sexta-feira, 10 de junho de 2011

DO BAÚ: LYGIA FAGUNDES TELLES OU A DAMA NOS 80



“ARIANÍSSIMA”, disse-me o jornalista e escritor Suênio Campos de Lucena, referindo-se à escritora Lygia Fagundes Telles, que, recentemente, no dia 19 de abril de 2003, completou 80 anos de idade. Curiosamente, aversa a aniversários - sem nem mesmo querer ouvir falar em comemorações -, Lygia se recusou terminantemente a responder perguntas relacionadas à idade - a sua, no caso.

Estudioso e consultor da obra da escritora, Suênio foi o nosso intermediário quando decidimos, Lygia e eu, retomarmos, fins de 2002, a entrevista que ela me concedeu em julho de 1991, durante a 5ª Bienal de Literatura Brasileira, promovida pela Fundação Nestlé de Cultura, no Centro de Convenções de São Paulo, e, desde então, inédita.

A nossa conversa, portanto, acontecida há pouco mais de onze anos, foi finalmente retomada, ou melhor, “os fios foram restaurados” entre nós, segundo as suas próprias palavras, num e-mail que me enviou, não somente autorizando-me a publicar a entrevista, colocando-se à disposição para atualizá-la, como também sugerindo que eu elaborasse novas perguntas, às quais responderia de bom grado.

Assim, o tour de force empreendido por todos para que o meu papo com a Lygia, embora interrompido por onze invernos, ou melhor, curtido como deve ser um bom vinho - quanto mais velho melhor, costumam dizer os enólogos -, fosse finalmente publicado surtiu efeito, tornando-se, agora, contudo, mais palatável aos leitores, que poderão apreciá-lo quiçá ao sabor de um estranho chá...


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NATHALIE BERNARDO DA CÂMARA: Os cachorros vieram primeiro; os gatos, depois. E o ser humano?
LYGIA FAGUNDES TELLES: O ser humano sempre esteve presente, de uma forma ou de outra. Sempre tive a maior precisão do outro, deste próximo. Eu quero dizer, biblicamente falando. Primeiro com a minha família e, depois, com meus dois casamentos. O primeiro foi uma separação voluntária; no segundo, involuntária, porque foi a morte. E, então, meu filho, tem o meu filho Goffredo... Eu não gosto de falar em solidão, porque creio que o ser humano tem precisão sempre do outro do lado. Eu penso isso. Gosto muito da Bíblia. O Eclesiastes diz que é preciso você ter alguém do seu lado, porque, se você cair, o outro do lado ajuda você a se erguer... Ah, essa precisão do outro exclui a solidão! Solidão, sim, para escrever, para o trabalho, mas não para o cotidiano, já tão difícil, essa violência toda. Apesar de agora, com esse governo que assumiu, eu vislumbre novamente a esperança.

NBC: Fala-se muito em loucura, medo, doença e morte. E a paixão?
LFT: Quando falo em vocação sempre tenho em mente a paixão, compreende? Essa paixão é que me faz continuar escrevendo após tanto tempo, apostando nesse outro, às vezes, distante. Afinal, o que é a paixão senão fazer o que você quer, o que você ama fazer? É a felicidade de exercer o seu ofício. Antigamente, eu receava em falar sobre a minha vocação, pensava estar incluída nisso o sucesso, o brilho... Não! Agora sei que você pode exercer o seu ofício até na obscuridade, almejando apenas a felicidade, a paz interior de fazer algo que se gosta. Isso é tão importante, meu Deus! No meu caso, a paixão está sempre incluída.

NBC: Com qual das personagens do seu romance As Meninas você mais se identifica?
LFT: Eu não estou em nenhuma e estou em todas as minhas personagens. Invenção & memória. (risos). O escritor se mostra e se esconde naquilo que escreve; no meu caso, oscilo em algo confessional, mas logo me oculto como uma concha... Esse é o mistério, o jogo da ficção que o escritor propõe ao seu leitor. Será que consegui? Faço essa pergunta sempre que acabo um livro. No caso de As Meninas, acho que tenho um pouco da Lorena, aquela jovem sonhadora, desligada, aparentemente frágil, mas que, no final, surpreende, sabe lidar com a morte de outra personagem. É ela quem sustenta a situação no final. Mas, como disse, eu estou, de uma maneira ou de outra, em todas as minhas personagens. A Rosa Ambrósio, do romance As Horas nuas, por exemplo, é uma alcoólatra meio alucinada. Eu não sou alcoólatra nem alucinada, mas também estou nela.

