A labuta diária de um Nobel da Paz
“Os hipócritas são como as tâmaras: o doce está fora, o mel nas palavras e o duro lá dentro, na alma...”.
Mateo Alemán (1547 - 1614)
Escritor espanhol
Tirante o avô materno alemão, a família de Ellen Johnson Sirleaf é predominantemente nativa da África Ocidental, mais precisamente da Libéria. Daí muitos dizerem que Sirleaf possui cor de pele clara. Não negra. Seria Sirleaf, então – sem nenhuma discriminação –, uma eminência parda? Digo isso porque – o leitor logo o saberá –, apesar de filha do primeiro negro nativo a ser eleito para o parlamento do país, cujo pai foi um famoso chefe de uma tribo africana, a menina liberiana de origens humildes, nascida por contingências na Monróvia, formada em economia nos Estados Unidos, doutora em gestão pública pela Universidade de Harvard, ocupando, ao longo da vida, importantes cargos em diversas instituições econômicas nacionais e internacionais, ex-ministra das finanças da Libéria, ex-consultora da Organização das Nações Unidas - ONU, presidente pela segunda vez consecutiva da Libéria, onde, desde 2006, desfralda o badalado lábaro que ostenta por ter sido laureada com o Nobel da Paz em 2011, é, sem meias palavras, uma farsa. E afirmo isso sem a menor das hesitações, ainda assinando embaixo!
Afinal, no dia 21 de março do corrente, quando estava por redigir uma postagem em homenagem ao Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial para publicar no meu blog (o link para a referida postagem encontra-se ao final desta), qual não foi a minha má surpresa e impactante incredulidade diante do fato de tomar conhecimento que Ellen Johnson Sirleaf, hoje com 73 anos de idade e a atual presidente da Libéria – a primeira do sexo feminino a ocupar o mais alto cargo político de um país do continente africano – e uma das três mulheres que, em 2011, por suas ações em defesa dos direitos e da segurança das mulheres, bem como pela promoção da paz mundial, foram agraciadas com o mais prestigiado de todos os prêmios do mundo, ou seja, o Nobel da Paz, indicadas que foram por um comitê escolhido pelo parlamento norueguês que outorga o prêmio desde 1901, havia recentemente declarado ao jornal inglês The Guardian, que não me deixa mentir, que é a favor da criminalização do homossexualismo, cuja prática, aliás, em sua opinião, deve ser punida com duras sentenças pela legislação liberiana?
Ou seja, apesar das suas remotas origens humildes, já que, por sua trajetória de destaque na política da Libéria e por sua condição de presidente do país, de há muito ela faz parte de uma classe social seleta, inclusa que é na elite liberiana, na nata do continente africano e, agora, depois do Nobel da Paz de 2011, na fina flor da Terra, pode Ellen Johnson Sirleaf – desconheço prerrogativas legais que garantam o seu direito a tal postura – fazer apologia à homofobia? O irônico, contudo, de toda a situação é que durante a entrevista que Sirleaf concedeu ao The Guardian estava sentado ao seu lado o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, que, de passagem pela Libéria, buscava apoio a uma instituição filantrópica que fundou para contribuir com o fortalecimento dos governos africanos – dispensável dizer que, diante das declarações descabidas da sua anfitriã, o extremo desconforto de Blair foi bastante desconcertante, não passando em branco. Afinal, ao longo do período em que foi o homem forte da Grã-Bretanha, Blair ficou internacionalmente conhecido por sua luta em defesa dos direitos dos homossexuais.
À ocasião, entrevistada pelo The Guardian e testemunha dos disparates verbais da hoje toda poderosa presidente da Libéria, cuja alcunha de Dama de ferro deve-se ao fato de ela ter contribuído com o fim do conflito armado no seu país e com a queda do seu antecessor, o também economista Charles Taylor, que, inclusive, já foi condenado por um tribunal internacional especialista em julgar crimes contra a humanidade, a pesquisadora alemã da organização não governamental Human Rights Watch, Corinne Dufka, responsável pela atuação de uma divisão da ONG na África, não hesitou em revelar a preocupação da instituição que representava, bem como a sua própria, diante do alto crescimento, nos últimos seis meses, “da intolerância e dos ataques contra os direitos dos homossexuais liberianos”. O jornal inglês, por sua vez, endossando as inquietações da pesquisadora, registrou que, na Libéria, ser homossexual é “uma ofensa criminosa”, sendo o país um dos 37 da África no qual a homossexualidade é proibida. Ah! Será que o parlamento norueguês e o comitê do Nobel da Paz já sabem desse detalhe?
