro. No dia 22 de outubro, no Palácio da Cidade, sede da prefeitura carioca, ela vai lançar seu sétimo livro: Gatos, A Emoção de Lidar. Despretensioso, o livro é uma coleção de textos e poemas sobre gatos que Nise escreveu ou selecionou de outros autores. "Eu poderia ter feito um livro que acentuasse mais as maldades que as pessoas fazem com os animais. Mas a tristeza não acrescenta muito", diz Nise, já fazendo planos de escrever um novo livro.
À primeira vista, parece impossível que aquele fiapinho de senhora, dedos entortados pela idade e óculos grossos, possa escrever. Mas Nise escreve. A mão. Todo dia e sempre quando pode. "É um prazer", sorri. A próxima obra deverá ser sobre a psiquiatra Marie-Louise von Franz, sua mestra no período em que estudou em Zurique, no Instituto C.G. Jung, em 1957. Nessa época, Nise já era veterana na guerra contra os métodos tradicionais usados no tratamento da loucura, como os eletrochoques e a lobotomia, uma cirurgia que mutilava o cérebro. Formada em Medicina em 1926 - a única mulher numa turma de 156 homens -, Nise trabalhava em psiquiatria desde 1933. Em 1944, escalada para atender no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, recusou-se a dar choques em um paciente. Acabou transferida para o então desprezado setor de terapia ocupacional.
Nise percebeu que a pintura, o desenho e a modelagem poderiam ser meios de expressão para os pacientes impedidos pela esquizofrenia de usar a linguagem verbal. Em 1952, criou no Pedro II o Museu de Imagens do Inconsciente para preservar os trabalhos de seus clientes (como prefere chamar os doentes). A médica considera as obras - são mais de 300 mil - janelas para a psique, uma preciosa ajuda no entendimento dos "inumeráveis estados do ser". Mas críticos - especialmente Mário Pedrosa e Ferreira Gullar - se encantaram com a beleza de trabalhos de internos como Emydio, Adelina e Fernando Diniz. "Emydio estava internado havia 25 anos no Hospital Engenho de Dentro. Era o encarregado de levar a roupa do hospital para a lavandeira. Da primeira vez que pintou fez este quadro", diz Nise, apontando uma bela pintura na parede.
É um dos poucos enfeites nos dois apartamentos modestos do bairro do Flamengo onde Nise vive há quase 50 anos. O de cima é seu escritório, onde lê jornais e livros de Machado de Assis e literatura francesa; o de baixo, moradia. Os dois envelheceram com ela. As paredes estão descascadas; o chão, desbotado. Suas companhias são a secretária Deusilene Moreira Lago e Maria Nilsa Simplício, há 26 anos sua explosiva e carinhosa empregada. "Esta é minha chefe. Ela me repreende e eu aceito", diz, divertida, a médica, que às vezes deixa as duas tontas, com ataques de irritação e crises de insônia. "Nise tem um temperamento forte. É brigona", diz o sobrinho, o engenheiro Vladimir da Silveira.
Além das fotos do marido morto em 1986, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, há muitos retratos do pensador Carl Jung, em cujas idéias Nise baseou boa parte de seus estudos. O próprio psiquiatra suíço lhe deu a pista para a compreensão dos trabalhos dos internos, recomendando o estudo da mitologia. Jung visitou a exposição de obras dos internos do Pedro II que Nise levou para um congresso em 1957. "Ele gostou muito, pois os desenhos confirmavam suas teorias. Era uma pessoa muito simples", lembra, emocionada. Em 1969, Nise fundou no Brasil o primeiro grupo de estudos das obras de Carl Jung. Desde então, todas as noites de quarta-feira o apartamento onde mora está aberto para quem quiser aparecer. "Há muito por estudar", afirma Nise, presença certa. "Ela às vezes nos surpreende citando trechos de Jung, dizendo exatamente o volume e a página", diz Vera Macedo, diretora da Casa das Palmeiras, centro de tratamento que Nise fundou em 1952, em Botafogo. Grupos de estudantes vêm de outros estados para ouvir as discussões. "Quando ela entra na sala, muitas vezes é aplaudida. Acho que é sua única vaidade", conta seu sobrinho Vladimir.