NBC: Quando você descobriu a sua vocação literária?
LFT: Não sei ao certo, porque acho que escrever é um pouco como amar. (risos). Nathalie, no momento em que você se dá conta que está amando, você já está amando há muito tempo. É de uma forma inconsciente que nasce esse amor em você. É de uma forma inconsciente. Você não percebe. E quando você se dá conta, já está na plenitude do amor. É isso que é bonito, importante. Inconscientemente, você se entrega a esse amor e, em seguida, você pergunta: mas há quanto tempo você está apaixonada? Você olha e você não sabe. Porque o amor começou talvez antes de você se apaixonar. Então, é algo vago, inconsciente.

Voltando ao livro As Meninas, foi meio a contragosto que finalizei o romance numa distante praia do litoral paulista. “Eu consegui, eu consegui!”, disse pra mim. Acabei felicíssima, mas um pouco triste também, por ter de me desgarrar daquelas personagens com quem convivi intimamente durante meses. Mas, literatura é isso - dor e celebração. Escrever é como uma ostra, aquele escargot refinadíssimo, o qual vamos abrindo sem saber muito bem o que virá. O ato é carregado de dor e celebração. Prazer? Às vezes. Tenho um sentimento de auto-crítica muito grande em relação ao meu trabalho (não gosto do termo “obra”). Quando escrevo, me torno um pouco minha. Mas, apesar de tudo, existe o grão da loucura e da felicidade, sim.

Falando objetivamente, como afirmo em Durante aquele estranho chá, comecei a escrever ouvindo as histórias que a minha pajem contava - queria outros finais, entende? Hoje, seguindo a crítica do amigo Antonio Candido, considero meu primeiro livro o romance Ciranda de Pedra. Os iniciais são juvenilidades.

NBC: Como sente as recentes perdas de grandes escritores brasileiros?
LFT: A perda, assim, tirante, evidentemente, perda de seres mais próximos, como pai, mãe, irmão, eu fiquei alucinada. Aí, foram partes de mim mesma que perdi. Com os amigos (minha nossa, já se foram tantos!)... Em 2002 falou-se muito, devido ao seu centenário, no Carlos Drummond de Andrade. Ele era muito integrado a mim, tínhamos temperamentos parecidos. Uma certa discrição, era muito reservado. Ele fazia parte da minha vida. E como eu me sinto, você pergunta? Um vazio, uma vontade de dizer coisas que eu não tive tempo de dizê-las enquanto este amigo estava, assim, à mão. Isto falando de amigos como Drummond; Clarice Lispector, que, embora morasse no Rio, estávamos ficando cada vez mais próximas, chegamos a viajar pra Colômbia, à cálida Cali, como cito em Durante aquele estranho chá.

Falando do amor, que foi Paulo Emílio Salles Gomes, quantas coisas eu poderia ter dito, mas não houve tempo, eu não sabia, claro... É que o ser humano, enquanto está do nosso lado, parece imortal. Nós, agora, parecemos imortais, não é? (risos). Quando soube que ele estava morto, pensei: “Tanta coisa que poderia ter dito”. É o sentimento, então, da impossibilidade, da irreparabilidade da recuperação. Eu tenho horror da morte. Na viagem, em todos os outros instantes, na separação pura e simples, há a esperança da recuperação; na morte, não.

Todos esses que mencionei (há tantos outros!) estão no meu livro Durante aquele estranho chá, a forma (quem sabe?) que eu tive de falar essas coisas para eles. Há, ainda, Jorge Luis Borges, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Jorge Amado, enfim, pessoas que conheci e admirei desde sempre.