Ellen Johnson Sirleaf: duas caras…
“Dissimular: virtude de rei e de camareira...”.
Voltaire (1694 - 1778)
Escritor francês
Certa feita, em 2006, a revista de economia norte-americana Forbes considerou Ellen Johnson Sirleaf como sendo o 51º dos políticos mais poderosos do mundo. Em 2010, mais duas publicações norte-americanas, a Newsweek e a Time, igualmente a puseram no topo dos topos. A primeira listou Sirleaf como um dos dez melhores líderes do mundo, enquanto a segunda foi mais específica e a classificou como sendo uma das dez líderes do sexo feminino do planeta. Naquele mesmo ano, a revista semanal inglesa The Economist rasgou de vez o véu. Declarou que Sirleaf era, “sem dúvida, o melhor presidente que o país [Libéria] já teve”. À BBC Brasil, por sua vez, a atual presidente da Libéria disse, enfaticamente, que aprecia o apelido Dama de ferro que lhe foi atribuído, já que, em sua opinião, ele lhe faz jus – pudera, visto que ela sempre está com o dedo em riste: — O povo [liberiano] precisa saber que, no atual ambiente pós-guerra, em que as pessoas se acostumaram com a guerra, eu tenho a capacidade e a vontade de tomar as decisões difíceis.
De repente, contudo, numa vã tentativa de humildade, Sirleaf acrescentou que outro costume local é o de chamá-la de Mãe Ellen – que mimoso! –, pois é vista como sendo aquela que “busca acordos”, ou melhor, aquela que busca pelo equilíbrio... Qual, mesmo? Enfim! Sem questionar a sua capacidade, vontade e, quiçá, determinação na tomada de difíceis decisões, com certeza Sirleaf não ficou conhecida como a Dama de ferro pelos mesmos motivos que ficou mundialmente famosa a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, cujo cognome era idêntico ao da liberiana. Não obstante, o curioso disso tudo é que Sirleaf só pôs as mangas de fora, se declarando publicamente contra a homossexualidade e defendendo a sua punição, depois de ter recebido o Nobel da Paz – se por uma questão de comodidade, eu não sei. O que sei é que os membros do comitê do renomado prêmio não acertaram em uma das suas apostas aos laurearem as três mulheres que, juntas, dividiram a premiação em 2011.
Sim, já que, além de Sirleaf, conquistaram o prêmio literalmente histórico – sim, porque, com certeza, o de 2011 entrará para a História –, a também liberiana Leymah Gbowee, à época com 38 anos de idade, considerada “uma guerreira da paz” por seu movimento pacífico de mulheres, já que, com a ajuda de uma greve do sexo, ela contribuiu para, em 2003, pôr fim à segunda guerra civil no seu país, e a jornalista iemenita Tawakkul Karman, uma liderança da Primavera árabe que, desde o início de 2011, passou a lutar pacificamente pela queda do presidente iemenita Ali Abdallah Saleh, enraizado no poder havia 33 anos. Isso sem falar que, com apenas 32 anos de idade, Saleh foi a primeira mulher árabe a receber o Nobel da Paz. O presidente do comitê do importante prêmio, por sua vez, o político norueguês Thorbjoern Jagland, foi coerente ao se referir as laureadas: — A esperança do comitê é de que o prêmio ajude a colocar um fim na opressão as mulheres que ainda ocorre em muitos países e a reconhecer o grande potencial para democracia e paz que elas podem representar. (...) Não podemos alcançar a democracia e a paz duradoura no mundo se as mulheres não obtêm as mesmas oportunidades que os homens para influir nos acontecimentos em todos os níveis da sociedade.
E Jagland tinha toda razão quando, no dia 7 de outubro de 2011, proferiu tão sensatas palavras. Ocorre que, à ocasião, ele só não sabia que, meses depois, Sirleaf assumiria publicamente que defende a tramitação de dois projetos de lei no parlamento liberiano que, segundo o The Guardian, se aprovados, aliados as leis já existentes, a intolerância e os ataques contra os gays no país – intolerância e ataques esses aos quais se referiu a pesquisadora alemã Corinne Dufka –, só tendem a aumentar na terra natal da presidente da Libéria, que, aliás, nem sei em qual dimensão astral ela se encontrava quando disse que considera “a educação a grande conquista” de um ser humano, ajuntando: — A coisa mais permanente é a educação. Eles podem roubar o seu carro, eles podem queimar a sua casa, mas ninguém pode tirar de você o que você tem na sua cabeça.