Aos estranhos, ela garante que "fez pouco" em sua carreira. Mas, depois de assistir a uma peça escrita e desempenhada pelos clientes da Casa das Palmeiras, onde acontecem muitas outras atividades artísticas, segredou contente a Vladimir: "Se não existisse um lugar como esse, a maior parte deles estaria em hospícios". O próprio fotógrafo do livro, Sebastião Barbosa, foi um cliente da Casa e ainda hoje, volta e meia, procura a antiga médica e amiga para uma sessão de análise. "Ela resolve qualquer problema. Só não resolve falta de dinheiro", garante.
Anabela Paiva
Emoção num pedaço de veludo
Trecho de Gatos, A Emoção de Lidar, da psiquiatra Nise da Silveira
"Entre 1946-1974 dirigi a seção de terapêutica ocupacional no Centro Psiquiátrico Pedro II. Optei por utilizar como método a terapia ocupacional, método considerado de importância menor e até mesmo subalterno. Contudo, minha intenção era reformá-lo completamente. (...) Para nós faltava-lhe algo, faltava-lhe emoção.
Foi quando certo dia um rapaz freqüentador da Terapia Ocupacional, em vez de entrar numa das salas de trabalhos masculinos preferiu entrar na sala de atividades femininas atraído pelas qualidades latentes que pressentia existirem num pedaço de veludo estendido sobre a mesa da sala. Dirigiu-se à monitora Maria Abdo e perguntou: 'Posso com este pano fazer um gato?' (...)
Completado o gato, Luis Carlos tomou um lápis e escreveu:
'Gato simplesmente angorá do mato
Azul olhos nariz cinza
Gato marrom
Orelha castanho macho
Agora rapidez
Emoção de lidar'
Enquanto manipulava seu gato de veludo, com surpreendente habilidade, Luis Carlos parecia feliz e disse: 'Como é macio! Sinto grande emoção de lidar com ele entre minhas mãos'.
Essa expressão Emoção de Lidar foi ponto de partida para substituirmos o pesado título Terapêutica Ocupacional."
ENTREVISTA
A ação curativa da alegria
Nise fala de felinos, psicanálise e utopias
Época: Por que sua admiração pelos gatos?
Nise da Silveira: Cultivo muito a independência. Por isso gosto do gato. Muita gente não gosta pela liberdade de que ele precisa para viver. No circo você vê tigre e urso, mas não vê um gato. O gato é altivo, e o ser humano não gosta de quem é altivo.
Época: A senhora foi pioneira no uso de animais no tratamento de doentes mentais, hoje muito mais usado na Europa que no Brasil. A psiquiatria avançou bastante aqui?
Nise: A introdução de animais como co-terapeutas foi o que em minha vida mais me fez sofrer. Fui ridicularizada. De modo que me liguei muito a outros países onde a psiquiatria era mais desenvolvida. Há várias correntes de tratamento, muitas hoje eu nem conheço. Mas não houve um grande avanço. Ainda se confia muito no remédio. Remédio não me parece muito eficiente. Pode ter efeito paliativo, mas não curativo. Confio mais no afeto e na ação curativa da alegria.
Época: A senhora chegou a ser presa como comunista, no Estado Novo. Hoje, como a senhora vê o mundo?
Nise: Felizmente fui presa no tempo do Getúlio. Se fosse no do Médici, eu não estaria aqui falando com vocês. O domínio do capitalismo parece que não está trazendo nada de muito bom. Também o comunismo teve suas grandes falhas, que são da natureza humana.
Época: A senhora ainda acredita em utopias?
Nise: Não. Desejo um mundo socialista, justo, mas não vejo como poderia se realizar. Quem dera o mundo fosse bom, mas não é. O que há, ainda, são pessoas boas, como o Betinho, que lutou até o último momento.
NISE DA SILVEIRA
Nasceu em Maceió, em 1906
Presa como comunista no Estado Novo, vira personagem de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, e é afastada do serviço público por motivos políticos de 1936 a 1944
Por dois períodos, em 1957/58 e 1961/62, estudou no Instituto C.G. Jung
É autora de seis livros, entre eles Imagens do Inconsciente e Cartas a Spinoza
* O Título inicial, a ilustração e a epígrafe foram escolhas minhas.
Nathalie Bernardo da Câmara
Bela história de vida, personagem encantadora. Só podia mesmo gostar de animais e, principalmente, de gatos. Abraços.
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