sexta-feira, 18 de maio de 2012

DO MELAÇO DE CANA A CINZAS HUMANAS

“A boca do forno cabia os corpos dos líderes políticos que levei para serem incinerados. A perícia vai provar isto...”.

Cláudio Antônio Guerra
Ex-delegado e ex-chefe do extinto Departamento de Ordem e Política Social (Dops) do Espírito Santo, pedindo ao Ministério Público Federal - MPF e à Polícia Federal - PF que ajam com rigor nas investigações da Usina de Açúcar e Álcool Cambahyba, localizada no município de Campos dos Goytacazes, no no Rio de Janeiro. Segundo Cláudio Guerra, dez corpos de militantes de esquerda - pelo menos é o que diz o ex-chefe do Dops - foram retirados da Casa da Morte, um centro de tortura em Petrópolis, e de órgãos da repressão em São Paulo, e conduzidos à Cambahyba para serem reduzidos a cinzas no forno da usina de processamento de açúcar por agentes da ditadura militar (1964 - 1985) no Brasil. Foram eles: João Batista e Joaquim Pires Cerveira, presos na Argentina pela equipe do delegado Fleury; Ana Rosa Kucinsk e Wilson Silva, “a mulher apresentava marcas de mordidas pelo corpo, talvez por ter sido violentada sexualmente, e o jovem não tinha as unhas da mão direita”; David Capistrano (“lhe haviam arrancado a mão direita”), João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, dirigentes históricos do [Partico Comunista Brasileiro] PCB; Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML). As cremações teriam ocorrido em 1974 e a usina pertencia ao ex-vice-governador do Rio de Janeiro (1967 - 1971) Heli Ribeiro Gomes (1925 - 1992), infelizmente, já falecido, pois, se ainda vivo, bem que poderia prestar contas com a Justiça.


O livro Memórias de uma guerra sujaCláudio Guerra em depoimento a Marcelo Netto e Rogério Medeiros, lançado pela Editora Topbooks, não poderia ser mais chocante. No dia 2 de maio do corrente, foi divulgado o seu teor, no qual o ex-chefe do Dops do Espíto Santo, um dos mais temidos órgãos de repressão do regime militar, revela, segundo o site oficial da publicação, o destino de desaparecidos políticos, “explica como vários líderes de esquerda foram assassinados e traz novos elementos para elucidar fatos ocorridos num dos momentos mais conturbados da História brasileira”. Estarrecedor, mas, ao mesmo tempo, esclarecedor, o livro vem sendo considerado uma “primeira amostra de uma série de crimes nessa guerra muito suja – um bom ponto de partida para a investigação séria, profunda e não revanchista dos abusos da ditadura” pela Comissão Nacional da Verdade instalada oficialmente por la presidenta Dilma Rousseff nesta quarta-feira (16). Os fatos? O ex-chefe do Dops, que alcançou o status de ser “um dos policiais mais poderosos dos anos 70 e início dos anos 80”, circulava “com a desenvoltura de uma autoridade anônima consciente de seu poder de destruição humana. A sua missão, contudo, não era torturar, mas matar e eliminar corpos – gestos banais, nada demais. Porém, hoje, pastor evangélico da Assembleia de Deus – misericórdia, senhor! – que estuda o hebraico, bem como a Bíblia – converteu-se ao cristianismo na cadeia, cumprindo penas por outros crimes –, o brasileiro Cláudio Guerra, aos 71 anos de idade, se diz “arrependido dos seus pecados” e que está pronto para depor na Comissão Nacional da Verdade. Simples assim. No livro, portanto, ele narra com riqueza de detalhes “tudo o que viu” e “as ordens de execução” que recebia dos militares, aos jornalistas brasileiros Rogério Medeiros e Marcelo Netto – este último, igualmente uma vítima do regime militar, quando, fins dos anos sessenta, estudante de medicina, foi banido da universidade e preso por 13 meses, nove dos quais em uma solitária. Proibido de estudar, virou, decerto por ironia do destino, jornalista. Quanto a Cláudio Guerra, que, em minha modesta opinião, saiu de uma guerra para entrar noutra...





O fato é que, entre outros, “episódios como o atentado ao Riocentro, uma inacreditável ação terrorista num país africano com o apoio clandestino do governo militar brasileiro, o acidente de Zuzu Angel, os ataques à bomba em diversas redações de jornais do país e as mortes do delegado Fleury e do jornalista Baumgarten ganham novas versões na voz” do ex-chefe do famigerado Dops, cujas “tarefas” que cumpriu, acatando ordens dos militares, lhe “trouxeram dores dos ossos à alma”, visto que os rostos dos que sofreram e pereceram direta ou indiretamente por suas ações, nunca se apagaram da sua memória. Assim, com o seu pungente depoimento, Cláudio Guerra, que traz a discórdia em seu próprio nome [o vocábulo guerra, na língua germâmica ocidental, ou seja, werra, significa discórdia], “apenas começou a puxar o fio de um novelo intrincado” – novelo esse que o MPF não vê a hora de começar a desfiar, considerando que já instaurou os procedimentos legais para começar a investigar o triste episódio que envolve muitos dos ditos desaparecidos políticos. Enfim! Condenado pela Justiça a 42 anos pela morte do bicheiro capixaba Jonas Bulamarques, em 1982, ficou dez anos na cadeia e foi solto, sendo, depois, condenado a 18 anos pela morte da própria mulher, Rosa Maria Cleto, e da cunhada Glória, em um lixão em Cariacica, em 1980. Atualmente, “desenvolve atividades sociais sob a supervisão da Justiça, já que ainda cumpre pena de prisão, recolhido numa instituição para idosos” – coitadinho... Bom! De acordo, ainda, com as informações contidas no referido site, o livro “demandou quase três anos de trabalho, o que incluiu aproximação, convencimento, idas e vindas, gravações sob compromisso, conversas, conversas e conversas – pessoais ou através do Skype – e ainda muita pesquisa. Depois veio a correria, pois a segurança dos envolvidos começou a ficar vulnerável à medida que as pesquisas avançavam”. Sim, mas foram concluídas e o resultado das mesmas publicado. Tanto que, para quem se interessar em saber mais detalhes a respeito, basta comparecer ao bate-papo com os autores de Memórias de uma guerra suja... previsto para acontecer na Livraria da Travessa do shopping Leblon, no Rio de Janeiro, na próxima segunda-feira (21), às 19 horas.

Nathalie Bernardo da Câmara

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