“Giordano Bruno foi queimado. Se gritou, não ouvimos. E se não ouvimos, onde está a dor? Mas gritou, meus amigos. E continua a gritar...”.
José Saramago
A Bagagem do viajante
É notória a minha admiração pelo filósofo italiano Giordano Bruno (1548 - 1600), autor do livro Heróicos furores, uma elegia ao amor, e queimado vivo na fogueira da Inquisição. Gostaria muito de traduzir, por exemplo, a íntegra das suas memórias apócrifas, intituladas O Testamento de um herético ou a última prece de Giordano Bruno, do teólogo alemão Eugen Drewermann, que, “respeitando os dados da História, coloca sob a pena do dominicano italiano propósitos similares aos seus... Mas, completamente verossímeis, porque Bruno foi um dos maiores precursores da modernidade, anunciando tanto Spinoza quanto Kepler ou Newton, e batizando, ao longo de uma obra abundante, uma filosofia da natureza que guarda, hoje, toda a sua pertinência”. Já traduzi, contudo, o primeiro capítulo de O Testamento..., a partir da tradução francesa de Catherine Grünbeck, publicada pela Editora Albin Michel, em 1994, que transcrevo abaixo.
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Folhas arrebatadas pelo vento
ELES ME DERAM PAPÉIS, trezentas folhas, exatamente, uma pena, tinta e areia. Por quê? Durante oito anos, eu tinha feito o pedido. Hoje, é Natal. Mas, para eles, essa não é a razão. Sete dias, ainda, e um novo ano vai começar. Eles, certamente, decretaram a minha morte e essas trezentas folhas são a última refeição do condenado. Pouco a pouco, ao ritmo de cinqüenta páginas por dia, eu devo me preparar para morrer. A claridade de um fogo de artifício chinês não será suficiente para fazê-los entrever a aurora de um novo século; não, é preciso a luz da minha fogueira para provar a eles e ao mundo inteiro que, nunca mais, existirá uma nova era.
Meu Deus, o que eles me fizeram para que uma simples marca de benevolência pudesse me despertar tais pensamentos? Eis que, enfim, eles me deram o que eu desejava e, ao invés de ser grato, eu não experimento que desconfiança e medo. Mas, nunca poderia ser de outro modo? Quando, em dezembro do ano passado, eles me forneceram do quê escrever, a fim de obter da minha pena uma espécie de reconhecimento, era apenas para melhor pronunciar a sentença de morte. É verdade que eles se demoraram oito meses lendo os meus papéis, antes que o cardeal Bellarmin, é fato, pudesse, enfim, no dia 24 de agosto, renovar a acusação de heresia. Há, apenas, quatro dias, eu compareci diante deles. Eu não ensino nenhuma espécie de heresia, disse a eles. Mas, são eles que dão a última palavra.
Eu tenho medo? Não, eu estarei contente quando tudo acabar. Os seus atos sempre foram piores que eu nem os imaginava? Desde longa data, eu não sei mais o que é a morte nem a vida. Eu nem mesmo sei mais o que é o amor nem o ódio. Todas as noções estão embaraçadas em meu espírito. E, contudo, eles não fizeram nada. Eles, apenas, trancafiaram-me como um pássaro que se trata com grande cuidado, lhe fornecendo água e comida. Mas, um pássaro que não pode mais voar definha, e eu, que não tinha outro desejo que o de voar além de todo limite? Eis porque eu era perigoso aos seus olhos.
Eu era perigoso. Há dois meses, no dia 21 de outubro, eu lhes expliquei, claramente, que não havia nada a renegar. Isso me custou todas as minhas forças. É uma boa coisa se eles me matam agora. Nos séculos futuros, todo o mundo dirá: eles tinham mais medo dos pensamentos de Giordano Bruno que este dos seus algozes. E ninguém saberá quanto o fruto estava oco, desde muito tempo, que eles pensavam, contudo, dever moer.
Eu não sou mais que fatiga. Vazio. Esses últimos oito anos me fizeram envelhecer oitocentos anos. Mas, talvez, seria preciso, ainda, oitocentos anos antes que se compreenda o que eu entrevi sem nunca poder usufruir. A quem eu deveria me endereçar nestas folhas de livro? Eles não lerão os pensamentos que me agitaram em meus últimos dias. Eu não lhes darei esse prazer. Que eu renegue, lamentavelmente, ou que eu persista, corajosamente, eles pensarão, nos dois casos, ter razão. Não, eu levarei estas folhas comigo para a fogueira – elas me aquecerão e me ajudarão a queimar com mais ardor. Mas, antes, elas devem me trazer um pouco de luz. Através destas páginas, eu devo, ainda uma vez, uma última vez, tentar me compreender: saber quem eu sou, agora e para sempre.
