“Quem aumenta o seu
saber aumenta a sua dor...”.
Salomão, Eclesiastes
Um dia,
conheci alguém que não tinha lágrimas – até então, nunca tinha visto alguém que
não tinha lágrimas. E não nego o meu espanto ao saber que é possível alguém não
ter lágrimas, chorar, se contorcer e gemer de dor e não derramar sequer uma
lágrima. Tudo seco. Nada! Inicialmente, confesso, não acreditei no que estava
vendo, ou melhor, no que não estava vendo. Afinal, eu já tinha ouvido falar em
lágrima sabéia, lágrimas de sangue, lágrima-de-moça, lágrima-de-nossa-senhora,
lágrima-de-santa-maria, lágrimas de crocodilo, lágrimas de riso, mas, aquilo,
nunca.
Fiquei sabendo que o
fenômeno é conhecido como olhos secos, a ausência da secreção
aquosa, levemente alcalina, de glândula lacrimal, que serve para umidificar a
conjuntiva em alguns organismos vivos. Curiosamente, ainda não existe nenhuma
explicação para tal fenômeno, ou seja: se ele é provocado por disfunções
orgânicas ou se, meramente, é de fundo emocional. Sabe-se apenas que são
raríssimos os casos de pessoas sem lágrimas. E o mais curioso: sem lágrima, sem
suor, sem saliva ou qualquer outro tipo de substância oriunda de secreção,
como, por exemplo, a vaginal e o esperma.
Fenômenos à parte, ainda
existem casos, igualmente insólitos, onde, por ser a dor tão violenta, o corpo
bloqueia, não reagindo, sem vergar, negando, inclusive, a insustentabilidade da
lágrima. Porém, lágrima é lágrima e, portanto, sinônimo de dor; dor, uma
sensação desconcertante, a qual encontra no choro, evidente ou não, com ou sem
lágrimas, a oportunidade de um monólogo interior com o nosso próprio
sofrimento, além de ser um exercício de catarse, descobrindo, entre tantas
motivações, o seu principal tutor, ou seja, o amor.
Assim, muitas vezes
fogo, muitas vezes luz, mais poderoso que a terra e mais forte que o ar, o amor
nem sempre resiste as investidas intrépidas das intrigas, das discórdias, da
noite e das trevas, que suplantam indefiníveis emoções, provocando a dor, que, por
sua vez, traz consigo uma correnteza de lágrimas, abalando as nossas entranhas
insondáveis, muito mais poderosas do que o curso arrebatador de um rio e da
determinação das ondas do mar, ora extenuando os nossos tormentos, ora
afogando-nos nas suas malhas transparentes, embora avassaladoras, tragando-nos,
paradoxalmente, na aridez de uma inexorável solidão.
Infelizmente, não é
sempre que podemos dar vazão ao amor, embora ele nos seja necessário. Daí, em
muitos casos, o amor ser sublimado, tal como se dá, na química, a transmutação
de uma substância sólida diretamente para o estado gasoso, enquanto que na
psicanálise o processo é inconsciente, consistindo no desvio da energia da
libido e das pulsões de um indivíduo para um plano superior, canalizando-as
para novos objetos de caráter útil, como, por exemplo, a criação artística.
Ora, se pensarmos melhor, poeticamente ou não, a dor, além de sólida e gasosa,
é igualmente líquida, diferentemente de uma dada substância química ou de um
processo psicanalítico qualquer.
Desse modo, no seu
estado sólido, a dor provoca, no corpo, certos incômodos, indisposições físicas
e desânimos. Porém, quando o indivíduo satura a sua capacidade de suportá-la,
acontece a liquidificação da dor, transformando-a em lágrima, desesperadamente
líquida. Por fim, o estado gasoso, quando a fonte de lágrimas se exaure e a
dor, em um lamento fraco, embora franco, se metamorfoseia em suspiro, ou
melhor, no último estertor, aparentemente, o sopro libertador. Submergir na dor,
então? Sim, num mergulho profundo e impressionante, para que, após termos
adentrado nas suas regiões sombrias e desconhecidas, possamos, literal e
definitivamente, liquidá-la.
No entanto, como a dor é
proporcional à intensidade do amor e ao grau da nossa consciência, assim como o
sofrimento não implica, necessariamente, em lágrimas, nem sempre quando o choro
se cala silenciamos o amor nem, muito menos, o nosso sofrer. Desse modo, em
muitos casos, mesmo quando liquidamos a dor, apenas reafirmamos o nosso amor e
aumentamos o nosso penar, o qual, sem sombra de dúvidas, nada mais é que um
vácuo consistente, fluido e vaporoso, independentemente dos nossos tecidos
conectivos, adiposos ou fibrosos; independentemente, inclusive, das nossas
células epiteliais, da nossa matéria-prima, da nossa herança genética, dos
nossos gens, do nosso DNA. Além do mais, nem sempre a ausência de lágrimas
significa que não estejamos sofrendo e que estejamos livres, consequentemente,
felizes.
Sim, apesar de dispostos
à felicidade, estamos sujeitos as adversidades da vida que, parece, por má
vontade, está sempre querendo nos ater ao dever, mesmo se não concordamos com
ele; mesmo se sofremos; se choramos ou não; mesmo se estamos infelizes e
insatisfeitos, com medo; mesmo se a plenitude da nossa existência resida no
amor, sem o qual, apesar de não querermos admitir, não somos nada. Pensamos que
estamos vivos, mas estamos mortos. É por isso que temos de amar, irrigando, sem
limites, todos os nossos órgãos, transpirando por todos os poros, lamentando
por não ter sido há mais tempo. E chorar, mas de felicidade! Afinal, tudo é uma
questão de secreção glandular. Uma secreção a mais, uma secreção a menos...
Originalmente postado neste blog em 29/5/2009.
Nathalie
Bernardo da Câmara
Ahhhhhhhhhhhhhh...
ResponderExcluirAs lágrimas, mares salgados e traiçoeiros nos quais às vezes me perco...
Mais também tem aquelas lágrimas de sangue.
ResponderExcluirFelicidades Nathalie
etzel baez, República Dominicana