quarta-feira, 6 de abril de 2011

O ESTADO LÍQUIDO DA DOR


“Quem aumenta o seu saber aumenta a sua dor...”.

Salomão, Eclesiastes


Um dia, conheci alguém que não tinha lágrimas – até então, nunca tinha visto alguém que não tinha lágrimas. E não nego o meu espanto ao saber que é possível alguém não ter lágrimas, chorar, se contorcer e gemer de dor e não derramar sequer uma lágrima. Tudo seco. Nada! Inicialmente, confesso, não acreditei no que estava vendo, ou melhor, no que não estava vendo. Afinal, eu já tinha ouvido falar em lágrima sabéia, lágrimas de sangue, lágrima-de-moça, lágrima-de-nossa-senhora, lágrima-de-santa-maria, lágrimas de crocodilo, lágrimas de riso, mas, aquilo, nunca.

Fiquei sabendo que o fenômeno é conhecido como olhos secos, a ausência da secreção aquosa, levemente alcalina, de glândula lacrimal, que serve para umidificar a conjuntiva em alguns organismos vivos. Curiosamente, ainda não existe nenhuma explicação para tal fenômeno, ou seja: se ele é provocado por disfunções orgânicas ou se, meramente, é de fundo emocional. Sabe-se apenas que são raríssimos os casos de pessoas sem lágrimas. E o mais curioso: sem lágrima, sem suor, sem saliva ou qualquer outro tipo de substância oriunda de secreção, como, por exemplo, a vaginal e o esperma.

Fenômenos à parte, ainda existem casos, igualmente insólitos, onde, por ser a dor tão violenta, o corpo bloqueia, não reagindo, sem vergar, negando, inclusive, a insustentabilidade da lágrima. Porém, lágrima é lágrima e, portanto, sinônimo de dor; dor, uma sensação desconcertante, a qual encontra no choro, evidente ou não, com ou sem lágrimas, a oportunidade de um monólogo interior com o nosso próprio sofrimento, além de ser um exercício de catarse, descobrindo, entre tantas motivações, o seu principal tutor, ou seja, o amor.

Assim, muitas vezes fogo, muitas vezes luz, mais poderoso que a terra e mais forte que o ar, o amor nem sempre resiste as investidas intrépidas das intrigas, das discórdias, da noite e das trevas, que suplantam indefiníveis emoções, provocando a dor, que, por sua vez, traz consigo uma correnteza de lágrimas, abalando as nossas entranhas insondáveis, muito mais poderosas do que o curso arrebatador de um rio e da determinação das ondas do mar, ora extenuando os nossos tormentos, ora afogando-nos nas suas malhas transparentes, embora avassaladoras, tragando-nos, paradoxalmente, na aridez de uma inexorável solidão.

Infelizmente, não é sempre que podemos dar vazão ao amor, embora ele nos seja necessário. Daí, em muitos casos, o amor ser sublimado, tal como se dá, na química, a transmutação de uma substância sólida diretamente para o estado gasoso, enquanto que na psicanálise o processo é inconsciente, consistindo no desvio da energia da libido e das pulsões de um indivíduo para um plano superior, canalizando-as para novos objetos de caráter útil, como, por exemplo, a criação artística. Ora, se pensarmos melhor, poeticamente ou não, a dor, além de sólida e gasosa, é igualmente líquida, diferentemente de uma dada substância química ou de um processo psicanalítico qualquer.

Desse modo, no seu estado sólido, a dor provoca, no corpo, certos incômodos, indisposições físicas e desânimos. Porém, quando o indivíduo satura a sua capacidade de suportá-la, acontece a liquidificação da dor, transformando-a em lágrima, desesperadamente líquida. Por fim, o estado gasoso, quando a fonte de lágrimas se exaure e a dor, em um lamento fraco, embora franco, se metamorfoseia em suspiro, ou melhor, no último estertor, aparentemente, o sopro libertador. Submergir na dor, então? Sim, num mergulho profundo e impressionante, para que, após termos adentrado nas suas regiões sombrias e desconhecidas, possamos, literal e definitivamente, liquidá-la.

No entanto, como a dor é proporcional à intensidade do amor e ao grau da nossa consciência, assim como o sofrimento não implica, necessariamente, em lágrimas, nem sempre quando o choro se cala silenciamos o amor nem, muito menos, o nosso sofrer. Desse modo, em muitos casos, mesmo quando liquidamos a dor, apenas reafirmamos o nosso amor e aumentamos o nosso penar, o qual, sem sombra de dúvidas, nada mais é que um vácuo consistente, fluido e vaporoso, independentemente dos nossos tecidos conectivos, adiposos ou fibrosos; independentemente, inclusive, das nossas células epiteliais, da nossa matéria-prima, da nossa herança genética, dos nossos gens, do nosso DNA. Além do mais, nem sempre a ausência de lágrimas significa que não estejamos sofrendo e que estejamos livres, consequentemente, felizes.

Sim, apesar de dispostos à felicidade, estamos sujeitos as adversidades da vida que, parece, por má vontade, está sempre querendo nos ater ao dever, mesmo se não concordamos com ele; mesmo se sofremos; se choramos ou não; mesmo se estamos infelizes e insatisfeitos, com medo; mesmo se a plenitude da nossa existência resida no amor, sem o qual, apesar de não querermos admitir, não somos nada. Pensamos que estamos vivos, mas estamos mortos. É por isso que temos de amar, irrigando, sem limites, todos os nossos órgãos, transpirando por todos os poros, lamentando por não ter sido há mais tempo. E chorar, mas de felicidade! Afinal, tudo é uma questão de secreção glandular. Uma secreção a mais, uma secreção a menos...

Originalmente postado neste blog em 29/5/2009.


Nathalie Bernardo da Câmara



2 comentários:

  1. Ahhhhhhhhhhhhhh...
    As lágrimas, mares salgados e traiçoeiros nos quais às vezes me perco...

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  2. Mais também tem aquelas lágrimas de sangue.

    Felicidades Nathalie

    etzel baez, República Dominicana

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