NBC: Na sua opinião, caberia ao escritor fundamentar a sua obra em que realidade?
LFT: Aí, é o destino. É uma frase de Montaigne. “Eu sou a matéria da minha obra.” Eu estou dentro desta obra e, ao mesmo tempo, não estou, conforme expliquei. Eu estou e não estou nas minhas personagens, porque estou fragmentada entre elas. A certeza que estou me dando a esta obra e, ao mesmo tempo, me costurando nela. É como se a minha escrita fosse uma costura de tudo o que eu escrevi, compreende? Então, eu me junto, eu me integro e me desintegro naquilo que escrevo, por isso tento fazer o melhor que posso. Cada vez mais acredito que é preciso ter uma extraordinária coragem para escrever num país como o nosso, tão maravilhoso e tão miserável. A circunstância é muito ruim para o escritor, para qualquer ofício, menos, parece, para os políticos, não é? Eles parecem sempre tão bem.

NBC: O escritor Moacyr Scliar já chegou a afirmar que o conto é o gênero literário das sociedades caóticas. Seria mesmo?
LFT: Sim, porque ele é rápido, de curta duração. O que existe no caos? Justamente a falta de tempo, de perceber o outro. O romance é para um tempo de paz, de tranqüilidade. No romance há uma seqüência e outra seqüência. Eu acho todos os gêneros difíceis em qualquer tempo, qualquer sociedade, porque parto do princípio que sempre fracassaremos. Quanto maior a ambição, maior o fracasso. Com essa assertiva, seja escrevendo um conto ou um romance, é importante ter em mente que o resultado nem sempre será o que buscamos, mas só saberemos escrevendo. O importante é ver esse fracasso como um desafio imposto a nós mesmos.

NBC: Você já escreveu poemas?
LFT: Quando era muito jovenzinha, sim, cometi alguns poemas. Depois entrei no conto, romance... Mas a poesia não é o meu gênero. Escrevo com paixão tanto o romance quanto o conto. Ambos são difíceis.

NBC: Fale um pouco sobre o livro A Estrutura da bolha de sabão.
LFT: É um conto que dá nome a um livro de contos. São contos que não são inéditos, porém, decidi revisitá-los. Aliás, passei os últimos três anos revisando todos os meus livros num exercício extremamente exaustivo. Isso se deu porque a Rocco adquiriu os direitos de toda a minha obra e desejei dar-lhes uma feição ainda mais elaborada, ainda mais acabada. Sou uma insatisfeita, carrego comigo o sentimento ilusório da perfeição. Com essa busca, que, às vezes, me parece insana de tão difícil (como disse, fico minha inimiga de tão auto-crítica), não resisto, quero encontrar novas linguagens, novas formas. Faço isso em respeito ao meu leitor e porque acredito que literatura se faz exatamente a partir dessa busca. Esse é o momento sublime em que exercito a minha paixão pelas palavras, pela literatura.

NBC: Qual, dentre todos os seus livros, o mais significativo para você?
LFT: Costumo afirmar que o último livro é o que me toca mais, porque é o mais recente. No caso, este Durante aquele estranho chá, em que revisito minha vida, meus amigos, lugares em que passei. Invenção ou memória? Não sei. Mistério. (risos). Me vejo sempre muito próxima dos meus livros. É como um amor. Quando você se afasta de um amor você está mais plena dele do que o penúltimo amor ou, então, daquele lá atrás, que você até já pode ter esquecido. (risos). É uma questão de impregnação. Você ainda está com a voz do seu amado nos ouvidos, você ainda está com os gestos dele, os gestos do ser que você amou. Esta soma de manifestação do seu amor é um legado, ele vai se somando e ficando em você.



“O medo me fascina. Eu escrevo o medo, muitas vezes. O medo me fascina. Num discurso extraordinário, Faulkner, quando recebeu o Prêmio Nobel, disse: “No dia em que o escritor tiver dominado o medo, só nesse dia ele poderá escrever a sua grande obra.”. Eu pergunto, agora: Faulkner não tinha medo? (...) Tinha sim. O medo faz parte da condição humana, e justamente nós tentamos escrever esse medo e canalizar esse medo para a palavra. De um certo modo, nos libertamos. É uma libertação e também não chega a ser uma libertação. As coisas são muito ambíguas...”.

(Depoimento da escritora Lygia Fagundes Telles, durante o debate em que ela participou, na 5ª Bienal de Literatura Brasileira, promovida pela Fundação Nestlé de Cultura, no Centro de Convenções de São Paulo, em 1991.)