Bom! Diante do contexto, tal declaração no mínimo soa contraditória, considerando que, durante a entrevista ao The Guardian, quando, ao se referir à homossexualidade – só faltou ela dizer, tudo levava a crer, que homossexuais e congêneres são aberrações da natureza –, Sirleaf não poupou a soberba e, sem hesitar, disse que “os liberianos têm certos valores tradicionais que gostariam de preservar”, deixando, entretanto – não poderia ser diferente –, a pérola para o final: — Nós gostamos de nós mesmos do jeito que somos...
O paradoxo de um Nobel da Paz
“Discriminação, este câncer da humanidade, deveria ter como exemplo a sabedoria dos vermes, que se alimentam de todos, após a morte, sem escolher o cardápio...”.
Ivan Teorilang
Zootecnista e poeta brasileiro
Estarrecida que fiquei, pois defendo os direitos humanos até dizer basta, bem como o direito a ter direitos e por eles lutar; que, apesar de nutrir alguns preconceitos – quem não os tem? –, embora não discrimine ninguém – afinal, todos têm direito a um lugar na Terra, seja sob o sol, seja sob a lua, quiçá sob não importam quais os 15 m² de área verde que todo indivíduo também tem direito –, queimei os meus neurônios até, digamos, onde o vento faz a curva para tentar entender tamanho paradoxo, buscando, bem sei que em vão, uma explicação plausível para as palavras de Ellen Johnson Sirleaf... Tipo: “Nós gostamos de nós mesmos do jeito que somos...”. Enfim! A conclusão, então, à qual cheguei? A única que, em casos como esse, só ela mesma poderia explicar, ou seja, a hipocrisia. Afinal, só quem não estiver de posse das suas plenas faculdades mentais não percebe a gravidade de toda essa situação. Felizmente, nos resta, ainda, refletir sobre o que disse a Alta Comissionada da Organização das Nações Unidas - ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay, sobre as graves consequências que podem decorrer da discriminação, que, fervendo a fogo lento, gera certo risco de que explodam conflitos anos ou décadas depois. Ou, quem sabe – eu diria –, coisa pior pode vir a explodir. E em um tempo bem menor do que ela especulou...
Bom! No dia 2 de abril do corrente, publiquei no meu blog a postagem intitulada Respeitemos as diferenças: não à discriminação! (o link para a referida postagem encontra-se ao final desta), na qual, comentando um mal-entendido ocorrido durante uma entrevista feita por um jornalista de um veículo de comunicação brasileiro com um dos nossos raros políticos eminentes, eu disse que “a diferença entre preconceito e discriminação é gritante”. E, de fato, o é: — Porém – prossegui – a maioria, das pessoas acha que um é sinônimo do outro, quando, na verdade, são coisas completamente distintas. O grave, contudo, é que, se associados, são TNT pura, podendo, se detonada, já que é explosiva, causar estragos sem precedentes. O fato é que, isolado, o preconceito em si é até natural, não devendo, portanto, se tornar motivo para não importa qual polêmica nem, muito menos, se constituir um crime, passível, inclusive, de penalidades. Afinal, do latim praeconceptu, o substantivo preconceito nada mais é do que um conceito concebido previamente por motivações coletivas ou individuais em relação a algo, a alguém ou, até mesmo, a uma dada situação – conceito esse, aliás, que não deixa de ser um direito de todo e qualquer cidadão inserido na sociedade e até mesmo dos que são considerados excluídos dessa mesma sociedade. Discriminação não, já que, sendo um ato que estabelece diferenças, promove a segregação, seja ela ideológica, racial, social, religiosa, de credo etc, se constituindo, evidentemente, um crime, diferente do preconceito”.