O que eu escrevo é um testamento. Mas, ele é escrito apenas para mim. A única coisa que eu legarei à posteridade será eu mesmo. Eu não lego teoria nova. Impediram-me de construir uma. Eu não possuo conhecimentos nem novas provas: como eu poderia descobri-las em meio a esses muros? Eu não tenho que a minha forma de me expor ao mundo. Ela era a minha vida. Ela é a minha morte. Ela é tudo o que eu sou: uma nostalgia e uma evidência. Nada mais. Mas, eu sei que isso é para sempre.
Oh, quanto eu desejaria me entreter com os homens que viverão em oitocentos anos ou, ao menos, com os que viverão em quatrocentos anos – no ano 2000, à aurora de um novo milênio. Quem serão eles? Como a alma humana, o que foi espírito não pode perecer. Eu era espírito. E eu sou alma. É por isso que eu gostaria de preencher estas trezentas páginas como um testamento legado aos séculos por vir. Eu as preencheria com uma escritura tão cerrada que as minhas mãos frias, prejudicadas pela gota, me permitem, ainda, sem saber a mestria das finas letras de outras eras, mas, de maneira suficientemente legível para os olhos da noite, para os visionários e os sonâmbulos, para as almas que, como eu, não encontram o sono.
Eu lembro de um sonho da minha infância: eu estou deitado em minha cama, contra a parede de um minúsculo quarto de dormir, que evoca uma gaiola de coelhos. Eu mantinha a coberta completamente contra os meus lábios, como abafar um grito mudo; meus olhos fechados estão crispados, como se, ao abri-los, eu temesse ver uma coisa assustadora, ou mais, como se o fato de abri-los fosse a verdadeira razão pela qual esta coisa atemorizante se produziria infalivelmente. Eu os abro, contudo, e eu vejo o teto do quarto se erguer lentamente. Eu temo que, subitamente, uma mão gigante me arranque da cama para me estrangular. Mas, nada disso aconteceu. Eu me acalmo. Fixando a obscuridade que me cerca, eu vejo inúmeras estrelas cintilar em cima da minha cabeça; elas dançam, como ébrias, e parecem rir de mim.
De uma certa maneira, eu nunca despertei desse sonho de infância. E eu nunca soube “realmente” distinguir o sonho da realidade. Eu sei, apenas, face a todos os que, há alguns dias, decretaram a minha morte, que eu não sou mais prisioneiro dos medos da minha infância. Vejam, aqui, um homem livre! Aquele para o qual o mundo parece um pesadelo, ainda que não seja que uma criança, como querem que, mais tarde, ele não explique o mundo como um pesadelo de criança? Quando dizem “Deus”, entendem, por isso, outra coisa que não seja a soma de todos os medos? São eles que se adoram, são eles que se saciam do sangue de novas vítimas. A verdade? Eu não a conheço. Eu sei, apenas, que guardei os meus medos para o mundo e que nunca tive a audácia de confundir Deus e o meu medo. Ao contrário. Eu aprendi a superar o meu medo do mundo pela confiança em alguma coisa que eu nunca vi, mas que, certamente, nunca riu de mim.
É isso que chamam “Deus”?
Se Deus existe, ele é, talvez, o meu único leitor. Para poder escrever estas páginas, eu tenho necessidade de me representar em alguém que me escute. Eu sei que não haverá ninguém. Mas, as chamas da fogueira farão brotar um vento que conduzirá estas folhas através dos séculos. Aos olhos dos meus algozes, elas não serão que cinzas. Mas, sempre haverá homens que não têm necessidade de folhas escritas para saber ler. “O que aconteceu às vésperas do Ano Novo de 1600, no calabouço da Inquisição romana, no velho Palácio do cardeal Pucci, próximo a São Pedro, onde retiveram prisioneiro Giordano Bruno?” Questionar é começar a compreender tudo o que eu vou tentar pôr no papel nos dias que virão. E mesmo se ninguém nunca questionar, ele me elegerá e me ouvirá, ele que é espírito em todas as coisas, ele que quis que eu, também, exista, como uma contribuição efêmera a sua glória. Ao menos, é isso que eu me esforço em ser, no limite das minhas forças – bem mais, parece-me, que os meus torturadores. Mas, o que importa no Presente?
Nathalie Bernardo da Câmara
Registro profissional de jornalista:
578 - DRT/RN, desde 1989
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