NBC: E a Academia Brasileira de Letras?
LFT: Apesar de tudo que falam, acho importante porque tem lá homens e mulheres muito importantes, que já fizeram muito e escreveram sobre este país. Em geral, pessoas que amam esta pátria, sérias, ardorosas defensoras deste Brasil tão combalido. Acho importante, porque, como disse, não gosto da solidão, e a academia me dá esse convívio literário. Todos nós temos nossos grupos, nossas amizades. Estou lá há mais de quinze anos e durante todo esse tempo tem sido um convívio muito bom.

NBC: Parece que o poeta Mário Quintana não gostava muito desse convívio... (Poucos anos antes da sua morte, em 1994, Mário Quintana criticou a política da Academia Brasileira de Letras e os seus membros de uma forma em geral, recusando um convite para concorrer a uma cadeira da instituição).
LFT: É, parece até que ele se interessou uma época, depois... Bem, eu falava do convívio que a academia nos dá, porque são pessoas que trabalham com a palavra - a poesia, o romance, o ensaio. Lá, trocamos idéias, referências de livros, autores e, principalmente, vemos intelectuais, figuras de proa do cenário nacional, como Nélida Piñon, uma querida amiga, a Rachel, um Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Heitor Cony, enfim, tantos nomes que, como disse, já contribuíram com este país. Então, são pessoas que trabalham com o mesmo material que eu. Como disse, solidão é pra escrever. Fora isso, gosto do contato do outro.

NBC: Neste início de século, onde estão os novos nomes da literatura brasileira?
LFT: Gostaria de dizer que recebo muita coisa, os jovens me mandam muitos livros, originais; eu leio e me surpreendo - sim, cada vez mais, há gente da maior qualidade escrevendo. Eu fico muito feliz em saber que temos escritores que estão se revelando, enfrentando tantas adversidades que é escrever e, sobretudo, publicar, fazer o seu livro chegar às mãos do leitor. Temos muitos bons escritores brasileiros das mais variadas gerações. Eu apenas não gostaria de citar nomes porque sou o oposto do político, que não esquece nenhum. Ao contrário, sou desligada e posso cometer injustiças de não me recordar. No entanto, recebo livros de todas as regiões e leio sempre grandes revelações.

NBC: Qual seria, então, para você, a função da palavra escrita?
LFT: Não está tendo função nenhuma ultimamente, porque a política não permite. Há como que um complô, uma conspiração para abafar essa palavra. Um silêncio, um duro silêncio. Passei minha vida caminhando em caravanas, fui a tantas cidadezinhas (eu, o querido Ricardo Ramos, já falecido; a Nélida e o Ignácio de Loyola Brandão) divulgar não os meus escritos, mas os escritores brasileiros que vieram antes de nós... Machado de Assis, Castro Alves, Jorge Amado, enfim, tantos... Às vezes, acabávamos falando pra meia dúzia de sonolentos. Percorremos centros culturais, bibliotecas, universidades pregando a bandeira da educação, da leitura, que está diretamente ligada à literatura. Enfim, miséria, miséria, miséria, eis uma insistente verdade, que anda de braços dados com o analfabetismo. Creio que o cenário melhorou um pouco, mas ainda há muito a se fazer. Como não dispomos de poder político algum, usamos a palavra, a única força que temos.

Em 1960, esteve no Brasil o escritor chamado Aldous Houxley, que escreveu um livro chamado Contraponto. Quase cego, chegou aqui no Brasil e a primeira frase que eu ouvi em sua fala na Biblioteca Mário de Andrade foi: “No dia em que o Brasil tiver mais escolas, terá menos hospitais.”. Ah, que bonita esta frase, de um quase cego inglês, que nunca tinha visto nada aqui. Então, apesar de termos consciência disso, precisamos insistir, porque já se passaram mais de 40 anos em que ouvi isso, mas as nossas chagas continuam aí.

NBC: O seu penúltimo livro Invenção e memória (2000) é um primoroso livro de contos, que se encontra em sua terceira edição, além de ter sido bem recebido pela crítica. Para você, é nítida a fronteira que separa a invenção da memória ou não?
LFT: Gosto muito deste livro e do mais recente, o Durante aquele estranho chá porque ambos me remetem a várias Lygias, reais e imaginárias. Afinal, o que é ficção e o que é verdade? Difícil distinguir isso quando escrevemos, não? Então, sou todas essas Lygias que estão nos livros. Está lá a jovem estudante de direito de boina, em plenos anos 40, tomando chá com o Mário de Andrade na Confeitaria Vienense (esse é o texto que dá título ao livro); depois, eis uma jovem senhora em Paris, conversando com a Simone de Beauvoir; em seguida, estou eu escrevendo com o Paulo Emílio, que tanto amei... Tudo isso está no livro e eu apareço como naquele poema do Mário, "eu sou trezentos e cinqüenta".

