COVARDIA:
AGENTE DA MALDADE...*
William Shakespeare (1564 - 1616)
Autor e escritor inglês
Toda hora é hora para denunciar qualquer tipo de abuso sexual cometido contra crianças e adolescentes. Afinal, a cada 15 segundos, uma criança, por exemplo, é abusada no Brasil. E, para denunciar, basta ligar para o Disque 100, que, desde 1° de março deste ano, inclusive, passou a funcionar 24 horas, ininterruptamente – medida essa que faz parte da Campanha de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, lançada nacionalmente no dia 25 de fevereiro pela Secretaria de Direitos humanos da Presidência da República - SDH/PR, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, prevista para acontecer durante todo o ano de 2011. Para a secretária nacional de Assistência Social do MDS, Denise Colin, o objetivo da campanha é dar maior visibilidade ao problema e chamar a atenção de toda a sociedade para, juntamente com o Estado brasileiro, superar o fenômeno “que infringe absolutamente todos os direitos de crianças e adolescentes e os princípios constitucionais do Brasil”.
O conceito da campanha, por sua vez, é: Tem coisas que não dá para fingir que não vê. Violência sexual contra crianças e adolescentes é crime. Denuncie. A bola está com você. No quesito denúncia, portanto, entre maio de 2003 e dezembro de 2010, por exemplo, o Disque 100 fez cerca de 2,5 milhões de atendimentos e encaminhou mais de 145 mil denúncias de todo o país, atendendo 89% dos brasileiros. Em janeiro de 2011, contudo, foram registradas 3.440 denúncias, sendo a média diária de 111. Segundo, ainda, Denise Colin, há, em todo o país, cerca de 2 mil Centros de Referência Especializados de Assistência Social - Creas, que funcionam com recursos do MDS, prestando serviços destinados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos, no caso, violência física, psicológica, sexual, tráfico humano, cumprimento de medidas sócio-educativas em meio aberto, entre outras. Curiosamente, a título de informação, já foi inclusive confirmado – pasmem! – que o Brasil é considerado o maior consumidor de pornografia mundial.
E toda essa introdução foi apenas para comentar um caso recente de abuso sexual noticiado pela mídia. Um dos poucos, inclusive, divulgados pela imprensa, envolvendo, no caso, padrastos e enteadas, não deixando dúvidas de que o problema não ganha uma maior repercussão em função da vergonha e da humilhação das vítimas e das suas famílias, do medo de represálias ou, ainda, devido uma dada dependência financeira que essas mesmas vítimas e as suas famílias têm do agressor – motivos de silêncio e freio de denúncias –, embora seja público e notório, para o desespero de todos, que esse tipo de violência tornou-se lugar-comum em um cenário para lá de desolador. E nem adianta alguém me dizer que esses padrastos pedófilos e estupradores são seres humanos com distúrbios mentais ou tenha lá o nome que tiver, justificando tamanha aberração. Que nada! São simplesmente monstros cujos corpos são revestidos de uma aparência humana e que, portanto, devem ser punidos, mantidos atrás de grades de aço pelo resto da vida sem direito nem à luz do sol.
Então! O fato ao que me refiro aconteceu no Guará II, cidade-satélite de Brasília, no Distrito Federal, e diz respeito a uma adolescente de treze anos de idade, repetidamente violentada sexualmente pelo padrasto, um garçom de trinta e um anos de idade, ao longo de dois anos, pela manhã e a noite, sempre que a mãe, com quem ele é casado há nove e com quem teve duas filhas, saia para o trabalho. Em sua defesa, contudo, a jovem alegou que não fez a denúncia antes devido as ameaças que o homem lhe fazia e que só teve forças para procurar as autoridades competentes porque foi encorajada por uma tia e por um amigo da família, que declarou achar estranha a relação de posse do homem sobre a enteada: “Eu achava o ciúme dele exagerado por ser um padrasto. Ela não podia sair para a rua, falar ao telefone. Ele era bastante ciumento e se tornava até um pouco meio agressivo...”. Segundo ainda a menina, há pouco mais de dois anos ela pensou que estava grávida e o próprio agressor chegou a comprar um teste de gravidez, que, para a sorte da menor, deu negativo. Depois disso, o padrasto passou a usar preservativo sempre que abusava sexualmente da enteada. Em depoimento na delegacia, o garçom admitiu o crime, confessando, inclusive, que manteve relações sexuais com a menor horas antes de ser detido. Preso em flagrante, ele pode, se condenado, pegar até quinze anos de prisão. Esse caso, contudo, me fez pensar em um outro com as mesmas feições, ocorrido em meados de 2009 no agreste pernambucano, embora com desdobramentos de maior amplitude em função da repercussão internacional que engendrou. Ou seja, à época, com apenas nove anos de idade, seguidamente estuprada pelo padrasto, então com vinte e três anos de idade, uma menina engravidou de gêmeos e, no dia 5 de março, se submeteu a um aborto legal, amparado pelo artigo 128° do Código Penal Brasileiro, que não classifica de crime o aborto cometido “se não há outro meio de salvar a vida da gestante” e “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.
Porém, ao tomar conhecimento do fato, o então arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, um conservador de alta periculosidade, declarou que o aborto caracterizou-se uma grave desobediência ao Código de Direito Canônico da Igreja católica. O religioso, que, aliás, já havia se posicionado contra a interrupção da gravidez da menina, alardeou, ainda, que a interrupção da sua gravidez por uma equipe médica do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros - CISAM, da Universidade de Pernambuco, acarretou na excomunhão latae sententiae, ou seja, automática, dos envolvidos no caso, sendo as duas únicas exceções a criança e, estranhamente, o padrasto, acusado de estupro qualificado, podendo – a mídia não divulga se já houve julgamento – pegar mais de quinze anos de prisão em regime fechado, inclusive pelas ameaças de morte feitas à enteada caso ela contasse à mãe o segredo de ambos. Só que ela contou. O episódio, portanto, em todo o seu contexto, repercutiu no mundo inteiro, gerando uma onda de protestos contra dom José.
O Jornal francês Le Monde, por exemplo, não se fez de rogado e, à ocasião, estampou para todo o mundo ver: A Cruzada conservadora de dom Dedé, enquanto o jornalista Ricardo Kotscho, por sua vez, ex-membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, disso que o religioso corria o risco de ver a Igreja “ser acionada em juízo civil, para indenizar vítimas por danos à imagem e morais”. Para o jornalista, “não se discute que ele [dom Dedé] tenha atuado de acordo com a conhecida posição da Igreja. O que não se pode aceitar é a sua “impropriedade de repudiar e demonizar pessoas e se intrometer em âmbito laico”. Enfim! O fato é que a pobre menina, nascida em Alagoinha, no interior de Pernambuco, hoje com onze anos de idade, conheceu a maldade humana da maneira mais cruel, brutal e traumatizante que possa existir, descobrindo, aliás, em algum lugar do seu íntimo – infelizmente, cedo demais –, que o tão decantado País das Maravilhas de Alice, personagem criada pelo escritor inglês Lewis Carroll (1832 - 1898), não passa de uma mera ficção...
Disque 100 para denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes: a ligação é gratuita e a identidade de quem denuncia preservada. As denúncias também podem ser feitas pelo site: www.disque100.gov.br
Ou pelo endereço eletrônico:
* Postado originalmente neste blog no dia 27 de março do corrente.
Nathalie Bernardo da Câmara
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