“O personalismo em política é um erro. Nós devemos é lutar para que surjam quadros novos...”.
Miguel Arraes (1916 - 2005)
Advogado, economista e político brasileiro
Quem já militou ou milita num partido político, sobretudo os de esquerda, sabe que quadros significam lideranças, como bem o disse, em sua reflexão, pescada, aliás, para a epígrafe inicial desta postagem, o saudoso Miguel Arraes – pelo menos era assim no tempo em que fui filiada e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o famoso Partidão (não sei como funciona hoje em dia, quando, vale salientar, qualquer um se filia a não importa qual partido político independentemente da sua ideologia). Enfim! Com a sua reflexão, Arraes referiu-se, portanto, ao surgimento de novas lideranças não em detrimento das já existentes, cujas ideias poderiam porventura ser consideradas obsoletas, mas para que sejam criadas oportunidades que favoreçam o desabrochar de novos políticos que possam expressar os seus pensamentos e, se bem aceitos e coerentes com a linha da agremiação partidária ao qual eles são filiados, conquistar os seus próprios espaços, renovando as lideranças, mas sem favoritismo nem, muito menos, fisiologismo algum – prática, aliás, invariavelmente combatida por aqueles comprometidos com todo e qualquer processo que se queira democrático dentro e fora do partido. Daí o combate igualmente construtivo e contínuo ao culto do personalismo.
Enfim! Toda essa introdução porque, em meados de março, li algumas reportagens referentes a um inusitado episódio ocorrido à época no Rio Grande do Sul – são tantos os temas na fila para serem abordados neste blog e consequentemente publicados que somente agora estou podendo comentar a respeito. O fato é que o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) ordenou a retirada de crucifixos e símbolos religiosos de todos os espaços públicos da instituição no Estado. Em Nota, dom Keller, bispo do município de Frederico Westphalen, lamentou a decisão do tribunal de Justiça, lembrando que, em 2007, o Conselho Nacional de Justiça chegou a negar o mesmo pedido. À ocasião, no seu voto contrário ao referido pedido, o então conselheiro Oscar Argollo disse que “o Estado, que não professa o ateísmo, pode conviver com símbolos os quais não somente correspondem a valores que informam a sua existência cultural, como remetem a bens encarecidos por parcela expressiva da sua população – por isso, também, não é dado proibir a exibição de crucifixos ou de imagens sagradas em lugares públicos”. Bom! O Estado brasileiro pode não professar o ateísmo, mas é laico, embora o debate em questão não tenha nada a ver com isso e ninguém aqui está negando o direito de quem quer que seja a proferir a sua fé. É tipo, por exemplo, feriado religioso. Quer coisa mais desconexa do que um feriado religioso – não importa a sua natureza – num país laico?
Afinal, quem quiser proferir a sua fé, qualquer que seja ela, que o faça além dos adros dos seus respectivos oratórios, sejam igrejas, templos, mesquitas, terreiros ou tenha o nome que tiver os espaços reservados para tal prática. O que não tem cabimento, como eu costumo dizer, é parar todo um país apenas porque uma dada religião elegeu certo dia para comemorar um determinado santo de sua adoração. E as demais religiões, no caso, o que têm a ver com isso? E quem não tem nenhuma ou não está a fim de comemorar nada nem ninguém? No que diz respeito ao Brasil, outro exemplo que deve ser levado em consideração é que a legislação do país respeita, entre outras, não somente a liberdade ideológica, mas também a religiosa – o que não significa que, por isso, toda uma população tenha a obrigação de conviver e dividir espaços tidos como públicos com imagens ditas sagradas, tipo terços, crucifixos, livros etc. Ora, tenha dó! Daí, portanto, é mais do que civilizado que todas as religiões, sem exceção, não abusem de uma legislação que, apesar do esforço que faz em ser democrática, muitas vezes até beirando à condescendência, respeita o credo de outrem. Só que, vale salientar, que esse credo não tenha de, necessariamente, ser socializado. Isso sem falar que, no caso em questão, o TJ-RS limitou-se a determinar a retirada de crucifixos e símbolos religiosos apenas dos espaços públicos onde atua – decisão essa, inclusive, que deveria ser extensiva a todos os espaços públicos do país. E eu assinaria embaixo.
Bom! Felizmente não estamos, por exemplo, nem no Vaticano nem em Meca, mas no Brasil, que, apesar do seu sincretismo religioso espantoso – até mais assustador do que o famoso bicho papão que, embora fictício, atemorizava a nossa infância, maculando a nossa imaginação –, pode se dar ao direito de não aceitar crucifixos e demais símbolos ditos religiosos de não importa qual doutrina ou, pegando a deixa, numa alusão à ilustração de abertura desta postagem, fotografias de autoridades políticas em repartições públicas, que, a bem da verdade, também não é de bom tom, pois só alimenta o personalismo, que, aliás, é pernicioso, pois a presença constante de tais fotografias nas salas de órgãos públicos tem a mesma função, digamos, de um crucifixo, ou seja, a de lembrar, através da sua imposição, quem é que canta de galo no terreiro, ou, como se diz, marcando terreno, ao mesmo tempo em que termina por impor não respeito, mas temor ou subserviência do funcionário ao político retratado e diariamente, querendo ou não, lembrado – prática essa que, a meu ver, deveria ser igualmente abolida dos estabelecimentos públicos da União de todas as esferas do poder público, seja em âmbito federal, estadual e municipal, sem esquecer, claro, do distrito federal. Agora, caro leitor, imagine o barraco que não seria armado caso demais religiões reivindicassem um cadinho que fosse de um espaço na parede dos espaços públicos para também colocarem algum dos seus símbolos de predileção!