Obviamente que, em relação ao que ora ocorre na Libéria, mas que, por uma questão de direitos humanos, deve ganhar maior visibilidade na mídia e repercutir internacionalmente, o sexo também é vítima da segregação promovida pela discriminação no país de Sirleaf, que, com unhas e dentes, insiste na aprovação de leis ainda mais rígidas para reprimir e punir a opção sexual dos liberianos, que também são humanos e, por conseguinte, possuem direitos que devem ser respeitados. Punidos? Os que não respeitam esses mesmos direitos, independentemente de quem quer que seja. Agora, já na postagem intitulada Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, publicada, como já foi dito, no dia 21 de março do corrente, achei que caberia colocar uma questão, ou seja: se as declarações homofóbicas de Sirleaf tivessem sido feitas antes de ser indicada ao Nobel da Paz, teria ela, mesmo assim, concorrido e, por fim, laureada com o mais importante prêmio do mundo? Afinal, pelo que conheço da biografia do engenheiro e químico sueco Alfred Nobel (1833 - 1896), criador da Fundação Nobel, gestora da sua fortuna, ele já teria – se vivo fosse – de há muito revogado, tornado sem efeito, não somente o título inocentemente outorgado à Ellen Johnson Sirleaf, mas também lhe confiscado a medalha de ouro, o diploma, que contém a citação da condecoração, o certificado comprovativo do referido prêmio e os milhões de coroas suecas que, não por mérito, ela recebeu – dinheiro esse, aliás, oriundo dos fundos mantidos pela instituição que, fundada em 1900, como assim ele desejou – desejo esse oficializado no seu testamento –, só atribuiria o Nobel da Paz aos que, de alguma forma, se destacassem por desenvolver ações em prol da paz mundial, ou seja, um prêmio exclusivo para pacifistas – coisa que, definitivamente, Sirleaf não o é.
Tanto não o é que na mais do que já mencionada postagem Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, questionei: não seria mais coerente se Sirleaf tivesse a decência de devolver a Oslo todo o pacote que o referido prêmio contempla a um laureado ou, melhor dizendo, se Oslo pedisse o pacote de volta? Enfim! Outro dia, navegando na internet, na verdade pesquisando a repercussão das declarações medievais da presidente da Libéria ao The Guardian, dei de cara com um comentário por demais instigante de um internauta que, indignado com o fato, salientou que se o Nobel da Paz “quer continuar com a relevância que tem, precisa revogar essa premiação, simplesmente”. E ele não parou por aí, acrescentando: — Mesmo que ela [Ellen Johnson Sirleaf] não devolva o dinheiro [a parte que lhe coube dos 10 milhões de coroas suecas – cerca de um milhão de euros –, já que o valor foi dividido entre as três laureadas], as honrarias e os registros devem ser suspensos em imediata retaliação. É inadmissível que no séc. XXI ainda se esteja vigiando o jeito que cada um goza e se proceda ainda a uma perseguição oficializada sobre isso. Não pode.
É, meu caro, não pode. E concordo plenamente que os bens fraudulentamente adquiridos por Sirleaf devem ser devolvidos a Oslo ou por Oslo apreendidos. Agora, a questão é: será que a presidente da Libéria tomaria a iniciativa ou se os membros do comitê do prêmio o farão, não continuando com certa passividade – ou seria pacificidade – diante de tamanho engodo? Sei não, mas... Quanta contradição e incoerência! Da parte de Sirleaf, claro, já que, se nos aventurarmos na língua latina, veremos que o nome Libéria significa liberdade. Isso sem falar que o lema do brasão do país é nada mais nada menos: O amor pela liberdade trouxe-nos aqui. Só que o mais curioso disso tudo – veio-me agora à mente – não é nem mesmo a possibilidade ou a concretização de fato da devolução ou não dos tais bens ou o seu confisco, mas se porventura, não importa por qual motivo, mesmo que fosse só por provocação, para testar, digamos, o poder e a qualidade da balança, fizéssemos pouco de Sirleaf pelo simples detalhe da sua pele negra, ou melhor – corrigindo a tempo –, da sua pele clara, como ela mesma faz questão de dizer, tenho a plena certeza de que só uma piscadela de olhos – nem precisava ser da África – bastaria para nos levar a um tribunal, onde seríamos acusados de racismo, julgados e condenados por discriminação racial, ainda mais contra uma autoridade, embora ela mesma imbuída de discriminações de outras naturezas, indo parar atrás das grades, cumprindo sabe-se lá quantos anos de pena. E, detalhe, não tendo direito nem mesmo a sursis.
Enfim! Fica aqui registrado o meu protesto, na expectativa, quiçá, de que providências sejam tomadas para a solução desse quiproquó. E isso sem que seja necessário se chegar ao extremo de que seja elaborada uma petição de âmbito internacional para que Oslo, em nome de Alfred Nobel e dos seus desejos, bem como dos propósitos da sua fundação, faça o que tem de fazer. Simples assim. Afinal, se engana quem pensa que, arrogante que é, sem o menor dos desprendimentos, Sirleaf devolverá de bom grado o que nem de fato nem de direito lhe pertence. Bom! Acho que chegou a hora de virar a página...
Nathalie Bernardo da Câmara
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