NBC: Durante Aquele estranho chá (Rocco), lançado durante a última Bienal de São Paulo, é uma coletânea de textos dispersos, escritos ao longo do tempo. Como você se sentiu e ainda se sente com a publicação de um livro que, além de textos até então perdidos, traz ainda alguns inéditos? Ainda impregnada?
LFT: A idéia e organização deste livro é do jornalista e escritor Suênio Campos de Lucena, que, além de estudioso da minha obra, é um grande amigo meu. Ele reuniu durante dois anos todos esses textos que estão no livro. Eles foram publicados ao longo da minha vida em jornais e revistas e eu não pensava em publicá-los, mas havia tanta coisa interessante... Estão lá os meus encontros com Hilda Hilst, Jorge Luis Borges, Drummond, Clarice Lispector, Mário de Andrade, Simone de Beauvoir, enfim, homens e mulheres com quem convivi e amei, como Paulo Emílio Salles Gomes. O Suênio acabou então me convencendo a publicá-los. Sugeri um ou outro texto, mas, de qualquer forma, acabei revisando todos. E, agora, realmente acho o resultado excelente. As ovelhas que estavam soltas foram tosquedas e reunidas. O pastor junta o seu rebanho.

NBC: Neste livro, você diz que o escritor tem de vencer o medo para escrever sobre esse medo. “E resgatar a palavra através do amor.” - bonita frase. Eu perguntaria... Você teria algum conselho para aqueles cuja vocação é a literária, mas que ainda caminham a passos trôpegos, apesar da paixão pela palavra?
LFT: Continuar com essa paixão. Ler, ler... Escrever, escrever... É importante ler bons autores, se conjugar a pessoas que gostem de ler (olha a solidão!), enfim, batalhar por aquilo que você acredita sem esquecer a paixão. “A caminhada de mil passos começa com a primeira”, dizia o indiano de roupas soltas e que fez uma revolução, Mahatma Gandhi.

NBC: Uma curiosidade... Já houve alguma ocasião em que você chegou a tomar um estranho chá na Academia Brasileira de Letras?
LFT: Como moro em São Paulo, vou pouco ao Rio. Mas, sempre que posso vou ao encontro das quintas e é uma alegria rever amigos. O chá é elemento de união, harmonia e leveza.

NBC: Falando na Academia Brasileira de Letras, em 2002 a instituição elegeu Paulo Coelho como o seu mais novo imortal, vencendo o sociólogo Hélio Jaguaribe. O resultado da eleição, entretanto, apesar do eleito ser um dos maiores fenômenos editoriais do mundo, lido e traduzido em mais de cinqüenta idiomas, gerou e tem gerado polêmicas. Eu gostaria de saber, portanto, sem querer entrar no mérito do valor literário da obra de cada um dos candidatos, como você, terceira mulher eleita para a ABL, e a sua atual primeira secretária, analisa o resultado das últimas eleições da Academia?
LFT: Como disse, não sou afeita à política, então não posso comentar, porque não participo das campanhas, fico no meu canto, reservada. Cada vez mais, como os copistas medievais, quero apenas escrever, escrever... Quanto ao Paulo Coelho, ele foi eleito por uma pequena margem, por dois votos, prevalecendo, então, o voto da maioria. Como todos sabem, votei no Hélio Jaguaribe. Quando eleito, o Paulo me ligou e eu o cumprimentei; não podemos esquecer que ele é um escritor, um ficcionista e a academia é de letras.

NBC: Alguns dos seus contos e romances já foram adaptados com sucesso para a televisão, cinema e teatro. O que você acha desse interesse de produtores, dramaturgos e cineastas pela sua obra?
LFT: Vejo sempre com muita alegria essa transposição da minha obra para outras linguagens, mas confesso que, muitas vezes, não me reconheci no que eu vi (risos). Mesmo assim, claro, é importante para o escritor ver seus personagens falando, comendo, tomando forma na pele de atores que o defendem muito bem. Quero registrar aqui a peça de Maria Assunção, do meu conto A Pomba Enamorada; o Olayr Coan, com A Confissão de Leontina, e o filme As Meninas, feito pelo Emiliano Ribeiro. Tenho notícias que estão adaptando o conto As Formigas.

