terça-feira, 1 de maio de 2012

SILÊNCIO E TRABALHO ESCRAVO*

Por Marcelo Canellas
Jornalista brasileiro


A constituição brasileira os protege. E, no entanto, à noite, em jejum, eles dormem em currais, dentro dos cochos empapados pela baba do gado que durante o dia se farta do sal comprado pelo patrão. Porque só fazendo do prato do boi do patrão o seu leito de dormir é que os escravos modernos podem descansar. O código penal os protege. E, no entanto eles trabalham muitas vezes sob a mira de trabucos empunhados por jagunços que só obedecem à lei do patrão, cuja pena sumária se aplica a todos os que cometeram o crime de terem nascido pobres. A convenção mundial dos direitos humanos os protege. E, no entanto só lhes é concedido o direito de contrair dívidas impagáveis que os amarram aos grilhões do compromisso imposto pela aritmética perversa que transforma os créditos dos trabalhadores em débitos a favor do patrão. A legislação trabalhista os protege. E, no entanto, os escravos modernos só vêem uma carteira de trabalho quando têm a sorte de serem libertados pela polícia federal e pelos auditores fiscais. E aí nem mesmo os mais rudimentares sentimentos de compaixão e comiseração os protegem porque a despeito de toda a pena que sentimos ao ver camponeses maltrapilhos sendo libertados da escravidão, eles continuam a ser recrutados a cada temporada de desmate, a cada época de roçar, a cada colheita de cana, num interminável círculo vicioso. Por que será que o direito formal não consegue se aproximar da vida cotidiana desses trabalhadores? Será porque os donos das fazendas que são tocadas a trabalho escravo chegam de avião, especulam na bolsa e só se manifestam na presença de seus advogados? Será porque os escravos modernos andam de pau-de-arara, nem sequer imaginam que estão sendo escravizados, nem nunca viram um rábula que fosse? Difícil aplicar a lei quando se tem, de um lado, a hiper-concentração de terras que temos e, de outro, a pobreza extrema que nos envergonha. É essa equação que rega as raízes culturais do escravismo. O explorador acha que é legítimo explorar, afinal, ele é o dono, ele é o chefe, ele é o patrão. Chegarmos a essa barbárie pré-capitalista é algo tão injustificável quanto fechar os olhos, quanto virarmos de costas, para, cinicamente, lamentarmos quando aparece uma nova denúncia de trabalho escravo. Sociedade omissa é sociedade conivente. Gritemos. Nunca se fez justiça social em silêncio.


*O texto Silêncio e trabalho escravo, de autoria do jornalista brasileiro Marcelo Canellas, foi transcrito do blog Testemunha inquieta (http://testemunhainquieta.blogspot.com.br/), da advogada brasileira Marinalva Dantas, auditora fiscal do trabalho, que, segundo o seu perfil, é uma pessoa inquieta com o mundo do trabalho, mergulhando fundo no “nas agruras do submundo laboral expressadas no trabalho escravo, no tráfico de pessoas, no trabalho precoce, perverso, onde se discrimina, se frauda, e se comete assedio moral e sexual”.


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