Um chargista pensou nisso...
“O fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos...”.
Friedrich Nietzsche (1844 - 1900)
Filólogo e filósofo alemão
No caso do fanatismo religioso, então, a situação torna-se ainda mais grave. Um exemplo? Quando da polêmica que foi criada decorrente da retirada dos crucifixos e demais símbolos religiosos das repartições do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), o arquiteto, empresário e escritor brasileiro Percival Puggina escreveu e publicou um artigo intitulado Uma guerra nada santa – que eu saiba, nenhuma guerra é santa –, no qual se posicionou obviamente contra a decisão do TJ-RS. O mais curioso, contudo, é que, depois de tanto falar, falar e falar a respeito, para não dizer espernear, tentando de todas as formas inimagináveis argumentar a favor da manutenção dos crucifixos e de sabe-se lá mais o quê não importa onde, como se a única verdade do mundo fosse a sua, ou melhor, a do catolicismo – felizmente, graças a teoria da relatividade de Einstein (1879 - 1955), sabemos que não é bem assim – Puggina não se fez de rogado, sendo levado a se conformar com a possibilidade de revogação da decisão do Conselho da Magistratura do TJ-RS e apelou, a meu ver dramaticamente, quando disse: — Deixem ao menos os pregos!
Sei não, mas isso, sim, é ser espirituoso. Agora, caso a referida fala fosse dita por um ateu ou por algum artista satírico, com certeza ela seria considerada uma brilhante manifestação de ironia. Isso sem falar que a frase de Puggina só confirma a minha tese, ou seja, a de que cristão que é cristão de verdade adora sofrer. Sério! E não precisa ser um bom observador para perceber isso não. Afinal, na cultura cristã, tudo é motivo de dor, de martírio, de flagelo, de sacrifício – quando não de pecado! –, de culpas, sequer se permitindo a possibilidade de vislumbrar que existe muito mais nesta vida além do sofrimento. E haja autopunição! Muitas vezes, inclusive, em nome de terceiros, de supostas ditas faltas cometidas por outrem. Enfim! No mesmo período, ainda, um dos mais bem-humorados escritores brasileiros escreveu uma instigante crônica, que, aliás, foi publicada num dos nossos mais lidos jornais, abordando a já tão decantada polêmica. Vamos, então, à crônica...
Nathalie Bernardo da Câmara
Territórios livres*
Por Luis Fernando Veríssimo
Escritor, cartunista e tradutor brasileiro
Imagine que você é o Galileu e está sendo processado pela Santa Inquisição por defender a ideia herética de que é a Terra gira em torno do Sol e não o contrário. Ao mesmo tempo você está tendo problemas de família, filhos ilegítimos que infernizam a sua vida e dívidas, que acabam levando você a outro tribunal, ao qual você comparece até com uma certa alegria. No tribunal civil será você contra credores ou filhos ingratos, não você contra a Igreja e seus dogmas pétreos. Você receberá uma multa ou uma reprimenda, ou talvez, com um bom advogado, até consiga derrotar seus acusadores, o que é impensável quando quem acusa é a Igreja. Se tiver que ser preso será por pouco tempo, e a ameaça de ir para a fogueira nem será cogitada. No tribunal laico, pelo menos por um tempo, você estará livre do poder da Igreja. É com esta sensação de alívio, de estar num espaço neutro onde sua defesa será ouvida e talvez até prevaleça, que você entra no tribunal. E então você vê um enorme crucifixo na parede atrás do juiz. Não adianta, suspiraria você, desanimado, se fosse Galileu. O poder dela está por toda a parte. Por onde você andar, estará no território da Igreja. Por onde seu pensamento andar, estará sob escrutínio da Igreja. Não há espaços neutros.
Um crucifixo na parede não é um objeto de decoração, é uma declaração. Na parede de espaços públicos de um país em que a separação de Igreja e Estado está explícita na Constituição, é uma desobediência, mitigada pelo hábito. Na parede dos espaços jurídicos deste país, onde a neutralidade, mesmo que não exista, deve ao menos ser presumida, é um contrassenso - como seria qualquer outro símbolo religioso pendurado. É inimaginável que um Galileu moderno se sinta acuado pela simples visão do símbolo cristão na parede atrás do juiz, mesmo porque a Igreja demorou mas aceitou a teoria heliocêntrica de Copérnico e ninguém mais é queimado por heresia. Mas a questão não é esta, a questão é o nosso hipotético e escaldado Galileu poder encontrar, de preferência no poder judiciário, um território livre de qualquer religião, ou lembrança de religião.
Fala-se que a discussão sobre crucifixos em lugares públicos ameaça a liberdade de religião. É o contrário, o que no fundo se discute é como ser religioso sem impor sua religião aos outros, ou como preservar a liberdade de quem não acredita na prepotência religiosa. Com o crescimento político das igrejas neopentecostais, esta preocupação com a capacidade de discordar de valores atrasados impostos pelos religiosos a toda a sociedade, como nas questões do aborto e dos preservativos, tornou-se primordial. A retirada dos crucifixos das paredes também é uma declaração, no caso, de liberdade.
*Crônica publicada no jornal O Estado de S. Paulo no dia 22 de março de 2012.
Olá, estou lendo seu texto com cinco anos de atraso e aproveito para lembrar que o CNJ de fato revogou a decisão do TJ/RS sobre os crucifixos. E o fez com bons fundamentos jurídicos e sociológicos. Abraço!
ResponderExcluirE eu, puggina, lendo o seu comentário depois de cinco anos igualmente de atraso. Até sorri.
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