NBC: Você citou o escritor Houxley, que teria dito: “No dia em que o Brasil tiver mais escolas terá menos hospitais”. No livro Durante aquele estranho chá, você acrescentou: “No dia em que o Brasil tiver mais escolas e mais creches ele terá menos hospitais e menos cadeias”. Quais seriam, então, as suas expectativas em relação à saúde, à educação, à infância e à violência nesse novo cenário político que desponta no país?
LFT: Eu votei no Lula. Meu voto, aliás, apareceu no seu site e eu fiquei feliz em poder assumir publicamente esta minha opção política, porque acredito, sim, que teremos algumas novidades. Esses setores que você cita todos se referem e acabam na nossa degradada situação social, ainda um horror para milhões de pessoas deste país. No meio disso, como sabemos, as drogas, a violência. Creio que teremos um maior enfoque no lado social. Isso é urgente, não se pode adiar.

NBC: O mercado editorial brasileiro, continuará, na sua opinião, invadido por best-sellers estrangeiros, em detrimento da produção literária nacional, a qual, por sinal, é de excelente qualidade?
LFT: Se você pega a lista dos livros mais vendidos é incrível como todos os títulos são sempre de autores estrangeiros... Esses livros de auto-ajuda que mais ajudam os bolsos dos seus autores. Bem, ainda assim, diante desse cenário, acho que tem saído muita coisa boa. Não podemos desacreditar, é isso! Não podemos nos dar ao luxo da desesperança, porque ainda há muito a se fazer no nosso país.

NBC: Para um escritor, o maior presente que ele poderia receber dos seus leitores seria o reconhecimento da sua obra. Qual seria, então, o próximo livro da escritora Lygia Fagundes Telles, do que se trata e se há alguma previsão de lançamento?
LFT: Eu estou retomando contos antigos, que andam esgotados. Quero refazer tudo. Além disso, começo a escrever a minha primeira história infanto-juvenil, Eu, o Gato. Mas, são apenas projetos, os quais devem sair entre 2003 e 2004. Nestes anos, as datas que quero comemorar são os trinta anos de As Meninas e, em seguida, o cinqüentenário de Ciranda de Pedra, meus livros que, por sinal, têm mais leitores.


"Eu acho a loucura extraordinária. Nós somos razoavelmente loucos, todos nós. Eu acho isso ótimo. (...) Eu fiz análise. Um dia eu fui num cara e tal, eu estava muito aflita e, quando eu percebi, ele tinha mais medo, estava mais aflito do que eu. Eu fui lá para falar sobre o meu problema e ele acabou chorando, porque a sua mulher estava com câncer. Uma história horrível. Então, eu saí de lá, paguei uma nota alta, fui para a rua e disse: 'Olha, eu tenho de me virar eu mesma, porque eu já entendi tudo. Eu tenho de me virar mesmo...'”.

(Depoimento da escritora Lygia Fagundes Telles, durante o debate em que ela participou, na 5ª Bienal de Literatura Brasileira, promovida pela Fundação Nestlé de Cultura, no Centro de Convenções de São Paulo, em 1991.)


NBC: O amor e a arte possuem verdadeiros poderes de cura, qualquer que seja a natureza do mal. O sonho, portanto, deveria ser alimentado, sempre?
LFT: É preciso sonhar sempre, ainda mais em meio às tantas adversidades em que vivemos. Sim, não podemos perder a ternura (Che Guevara!) nem o sonho. Isto me lembra o meu texto em Durante aquele estranho chá sobre o autor argentino Jorge Luis Borges. No final da vida, em sua última visita ao Brasil, sem enxergar, ele reconhece a minha voz e me diz: “O sonho! O sonho!”. Ouvi e fui embora com os olhos marejados. E você fala nas duas coisas que, para mim, são as mais preciosas nesta vida, amor e arte. Um completa o outro. “No fim, tudo passa”, diz um cético Fernando Pessoa, sem esquecer de destacar a arte, o amor.



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Filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura, Lygia Fagundes Telles nasceu Lygia de Azevedo Fagundes no ano de 1923, na cidade de São Paulo. A menina, que cresceu ouvindo histórias de pagens, para as quais, diga-se de passagem, sempre desejou outros finais, felizes ou não, tornou-se escritora, dedicando-se, sobretudo, ao conto e ao romance - ofício que tem exercido com primor ao longo de sessenta e três anos. Os seus primeiros trabalhos, entretanto, Porão e sobrado (1939), Praia viva (1944) e O Cacto vermelho (1944), são rejeitados pela autora e proibidos por ela de serem reeditados - consta ainda no índex da escritora os livros cujas edições encontram-se esgotadas: Histórias do desencontro, 1958, História escolhidas, 1964, O Jardim selvagem, 1965, e Filhos Pródigos, 1978.

Formada em Direito e Educação Física, Lygia casou-se com o jurista Goffredo da Silva Telles Júnior em 1950 - na ocasião deputado federal -, mudando-se, em função do cargo exercido pelo marido, para o Rio de Janeiro, onde funcionava a Câmara Federal. Dois anos depois, de volta a São Paulo, começou a escrever o seu primeiro romance, Ciranda de pedra - considerado por ela como sendo o seu marco literário -, publicando-o em 1954. Em 1960, separou-se de Goffredo, passando a morar, três anos depois, com Paulo Emílio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira, quando iniciou o polêmico romance As Meninas. Em 1967, a convite de Paulo César Saraceni, adaptou para o cinema, em parceria com Paulo Emílio, o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Como funcionária pública, advogou por trinta anos no Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, além de ter sido presidente da Fundação Cinemateca Brasileira em São Paulo durante quatro anos, após a morte de Paulo Emílio, em 1977, e também vice-presidente da União Brasileira de Escritores. Premiada nacional e internacionalmente - arrebatou os prêmios literários mais importantes do país, entre eles, Prêmio Afonso Arinos e Prêmio Coelho Neto, ambos da Academia Brasileira de Letras -, Lygia é autora de mais de vinte livros, entre contos, romances e fragmentos, além das crônicas que publicou na imprensa e das adaptações de textos seus para o Cinema, Teatro e televisão, já tendo sido, inclusive, traduzida para diversas línguas: Alemão, Espanhol, Francês, Inglês, Italiano, Polonês, Sueco e Tcheco.

Eleita para a cadeira 28 da Academia Paulista de Letras em 1982 e, em 1985, para a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras, fundada por Gregório de Matos, na vaga deixada por Pedro Calmon, Lygia teve a sua obra e o seu ofício registrados no documentário Narrarte, produzido na década de 90 pelo seu único filho, Goffredo da Silva Telles Neto. Em 1997, a Editora Rocco comprou os direitos de publicação de toda a sua obra e, em março de 2001, foi agraciada com o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Brasília. Para os próximos dias, Durante aquele estranho chá será indicado ao Prêmio Jabuti, o livro A Disciplina do amor lançado na França e o filme As Formigas, baseado no seu conto homônimo pela cearense Verônica Guedes, tem lançamento previsto ainda para este ano. Em 2005, foi agraciada com o Prêmio Camões.



Livros publicados


Ciranda de pedra, romance (1954)
Verão no aquário, romance (1963)
Antes do baile verde, contos (1970)
As meninas, romance (1973)
Seminário dos ratos, contos (1977)
A disciplina do amor, fragmentos de memória (1980)
Mistérios, contos (1981)
As horas nuas, romance (1989)
A estrutura da bolha de sabão, contos (1991)
A noite escura e mais eu, contos (1995)
Oito contos de amor (1996)
Invenção e Memória, contos (2000)
Durante aquele estranho chá, memória (2002)
Meus contos preferidos, 2004
Histórias de mistério, 2004
Meus contos esquecidos, 2005


(Transcrito do jornal Pasquim 21,
publicada em abril de 2003 – revista e atualizada).


Nathalie Bernardo da Câmara
Registro profissional de jornalista:
578 - DRT/RN, desde 1989


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Publicado, originalmente, neste blog, no dia 31 de julho de 2009. Mais originalmente, ainda, no Pasquim 21, já extinto, de Ziraldo. 



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